A
estreia do Messias
Exemplo a ser imitado na propaganda do Espiritismo.
por Dr. Canuto Abreu
Reformador
(FEB) Outubro 1925
(Palestra
feita na Federação Espírita Brasileira)
Meus companheiros e irmãos:
Como principiou Jesus a sua obra
messiânica?
Não começou por dizer que era o
Messias. Teria sido grave erro. Uma entrada assim violenta lhe acarretaria
invencível oposição inicial. O Messias esperado pela gente israelita devia
descer do céu numa nuvem, acompanhado de todo o reino de Deus. Teria uma
apresentação pomposa e imponente. Jesus teve que estrear como simples rabi,
isto é, como pregador e médico. Conquanto seu empenho sempre fosse convergira a
atenção sobre a sua prodigiosa personalidade de Messias, ao começo procurou
atrair pelas palavras de sabedoria, pelos atos de doçura e caridade e,
principalmente, pelas curas extraordinárias. Todos os rabis contemporâneos
também pregavam a Lei e os Profetas, perambulavam pelos burgos pobres e
tratavam os doentes. Nenhum, porém, possuía o cabedal filosófico, o poder
sobrenatural de curar e a impressionante simpatia do novo Rabi. Foi-lhe fácil
vencer.
Contudo, no começo, era preciso que
não houvesse, entre o moço operário de Nazareth e o jovem pregador, uma profunda
separação. Nesse meio conhecido e pequeno, Jesus devia evolver gradativamente e
suavemente. Durante trinta anos, ele, para os homens de então, teria estudado e
meditado a velha Escritura e as teses dos doutores. Mas não quis, no pequeno
rebanho em que vivia, surgir de repente como rabi, abandonando a ferramenta do
operário. Quando chegou o dia decisivo, partiu, porque em sua terra não poderia
ser profeta.
Partiu para onde?
Outro, menos prudente e sábio, teria
buscado Jerusalém, o lugar preferido pelos rabis inteligentes, Jesus não quis
deixar a sua Galileia. Sairia de Nazareth porque esta vila, escondida nas montanhas.
Era muito pequena para a sua atividade e nela habitava sua família, que se
oporia, talvez à sua carreira messiânica.
Mas, para partir, era necessário
romper com tudo quanto, na aparência, lhe era mais caro na vida; sua Mãe. Tinha
que renunciar à sua companhia, à amizade dos parentes, ao convívio dos
conhecidos, à vida calma de operário sem patrão. Tudo ele previu e preparou.
Havia muito que aguardava o momento, esse momento que chega para todos. E o
momento chegou-lhe. João, seu primo e amigo, que lhe preparava o caminho e que
o havia batizado há mês e meio, foi preso. Era imprescindível o sacrifício.
Renunciou à mãe, à família, aos amigos, a tudo. Fechou os ouvidos às súplicas
mais comoventes, dos rogos mais soluçantes e partiu. Louco! Teriam dito.
Solteiro, Jesus partiu só,
pensativo, ansioso, para iniciar enfim a missão que o Pai lhe confiara. Qual
era a sua missão? Salvar os pecadores e remir os condenados! Divino visionário!
Ao sair de Nazaré, o caminho
pedregoso sobe em zig-zag até um ponto, dos mais altos da Galileia, depois
dobra à direita e desce, cheio de acidentes e curvas que se esconde atrás
das colinas e dentro das vegetações. Ao ganhar o ponto culminante, antes de
descer, Jesus teria olhado o vasto horizonte, desde o monte Carmelo, até a
longínqua montanha do Hermon, sempre coberta de neve e cujas vertentes se despenham
em pirâmides de olivais e de pedras negras até a Galileia dos gentios. Aí,
nesse elevado ponto de mira, ele teria antevivido em pensamento aquela subida
final para o Gólgota. Teria anteprovado em seu coração as consequências desse
medonho desígnio. Mas não estacou. Não retrocedeu. Não mandou sequer, para
trás, para sua querida Nazaré, onde passara, em aparência, a mocidade e onde
ficara em lágrimas a sua Mãe, o derradeiro olhar do visionário. Começou a
descer, sozinho, o íngreme caminho, como qualquer viajante em busca do litoral. Uma hora depois, ao tangenciar uma colina
maior, teria divisado, à direita, o monte Tabor e, lá embaixo, bem longe ainda,
como um espelho azul, sulcado de barquinhos, o lago azul de Genezaré e os
diversos burgos ribeirinhos, que ia percorrer e que estavam destinados a
desaparecer da terra, mas a ficar na história de sua vida: Tiberíades, Magdala,
Cafarnaum, Betseida, Corozaim, Dalmanuta...
Jesus desce direto para o mar da
Galileia, evitando passar por Tiberíades – idade idólatra e pagã. Contorna pela
beira-mar, até encontrar seus amigos Simão e André. Em seguida, vai ao encontro
de seus primos Jaques e João e de seu tio Zebedeu, também pescadores. Todos
eram seus amigos e conhecidos velhos. João, o mais moço, era discípulo de João
Batista e profundamente devotado à propaganda messiânica. O primeiro encontro de Jesus com os
pescadores amigos foi para começar logo a nova profissão. Em vez de peixes,
convidou-os a também pescar homens. E foram, menos Zebedeu.
Apesar de, naqueles tempos, a tarefa
do pescador ser uma das mais elevadas e conceituadas, os quatro primeiros
discípulos de Jesus eram humildes e simples, porque eram espíritos e certa
elevação moral. Jesus hospedou-se em casa de João, pai de Simão e de André.
Essa noite foi a véspera do nascimento do Cristianismo. Ele teria falado sobre
a volta do Batista e combinado com os amigos o modo de agirem.
No dia seguinte, o primeiro do
Cristianismo – vem até a praia e aí, ao ar livre, entre o povo simples e
humilde, começa a pregar. Os pescadores, as mulheres e as crianças, cheios de
curiosidade, rodeiam o novo Rabi. Jesus, então, a fim de melhor ser visto e
ouvido, sobe para o barco de Simão. Outros barcos se aproximam e atracam perto.
Que prega jesus?
Fala de João Batista, da verdade da
sua doutrina, da próxima vinda do reino dos céus. Fala do amor de Deus, da sua misericórdia
e piedade, da fraternidade humana, do perdão. Mas, fala por parábolas, para não
ser compreendido desde logo. O auditório não conhecia senão os ritos
endurecidos, as leis rigorosas de sangue e vindita, a pena de talião, o olho
por olho e dente por dente, o apedrejamento, a forca, a crucificação. O Deus de Israel era um deus suscetível,
impulsivo, ciumento e vingativo, guerreiro e perseguidor do homem até as mais remotas
gerações. Jesus tinha que falar por parábolas, para ser entendido apenas por
aqueles que, entre a multidão, tinham ouvidos de ouvir.
Apesar do simbolismo, já era o Evangelho
que Jesus pregava. Era a Boa Nova que principiava a espalhar-se pelo povo
simples, a evolar-se cristalina, sob o céu de anil, e á borda do mar cinzento
da Galileia. Era o Novo Testamento que surgia.
Foi assim, como simples Rabi, no
pequeno burgo de Cafarnaum (cafar =
aldeia, naum = consolação, segundo
Orígenes, confusão, segundo outros) a sete horas de viagem de Nazaré, que
jesus, apoiado por quatro amigos, começou a obra ingente de regeneração da
humanidade. Mas, ai de ti, Cafarnaum... (Mt. XI,23)
Como todos os rabis, ele ensinava e curava.
Mas os seus ensinos possuíam um encanto novo, que apaixonava os ouvintes, e as
suas curas encerravam um prodígio, que impressionava a assistência. Era, na
verdade, um rabi invulgar.
No entanto, saiam todos que ele era
o Nazareno, filho do operário José. Onde
teria aprendido tantos conhecimentos? Estaria nele o espírito de Elias ou de
qualquer outro profeta? Indagam, e Jesus afirma que o espírito de Elias estava
em João Batista. Mas não diz quem ele é. Era cedo para dizê-lo. Tudo estaria
prejudicado. A Simão, porém, confia o segredo, porque, este, por inspiração,
havia já percebido que o Mestre era o Messias.
Ninguém descobre, nas primeiras
palavras e atos do Rabi, o grande plano que ele havia de desenvolver em pouco
mais de trinta meses. Nem mesmo os discípulos, Jesus se limitava, nesse
primeiro período da sua missão, a falar sobre a Lei, a responder às consultas,
e a interpretar os acontecimentos que se desenrolavam em torno de sua pessoa.
Seus pareceres foram a pouco e pouco impondo a sua autoridade de doutor. Ao
emitir opinião, nem sempre enunciava uma doutrina inteiramente nova, que não
existia em parte alguma da Lei, dos Profetas, ou dos doutores. Ora ficava ao
lado de Hilel, ora ao lado de Chammahi – os dois maiores luminares da teologia
hebraica. Assim, a respeito do divórcio, pensava como Chammahi; sobra a
justiça, opinava como o Dr. Hilel, que a seu turno repetia Tobias. Mas o ensino
de Jesus era mais claro, mais penetrante, mais agudo, mais consolador, mais
espiritualizado. Hilel dizia, por exemplo: “Só
deveis julgar o próximo quando estiverdes na mesma posição ou situação dele”.
Jesus ensinava: “Não julgueis para não
serdes julgados”.
Ao pregar as passagens do Antigo
Testamento, procurava arrancar da letra, o espírito novo. Soprava nas letras
mortas a vida nova. Combata em absoluto as contravenções que os escribas
toleravam: o juramento, a hipocrisia dos fariseus, as preces em voz alta para
serem ouvidas pelos que passam, a esmola apregoada para se vista e admirada, a
pena de talião. Ensinava e exemplificava a humildade absoluta, mesmo a auto humilhação
e, como Jeremias, aconselhava ao que recebesse a ofensa, na face esquerda a
voltar ao ofensor a face direita. “Perdoai para serdes perdoados” dizia ele;
mas não sete vezes, como interpretavam os doutores e sim setenta vezes sete
vezes, ou, para quem perdesse a conta, sempre. Tudo o que saía dos lábios,
mesmo quando reproduzia a Escritura Antiga, tinha um sabor novo e doce. Os
deveres do homem para com Deus e o próximo, a adoração, a caridade, a bondade
de coração e a simplicidade de espírito, o desinteresse material, jamais foram
antes pregados com tanto entusiasmo e sinceridade. Ele pregava com o exemplo.
Como o mais instruído de todos, os
escribas, sabia tirar do patrimônio legal e profético do seu povo “coisas
velhas ou novas”. Não se limitava a reproduzir literalmente o que estava
escrito; apresentava a Escritura sob novo prisma, sob forma diferente, melhor,
mais nítida, mais espiritualizada e, tão sua que, embora sem escrever uma só
palavra, ela manifesta um estilo único, inimitável. Com isso, Jesus não abolia
nem a Lei, nem os Profetas; dava-lhe cumprimento. Seus ensinos eram uma espécie
de revelação dessas doutrinas. Procurava restabelecer o espírito de verdade e
nisso consistiam as “coisas novas”. Daí lhe veio a necessidade de combater as
interpretações falsas dos fariseus, saduceus e essênios, cheios de casuística,
de hipocrisia e de vãs formalidades. Mas, notai bem, esse rebate não é
principiado senão depois que já possui auditório entusiasta e quando esse
auditório começa lutar contra os fariseus.
Na
vida de Jesus, tudo é um exemplo de perfeição. Vede como princípio a missão. Tomemo-lhe
como exemplo. Estudemos bem as letras santas, antes de pregar outras. Não
convém desde logo repudiar, por sistema, ou melhor, por orgulho, a teologia
cristã. Devemos antes procurar assimilá-la bem, em espírito e verdade, e depois
ensina-la sob novos moldes. Ninguém contesta que os ensinos de Jesus ali estão
adulterados; mas a adulteração não inutilizou completamente a obra dos nossos
maiores, como a exegese da sinagoga, por mais tortuosa, não sacrificou a
Primeira Revelação. Esta foi salva por Jesus; aquela está salva pelo
Espiritismo. Os dogmas, que serviram à edificação moral do Ocidente em que
vivemos estão velhos, caducos e alguns em estado comatoso. Mas todos podem e devem ser explicados pelo
Espiritismo, sob o influxo do Espírito da Verdade. Foi assim que Jesus deu cumprimento
à Doutrina Antiga. Os tempos envelheceram a obra complementar e reformadora dos
apóstolos e dos seus sucessores. Cabe ao
Espiritismo rejuvenesce-la.
É por isso que a Federação nos
ensina que a Doutrina Espírita é o cumprimento do Cristianismo. Assim como
Jesus, outrora à beira o mar da Galileia, pregando a Lei e os Profetas,
ensinava o verdadeiro espírito do Antigo Testamento, também, nos tempos que
correm – tempos de transição – o Espiritismo, pregando os ensinos de jesus,
propala o verdadeiro espírito dos Evangelhos.
Tudo vem a seu tempo, porque tudo
está marcado no quadrante do Criador.
Jesus conservou o passado. Repetiu o
passado. Mas o Passado saiu novo de seus lábios. Conservemos também o Passado. Repitamos
o Passado. Naturalmente, à luz da nova Revelação que nos felicita, o Passado,
que muitos levianos cuidam morto, surgirá redivivo, novo, perpetuado de vida. É
a Lei. É o rodar sucessivo das vidas progressivas, rumo à Perfeição.
Os escribas, exigiam as práticas
exteriores, os ritos, os sacrifícios, as abstinências, os jejuns. Sem esses
cuidados, os Judeus não teriam entrada no reino do céu. Jesus, exigiu as
práticas interiores, a prece em segredo, a vigilância da serpente, a mansidão
da pomba, os sacrifícios pelo próximo, o jejum moral. Só assim o homem terá
entrada. Repetindo a Jesus, exijamos de nós mesmos a reforma interior, pelo
sacrifício de nossas paixões grosseiras, pela higiene dos pensamentos, pela
disciplina das palavras e pelo norteamento dos atos. Sem isso, não teremos
dentro de nós o reino de Deus.
Mas, nem todos se acham no mesmo grau
e evolução. Uns precisam ainda das exigências dos escribas; outros ainda não
compreenderam bem a Jesus. Não queiramos, pois, arrancar os primeiros degraus
por onde já subimos, arrasar o passado a que estamos ligados pela vida terna,
Contentemo-nos com ser, no seio do Cristianismo, o fermento que que há de
transformar.
Para Jesus, os ritos não tinham importância.
Ele pregava a fé interior, livre, sincera, e espontânea. Porém, não aboliu os
ritos. Não censurou os que tinham a fé cega e medrosa. Não arrasou o passado.
Sigamos o seu exemplo.
Jesus não instituiu nenhum sacerdócio
profissional. Como os grandes Doutores, ele punha o sentimento acima do ato, a
intencionalidade acima da ação. Mas, da letra da Lei não tirou pingo do 'i'. Limitou-se
a esclarecer as interpretações ridículas ou infundadas dos fariseus.
Conservemo-nos, também, a Lei e os Evangelhos. Não toquemos numa só letra.
Limitemo-nos a esclarecer, sem desvario nem abuso, ao contrário, com prudência
e amor, as interpretações extravagantes, ou sem base, dos que se dizem os
intermediários entre Deus e os homens.
É possível que mais tarde o Espiritismo,
como aconteceu com o Cristianismo, se afaste desse escopo. O que hoje lhe é
designado é o de revelar, em espírito e verdade, o passado. Certamente,
ensinando as “coisas velhas” por mole novos, um corpo de doutrina religiosa
surgirá. Será, talvez, a religião predominante em próximo futuro.
Não importa! O que importa é saber
que não nos cabe mais; tão somente repetir os ensinos de Jesus, dos Profetas, e
da Lei, por “palavras novas”. O tempo da teoria, das pragmáticas, dos sermões e
dos salmos, para nós, já passou. O que nos compete, no tempo que vivemos, é
PRATICAR os ensinos do Mestre. Só deste modo mudaremos a face do mundo.
Tendo isso em mente foi que nos
ocorreu rever, nesta palestra, a estreia e o primeiro período da missão de
Jesus. Diante do Modelo divino que, na aparência, levou trinta anos em Nazaré a
preparar-se para a luta de trinta meses, comecemos o nosso preparo interior.
Sopitemos os ímpetos grosseiros de nossa natureza. Fechemos os sentidos à
solicitações da matéria e, a sós, dentro de nós próprios, à luz dos Evangelhos,
eduquemos a nossa vontade, orientemos os pensamentos e esclareçamos a fé.
Amemo-nos uns aos outros. Toleremo-nos mutuamente. Respeitemos as crenças
adversárias, por mais absurdas que sejam, ou que pareçam; Acatemos a palavra de
todos os que se propõem a ensinar aos homens o caminho da salvação. Pode ser
que alguns não sejam, ao nosso ver, arautos fieis da verdade. Deixemo-los em
paz. Se forem sinceros, terão luz e recompensa. Se forem hipócritas, terão
trevas e castigo. Bem ou mal, cada um dá o que tem, neste mundo, sua utilidade
na obra geral. Não perturbemos a ação do nosso próximo, mesmo que seja
contrária à nossa. Não levantemos contra o adversário nenhum sentimento de
condenação, por isso que ele está investido por Deus duma permissão de agir e só Deus pode julgar se agiu mal ou bem.
Assim é que devemos principiar a
tarefa espírita. Como Jesus em Nazaré, sejamos primeiro o simples operário de
nossa própria consciência, o rabi de nós mesmos, educando os nossos pendores
egoísticos e curando as nossas mazelas sensuais.
Só depois desse preparo, só depois
duma longa vida de artífice do próprio aperfeiçoamento, só depois de batizados
nas águas da regeneração, só depois da quarentena do deserto em jejum e no
convívio dos Espíritos, é que, em chegando a nossa hora, poderemos tomar, como
Jesus, a deliberação de partir, de deixar a nossa Nazaré, a família, os amigos,
a velha ferramenta, e marchar, sozinhos e ansiosos, para o ponto elevado do
caminho e de lá, avistando ao longe o horizonte vastíssimo de nossa Galileia e
embaixo, o campo aberto à nossa atividade, descer, sem olhar para trás, como
Jesus desceu outrora para Cafarnaum.
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