Um
Poeta
diante
do Espiritismo
Hermínio
de Miranda
Reformador (FEB) Agosto 1962
Às vezes me ocorre que algum dia
saberemos, de um plano superior de entendimento, como se fez a História da
Humanidade. (Humberto de Campos já nos deu disso uma pequena e valiosa amostra
no seu "Brasil, Coração do Mundo, Pátria do Evangelho".) Estudaremos,
então, a parte que cada um representou nesse majestoso drama. Observaremos o ritmo das sucessivas encarnações do mesmo
Espírito, repetindo erros, às vezes, e outras voltando para corrigir o que não
pode, não soube ou não quis fazer
melhor. Avaliaremos a parcela de responsabilidade que nós próprios tivemos,
ajudando a crucificar o Cristo, numa encarnação, para morrer por ele, em Roma,
numa das seguintes; combatendo-o com o brilho da eloquência cultivada numa
vida, para servi-lo humildemente mais além, na seara da mediunidade cristã. A
favela que hoje olhamos, de longe,
poderá ser o nosso lar de amanhã, com o seu cortejo de misérias e aflições.
Como também, o palacete que, a distância, o pobre contempla, poderá ser depois
a morada onde encontrará as duras provas da riqueza, do gozo fácil. 0 convite à
comodidade ociosa do egoísmo, ou à ilusão do poder.
E testemunharemos o voo magnífico do
Espírito na direção de Deus, como a libélula na direção da luz. Veremos a
palavra chamejante de João Huss transmutar-se no verbo tranquilo, racional e
lúcido de Allan Kardec. Veremos o, agreste Espírito de Elias - que matou os
profetas de Baal na torrente do Cison - retornar, ainda agreste e solitário, em João
Batista, vivendo, também, nos desertos e à margem do mesmo Jordão legendário.
Só que agora não mais para matar ,- mas para preparar as veredas do Senhor,
para fazer reboar sua palavra poderosa e desassombrada, contra reis ainda mais
poderosos e, por fim, num lance dramático da lei cármica - da qual nem os
grandes escapam -, ter sua cabeça decepada ao capricho de urna mulher
atormentada.
Veremos ditadores regressarem como
simples camponeses para aprenderem primeiro a lei da humildade. Veremos poetas
e músicos, artistas geniais, colocarem os cérebros incendidos de inteligência,
ao serviço de causas mais puras e nobres. E os que dantes eram ateus e
orgulhosos, que viam o mundo aos seus pés e frequentavam cortes e academias,
vêm aprender a transmitir a palavra simples e tão bela do Mestre Jesus.
Alexandre, César, Napoleão, de tão
alta capacidade de trabalho, de tão magnífico espírito de organização,
certamente hão de voltar em paz, não mais para matar e destruir, mas para
conduzir pela mão, aos pés de Deus, aqueles milhões de seres que, em outras vidas,
sacrificaram às suas ambições.
Então, sim, veremos como é
fascinante a História e como são perfeitas as leis divinas!
O que destrói, volta para
reconstruir; o que mata, retorna para recriar; o que apenas gozou dos prazeres
efêmeros e ilusórios, regressa para sofrer e aprender, preparando-se para
ensinar e ajudar, pois que juntos vivemos e juntos evolutimos.
É tão preciso e seguro o
funcionamento inflexível da lei de causa e efeito, que se podem até imaginar as
condições de uma reencarnação, pela trajetória da existência anterior.
Como seria, por exemplo, a
existência subsequente do famoso poeta inglês Robert Browning?
*
Em Dezembro de 1844, uma jovem
inglesa recebeu de presente um livro de versos de Elizabeth Barrett, já então
poetisa de considerável renome. A dedicatória dizia simplesmente isto: "John
Kenyon to Miss Browning, Decr. 1844".
Estranhos são os caminhos da vida.
John Kenyon, amigo intimo da família Barrett e também dos Brownings, era homem
de recursos, amável protetor de poetas e artistas, em geral. A Srta. Browning,
que tinha o doce nome de Sariana, era irmã de Robert, o poeta.
Robert Browning, que acabara de
regressar de uma viagem, à Itália, contava, nessa altura, 33 anos de idade e
era seis anos mais jovem que Elizabeth Barrett. Tomou o livro de versos para
ler e lá encontrou, no poema “Lady
Geraldine's Courtship", algumas linhas a ele endereçadas. Expressavam
elas a admiração da poetisa pelo jovem poeta.
Kenyon, amigo comum de ambas as famílias,
sempre falava de Robert à Srta. Barrett, e a ele sobre ela. Tentara mesmo uma
aproximação entre ambos, mas Elizabeth estava sempre tão mal, que não fora
possível receber a visita do poeta. Este, no entanto, se não, podia vê-la,
queria ao menos expressar-lhe sua admiração. E a 10 de Janeiro de 1845
escreveu-lhe a primeira de uma série imensa de cartas. Começava, assim, aquela
inequívoca mensagem de amor e de respeito: "I love your verses with all my heart - and I love you too"
("Amo os seus versos de todo o meu coração e a amo também") .
A carta produziu tremendo impacto no
espírito de Elizabeth Barrett. Ao mesmo tempo em que a elevava às culminâncias
do êxtase, como declara ela, em carta à Sra. Martin, a confissão de Browning a
deixava atônita e preocupada. Que tinha uma inválida, literalmente presa a um
quarto hermeticamente fechado e sem luz, e, ainda por cima, vigiada dia e noite
por um pai inflexível, a oferecer ao autor de "Paracelsus",
exuberante de vitalidade e de entusiasmo, pela vida? E, por isso, quase que
imediatamente respondeu-lhe à confissão proibindo-o, em termos corteses e
firmes, de falar novamente em amor. Como poderia assumir a responsabilidade de
arruinar a vida de um homem como Robert Browning?
Estranhos, na verdade, são os
caminhos de Deus.
Aqueles dois seres se pertenciam e
as cartas que continuaram a escrever iriam preencher, mais tarde, um compacto
volume de 567 páginas.
Robert Browning tinha dado início ao
seu mais belo poema, reescrevendo a história de Elizabeth Barrett,
transformando-a, pelo milagre do amor, numa criatura viva, restituindo-lhe a
saúde que ela própria já considerava perdida para sempre. Durante quatro meses,
na palavra de um de seus biógrafos, "assediou" a casa da poetisa, até
que, em 20 de Maio de 1845, se encontraram, afinal, no cômodo que a doente
ocupava no santuário dos Barretts.
Depois de noventa e duas visitas, muitos atropelos, muitas cartas e tantas
outras confidências, casaram-se e partiram para a Itália, onde viveriam,
durante os próximos 15 anos, a continuação daquele romance.
"Seria difícil encontrar, na realidade ou na ficção, outro par de
namorados como Robert Browning e Elizabeth Barrett, tão altamente dotados de
inteligência, dedicados e altruístas", disse, uma vez, o "Boston Literary World".
O casamento, porém, custou mágoas
sem conta à frágil poetisa. Seu pai, Edward Moulton Barrett, que cedo
enviuvara, ficando com uma porção de filhos e filhas, não aceitava, sob
hipótese alguma, a ideia de que qualquer de seus filhos pudesse vir a casar-se
um dia. Muito menos Elizabeth, a mais velha, o gênio da família e, certamente,
a predileta, a
quem tratavam por Ba, na intimidade. Era tão intransigente a atitude do velho
Barrett, que a única forma de escapar ao seu domínio foi a de se casarem
clandestinamente numa igreja londrina e, em seguida, viajarem para a Itália,
onde viveriam até que ela morresse, em 1861, aos 55 anos de idade, sem jamais
conhecer-lhe o perdão.
Nas cartas que se escreveram, quando
ainda solteiros, e na tradição que deixaram entre amigos e conhecidos, sabe-se
que viveram um idílio de 15 anos, num mútuo e enternecedor devotamento, como
dois autênticos poetas deveriam viver: cada qual produzindo
seus versos, visitando museus e cidades, lendo os grandes livros, debatendo os
grandes temas da vida.
Apenas uma nuvem toldava, às vezes,
aquele tranquilo céu azul: era o "desprezo
(de Browning) pelos "espíritas"
e "médiuns", nos quais ela acreditava integralmente", diz a
Enciclopédia Britânica.
A vida do casal Browning já foi
teatralizada e até filmada em Hollywood. Um século depois, contínuam mais vivos
que nunca, na poesia que deixaram escrita e na imortal lembrança do romance que
viveram. Seria bom que dispuséssemos aqui de tempo e espaço para reescrever,
ainda uma vez, a história desses dois grandes vultos que, cada qual a seu
turno, receberam os maiores galardões na história da literatura inglesa, mas, a
nós espíritas, interessa sobremodo estudar a influência do Espiritismo nas suas
vidas, suas reações e suas ideias acerca da questão.
O leitor sabe naturalmente que a fenomenologia
espírita moderna começou em Hydesville, nos Estados Unidos, em 1848. Já no
principio da década de 50, tanto a América quanto a Europa estavam tomadas pela
febre de fazer girar as mesas, organizar sessões espíritas, não tanto para
estudar com seriedade a questão, mas como simples passatempo, ou brincadeira de
salão. Faltava, ainda, o trabalho disciplinador de Allan Kardec, cujo "O
Livro dos Espíritos" somente apareceria em 1857, mesmo assim para
encontrar impiedosa reação por parte das fortalezas acadêmicas e religiosas.
Em 1851 a atenção de Elizabeth havia
sido solicitada para a questão espírita. Gardner B. Taplin ("The Life of Elizabeth Barrett Browning")
informa que Elizabeth ouviu falar de Espiritismo, pela primeira vez, graças a
Hiram Powers, um escultor americano então vivendo em Florença. O mundo inteiro
brincava com os Espíritos, fazendo girar as mesas e formulando lhes perguntas
ingênuas e até ridículas. Como diz Taplin, gente que não sabia grego
subitamente começava a escrever, nessa língua, mensagens do outro mundo.
Elizabeth leu, nessa época, um livro sobre tais manifestações. Chamava-se
"Sights and Sounds", e foi
publicado nos Estados Unidos, em 1853, por Henry Spicer.
Nas várias biografias que tive
oportunidade de estudar sobre o fascinante casal de poetas, não encontrei ainda
um autor que manifestasse decidida simpatia pelo Espiritismo. Pelo contrário, a
hostilidade é quase sempre contundente. Por estranho que pareça, entretanto, o
autor que trata o assunto com maior equilíbrio, delicadeza e compreensão, é o
grande G. K. Chesterton, a despeito de sua reconhecida posição de católico.
Mais adiante veremos o que tem ele a dizer, no excelente livro que escreveu
sobre a vida e a obra do imortal poeta inglês ("Robert Browning", Edição Macmillan, 1930).
Taplin declara que Elizabeth
"convenceu-se, desde o princípio, da autenticidade de quase todos os
fenômenos espíritas". A expressão ”quase todos" indica que ela não
aceitava incondicionalmente tudo quanto lhe fosse impingido como fenômeno
espírita. Aliás, podemos afirmar que não havia Espiritismo naquela época, tal
como o entendemos os espíritas de orientação kardequiana. Havia o fenômeno,
isto é, mediunismo, mas não se havia erigido ainda, com base naqueles fatos e
naquela fenomenologia, a doutrina de aspectos religiosos, filosóficos e científicos,
para a qual Kardec propôs o nome de Espiritismo. É de observar que os espíritas
anglo saxônicos dão à sua doutrina o nome de Espiritualismo
("Spiritualism"), muito embora tenham também, em inglês, a palavra
Espiritismo ("Spiritism"). Isso, porém, não constitui divergência de
monta. Como sabe o leitor, Kardec desejou exatamente estabelecer uma
terminologia mais precisa, chamando Espiritismo à nova doutrina que emergia dos
fatos então observados, para diferenciá-la das
diversas correntes espiritualistas. Espiritualista, conforme observou Kardec, é
aquele que, de uma forma ou de outra, crê na existência do Espírito, enquanto
que espírita é o que aceita a doutrina, não somente da existência do Espírito,
mas a da sua preexistência, sobrevivência, de sua sujeição à lei da
reencarnação, da comunicabilidade entre Espíritos encarnados e desencarnados,
como, ainda, as consequências filosóficas que daí decorrem, em seus aspectos
religiosos e morais.
Mas, voltemos aos Brownings.
Elizabeth lia os principais livros e
artigos que apareciam sobre o assunto e, nas conversas com amigos que os
visitavam, procurava sempre discutir o problema espírita, que a fascinava, tendo
estudado criteriosamente os livros de Swedenborg, o grande precursor do
Espiritismo. Andava a poetisa num estado de "alta expectativa" e
certa de que -
como declarou em carta - "maravilhosas coisas muito breve serão
reveladas".
Frederick Tennyson (irmão de
Alfred), que os visitou mais tarde, na Itália, promoveu experiências com as
mesas girantes na casa dos Brownings - a famosa Casa Guidi, onde viviam. Sobre
tais experiências, Frederick escreveu que Elizabeth nunca estava "tão
feliz como quando podia penetrar o espesso mistério dos clarividentes, dos
"rappists" (Espíritos
batedores), extáticos e swedenborguianos".
"Nada me interessa tanto -
escreveu ela à Sra. Jameson - Não descansarei enquanto não conhecer tudo quanto
puder sobre isso, Espero que tal solução contenha a revelação de alguns dos
mais profundos e impenetráveis mistérios do nosso duplo ser."
No dizer de outro biógrafo (Betty
Miller, in "Robert Browning - A
Portrait", Edição John Murray, Londres), "o Espiritismo
supriu-lhe uma ponte", fornecendo-lhe "a prova científica" de
que "nenhuma parte de nós jamais ficará na sepultura".
E continua a autora, acrescentando
que "o vírus do Espiritismo já havia atravessado o Atlântico e formado
poderosos focos de infecção nas várias capitais da Europa". A autora
procura mesmo desculpar Elizabeth - que certamente admira - por essa
"fraqueza", declarando que, a despeito de seu gênio, ela era
"incapaz de uma resignação estoica diante da ideia da total extinção da
alma depois da morte". É que, às vezes, os biógrafos parecem emprestar
suas ideias aos biografados ...
De outro lado, muitos dos amigos que
os visitaram, nos seus quinze anos de vida na Itália, estavam também
'''infeccionados'' pelo '''vírus'' do Espiritismo. Assim foram os das famílias
Stbry, Page, Jarves e Powers e, mais tarde, a famosa senhora Harriet Stower,
autora de "A Cabana do Pai Tomás", um dos grandes livros
espiritualmente inspirados da literatura mundial.
Também Gardner Taplin acha que, por
causa de sua "disposição ardente, generosa e algo ingênua, ela não poderia
ficar indiferente aquela massa de evidência aparentemente
bem fundamentada (o grifo é meu), que continha sua perspectiva de esperança
para a Humanidade".
No entanto, duas das criaturas que
Elizabeth mais amava neste mundo - seu marido e sua irmã Henrietta - não
podiam, de forma alguma, concordar com ela nesse delicado assunto. Quanto à
irmã, estava à distância e não havia muito que discutir com ela, más, às vezes,
tornava-se um sério problema contornar a aversão de Robert à simples menção do
Espiritismo. De início, ele procurou deixar a coisa caminhar naturalmente, com
certeza na
esperança
de que ela, de moto próprio, abandonasse aquelas "extravagâncias". A
própria Elizabeth declara em carta, em tom meio irônico: "O que devo dizer
de uma mulher - diz meu marido - que acredita em Luís Napoleão e nos
Espíritos?".
Certa ocasião, interessou-se o poeta
por Anatomia. Andava cogitando de estudar Escultura e talvez quisesse examinar
a estrutura do corpo humano. Seja como for, havia comprado um esqueleto, que
levou para casa. Elizabeth, meio assustada, escreve: " ... se eu tolero os
ossos de Robert dentro de casa, ele deveria tolerar os meus Espíritos..."
O poeta, entretanto, achava que a
esposa estava sendo vergonhosamente enganada e não compreendia como podia ela
deixar-se levar. Às vezes, de fato, ele tinha razão, Foi o que aconteceu com a
Sra. Eckley, que, dominada pela ideia de conquistar e conservar a amizade de Elizabeth
e sabendo do interesse da poetisa pelos fenômenos espíritas,
pretendia
poderes mediúnicos que não possuía, Robert tudo fez para que sua querida Ba não
fosse envolvida pelos enganos daquela que, na ânsia de passar por amiga,
enganava sua genial esposa.
Browning queixou-se em carta:
"Quanto a isso de ver a verdade, parece que tais naturezas angelicais
(como a dela) não o conseguem," Por fim, o encanto quebrou-se e Elizabeth
compreendeu que a amiga a tinha enganado lamentavelmente. A despeito do choque
que experimentou, não perdeu a cabeça, nem a sua crença no Espiritismo e
escreveu, melancólica e lúcida: "Certamente que alguns médiuns enganam. O
mesmo acontece com pessoas que não são médiuns."
Foi nessa ocasião (Setembro de 1858)
que Robert começou a escrever um longo poema, no qual trabalharia por muito
tempo, Foi um dos poucos que Elizabeth não acompanhou durante a elaboração. Na
verdade ficou inédito até depois da morte da sua esposa. Chama-se "Mr. Sludge, the Medium” ("O Sr.
Sludge, o médium"), e narra, com minúcias psicológicas, a confissão de um
pobre médium apanhado em fraude, e impiedosamente tratado pelo poeta. Já o nome
do médium - Sludge - quer dizer untuoso.
Chesterton, porém, na sua penetrante
e insuspeita análise do poema e da atitude de Browning com relação ao
Espiritismo procura compreender e explicar o poeta e sua intenção. Acha que a
sua aversão era mais aos espíritas - ou pelo menos a certos espíritas de então,
diríamos nós - que propriamente ao Espiritismo. Baseia-se, para essa
afirmativa, não somente na formação moral e intelectual do poeta, como na
própria estrutura do poema.
A obra apareceu numa época em que a
atenção do público em geral estava sendo solicitada para o Espiritismo e
despertou grande interesse e considerável controvérsia. Os espíritas deram
combate ao poema e ao seu autor, enquanto que os céticos exultaram, pois que a
concepção filosófica, nele contida, partia de um dos maiores poetas da época e um
dos grandes de todos os tempos. Afinal de contas, tinha um artista daquela
envergadura resolvido escrever uma peça literária de fino lavor contra o
Espiritismo. Qual das duas correntes teria razão? Chesterton observa que, com
surpresa, notou que nem as duas correntes de opinião acima citadas, nem os
estudiosos da poesia de Browning, parecem ter verificado que "Mr. Sludge, the Medium”, não é um ataque
ao Espiritismo", e acrescenta: "Estaria muito mais perto da verdade,
apesar de que não inteiramente verdadeiro, considerá-lo como uma justificação
do Espiritismo," (G. K. Chesterton, in "Robert Browning".)
Em que se apoia Chesterton? Depois
de analisar a conformação moral e a técnica poética de Browning, o autor
acrescenta que "o ponto” alto do poema, considerado como obra de arte, é
tão notável que se torna extraordinário que possa alguém deixar de percebê-lo,
uma vez que constitui a própria essência do monólogo".
A peça é um solilóquio, no qual o
senhor Sludge, o médium, confessa abertamente e humildemente que, de fato,
cometeu uma fraude indesculpável. E, num acesso de franqueza, “em parte
zangado, em parte assustado e em parte com humor", resolve "dizer
toda a verdade acerca de si mesmo, pela primeira vez". Mais adiante,
Chesterton chama a atenção para o fato de que o médium confessa não somente a
fraude, mas também outras "coisas que são, ao homem natural, mais difíceis
de confessar que até mesmo a fraude: efeminação, futilidade, covardia
física". Depois dessa espantosa confissão, que
lhe põe o espírito a nu diante da personagem que lhe ouve a longa dissertação
(o poema todo tem 1525 linhas), o Sr. Sludge declara que, a despeito de tudo,
inclusive de suas artimanhas, acredita "que existe alguma, coisa no
Espiritismo". - "No decorrer de um milheiro de conspirações, ao calor
de mil mentiras, descobri que há realmente alguma coisa
nisto que, nem eu, nem outro qualquer homem, podemos entender. Sou um ladrão,
um aventureiro, um impostor da Humanidade, mas não sou descrente do
Espiritismo. Já vi demais para isso." E prossegue Chesterton dizendo que
seria difícil conceber uma confissão apresentada de maneira tão impressionante.
Tal como um antigo mártir, Sludge não renega a sua fé, mesmo ao baixar à ultima
escala da degradação. Volta Chesterton a repetir que não compreende como esse
ponto, tão essencial à compreensão do poema, tenha passado despercebido a tanta
gente. Transcreve, então, os treze versos que contêm a profissão de fé do
médium quando, embora humilhado e numa difícil posição, tem um momento de
dignidade e coragem moral para reafirmar sua fé nos fenômenos espíritas, a
despeito, até mesmo, de suas próprias fraudes. Deixar de perceber esse clímax,
na opinião de Chesterton, é o mesmo que "perder a última frase de uma boa
anedota ou colocar o último ato de "Otelo" no meio da peça".
Já antes (pág. 92 de seu livro),
Chesterton havia afirmado que "essa teoria da aversão de Browning ao
Espiritismo", como tem sido frequentemente repetido, originou-se na
"absoluta negação da possibilidade de tal teoria da vida e da morte".
"No entanto, prossegue GKC, é extremamente difícil reconciliá-Ia com o caráter
de Browning. Ele seria o
último homem no mundo a se tornar intelectualmente surdo a uma hipótese,
meramente porque ela era algo singular."
Ao contrário, seria ele dos mais tolerantes e curiosos acerca de
qualquer nova hipótese. Na concepção de Chesterton, a atitude de Browning,
diante do Espiritismo, teria que ser entendida dentro da conjuntura social da
época. A maioria das pessoas de "espírito prático" achava que essa
história, de acreditar em fantasmas, era simples
sugestão.
De fato, podemos compreender isso. O
Espiritismo nascente, ainda falto de normas e de códigos disciplinadores e
esclarecedores, era um complexo conjunto de fenômenos inabituais, que apelavam
para o senso de maravilhoso da criatura. Muito poucos eram os que - como Allan
Kardec ou Elizabeth Browning - viam, por trás da aparente frivolidade dos
fenômenos, algo mais sério, que iria certamente abalar e depois fazer ruir os
fundamentos do materialismo e do cepticismo. A maioria dos praticantes do
Espiritismo de então era constituída de gente ainda despreparada para o
conhecimento da grande verdade que despontava. Como toda novidade fora do
comum, atraiu, a fenomenologia, uma multidão de espíritos irrequietos que, em
vez de estudarem a sério a questão, ainda mais a tumultuavam. E assim, não
seria de admirar que tantas pessoas, interessadas nas demonstrações espíritas,
não fossem mais que criaturas despreocupadas de qualquer conceito ético.
Na concepção de muita gente, aquilo
era mais um jogo de salão, para distrair visitas, do que os primeiros impulsos
de um grande, sério e nobre movimento a se projetar no futuro, para
reintegração da Humanidade no Cristianismo. Na opinião de Chesterton, era essa
exagerada popularização do Espiritismo que desagradava ao poeta. Acha mesmo que
provavelmente "a aversão de Browning pelos espíritas pouco ou mesmo nada
tinha a ver com o Espiritismo". Isto é, do que Browning desgostava não era
do Espiritismo, mas de certas criaturas que se diziam espíritas. Tinha o poeta
singular ojeriza a tudo quanto cheirasse a vulgaridade, desleixo, exibicionismo,
gestos de dúbia moral, como a qualquer irresponsabilidade ou anormalidade. Seu
recato físico e espiritual, por exemplo, chegava à soleira do exagero. Em carta
à sua amada Ba declara, pouco antes do casamento: "Começarei por pedir um
quarto separado do seu. Jamais poderia escovar os meus cabelos ou lavar o
rosto, penso, nem mesmo diante de meu próprio pai. Não poderia, estou certo,
tirar meu casaco diante de você agora - e porque o tiraria eu algum dia?"
Essa atitude, segundo
Betty Miller, ele a conservou até ao fim da vida. Na defesa do que lhe parecia
ameaçar o seu recato, assumia até atitudes violentas. Era um perfeito puritano,
no melhor sentido dessa palavra. A tese de Chesterton tem, assim, uma
contextura muito Iógica.
De qualquer forma, porém, a posição
do genial poeta, diante do Espiritismo, foi sempre de reserva e não se alterou
muito durante sua longa existência.
Apesar do incansável carinho com sua
Ba e do imenso amor que lhe dedicou, as conversas que ela mantinha com amigos
sobre Espiritismo eram bruscamente interrompidas quando ele entrava.
Em sua fabulosa correspondência, a
Sra. Browning frequentemente se refere ao desagrado que o Espiritismo causava
ao marido, que ficava "muito irritado" sempre que se mencionava o
incidente havido em Ealing, por exemplo, quando o casal de poetas teve contato
com o famoso médium escocês David Dunglas Home. Sobre isto diremos alguma coisa
mais adiante. O certo é que Elizabeth, em sua correspondência, implorava a
amigos e parentes que não mencionassem o assunto proibido em suas cartas e
acrescentou certa vez: "Os Espíritos são tabu nesta casa" (carta à
Sra. Jameson). E prosseguiu: "Nunca
poderia compreender porque, considerando diferentes idiossincrasias e
desiguais percepções
da verdade, não poderíamos todos consentir em tolerar as opiniões divergentes
uns dos outros: mas, isto é difícil, difícil na prática. Se eu achasse que
Robert estivesse errado em seu ponto de vista, eu seria capaz de fazer aquilo
por ele, ao passo que (julgando ele que estou completamente errada) não é capaz
de o fazer por mim, ou pelo menos não o quer." A esse texto Gardner
Taplin, mal disfarçando sua posição diante do Espiritismo, acrescenta
um comentário, dizendo que era muito fácil para ela falar em tolerância;
entretanto, ela própria sempre insistia em que "seu ponto de vista sobre o
Espiritismo é que era certo", e que, "se os "descrentes"
pelo menos abrissem o seu entendimento à nova evidência, todos concordariam com
ela".
Um dia recebeu o casal a visita de
Sir Edward Lytton e seu filho Robert. O velho Lytton narrou certos incidentes
com o médium David Dunglas Home, na casa dos Rymers, dois dias antes da sessão
realizada, no mesmo local, na presença dos Brownings e sobre a qual ainda
diremos alguma coisa. Sir Edward, cuja opinião naturalmente os Brownings
respeitavam, declarou que, a principio, duvidara da autenticidade das
manifestações e até
mesmo
chegou a acusar Home, frontalmente, de fraude, afirmando que as mãos
espirituais que vira eram, na realidade, as do próprio médium. Em face da
acusação, Home foi até à janela e chorou abundantemente. Depois, regressou ao
grupo e, colocando ambas as mãos nas de Sir Edward, repetiu as manifestações,
durante as quais apareceram diferentes tipos de mãos espirituais: uma grande e
forte, como a de um marinheiro, outra pequena, delicada e macia, como a de uma
senhora, e, finalmente, a de uma criança. Sir Edward experimentou procurar,
pelo tato, os braços aos quais se ligavam aquelas mãos e descobriu, com um calafrio
de horror, que "nada, nada havia além do pulso". Só então se
convenceu de que não houvera impostura. O testemunho de Sir Edward fez
Elizabeth sentir-se vitoriosa sobre o intransigente cepticismo do marido. Em
carta à irmã Henrietta, declarou então, profeticamente: "As manifestações
parecem estar se aprofundando e se fortalecendo em toda a parte, e, em breve,
serão fortes demais para os cépticos e intolerantes."
Os fatos que, naquela época, ainda
estavam no futuro e que ela percebera na sua maravilhosa intuição, são hoje,
para nós, passado e presente e estão provando que quem tinha razão era a doce
Ba e não o impetuoso Robert Browníng .
Elizabeth Browning
Na primavera de 1858, recebeu o
casal de poetas uma visita importante, a de Nathaniel Hawthorne. Achou este
que, apesar do alto quilate dos presentes (havia quatro escritores na sala), a
conversa era cacete, pois que tratava principalmente "desse desagradável e
agora cansativo assunto do Espiritismo". Enquanto Robert, na sua maneira
entusiástica, denunciava Home como um charlatão, Hawthorne achou que o mistério
daquele assunto estava já liquidado, mas Elizabeth ainda apresentou um
comentário de desculpa. Nas palavras de Julian Hawthorne, tanto seu pai
(Nathaniel), como Robert Browing,
"abominavam" toda aquela história de Espiritismo.
Afinal, porque aquela ojeriza de
Robert pelo célebre médium, cujas faculdades foram atestadas e inteiramente
postas fora de dúvida por dezenas de observadores idôneos?
Grave incidente com David Dunglas
Home é amplamente comentado por todos os biógrafos. A história começou assim:
Elizabeth e Robert Browning compareceram a uma sessão com David D. Home, em
casa de uns amigos, a família Rymer, que, na ocasião, hospedava o famoso médium
escocês. Durante a sessão, uma coroa de flores elevou-se no ar, partindo da
mesa onde estivera inicialmente depositada, flutuou por alguns instantes e começou
a mover-se na direção de Elizabeth. Nesse momento, movido não se sabe por que
impulso, Robert levantou-se, cruzou a sala e foi colocar-se ao lado da esposa.
Chesterton entende natural a atitude de Robert que, como esposo dedicado e
amoroso que sempre fora, nada mais quis que ficar junto dela, num momento em
que, tomada pela excitação do
inabitual, talvez ela até precisasse de algum apoio, pois que, inegavelmente,
Elizabeth se tornava a figura central de uma experiência - genuína ou não, diz
Chesterton - mas incomum. O certo é que Home, nas suas memórias, "Incidents of my Life",
declarou que Robert fora postar-se ao lado da esposa na esperança de que a coroa
fosse pousar na sua própria cabeça e não na dela. E como não o foi, começou a
alimentar uma aversão tenaz pelo
Espiritismo, Chesterton, com toda a justiça, declara a ideia perfeitamente
absurda, pois um poeta da estirpe moral de Robert Browning seria incapaz de um
gesto tão ridículo e tolo. Sabemos, de outros exemplos da vida de ambos, que
Robert sempre venerou e admirou a esposa. Frequentemente repetiu que a
considerava superior a si mesmo em capacidade
intelectual e como poeta. Elizabeth era, na verdade, uma criatura de gênio, no
que de melhor possa significar essa palavra de que tanto se tem abusado. Uma
amiga lembra-se de ter visto sua Bíblia em hebreu toda anotada em grego, Robert
a amava profundamente e a respeitava como um ser altamente evolvido. Em uma das
famosas cartas,
no tempo em que ela era uma infeliz inválida, no número 50 da rua Wimpole, em
Londres, ele declara sem rebuços: "Sei que você é imensuravelmente
superior a mim." Noutra carta, das muitas em que transbordou o seu imenso
carinho por aquela mulher excepcional, dizia comovido: "Descanso em você
para toda a vida e para a morte, minha amada." E ainda, depois de muito
discutirem epistolarmente quem seria o orientador do casal, escreveu ele, para
transmitir-lhe sua decisão final: "Você pensará por mim: eis a minha
ordem."
Bem, isso poderia ser coisa de
namorado, dirão. Não foi. Mais tarde, já casados, na Itália, era dever-se o
entusiasmo autêntico com que ele preparava a publicação dos versos da esposa.
Jamais teve a mínima parcela de ciúmes quanto aos respeitáveis êxitos
literários dela. Ao passo que ele muito teria que esperar para ver seus versos
apreciados pelo público leitor, Elizabeth conheceu o êxito logo cedo, tanto de
venda como de crítica...
Não confere, pois, com o retrato
moral e com a estatura intelectual de Robert, a suposição que dele deixou o
médium David D. Home.
Sabe-se, porém, que Elizabeth também
o tratava com igual admiração e respeito, proclamando lhe, com sinceridade e
emoção, o gênio.
Após o incidente com as flores, a
sessão acima referida continuou. Houve execução de música por mãos espirituais,
num acordeão; uma pequena mesa foi levantada e inclinada para um lado. Por fim,
Home caiu em transe e, como diz Taplin, "pretendeu estar falando pelo Espírito
de um dos filhos do casal Rymer", já falecido. Comentando esse fato, em
carta à irmã Henrietta, Elizabeth acha que o desgosto de Robert com a sessão
foi mais por causa das tolices que Home dissera, que propriamente pelo resto. A
certa altura, Robert desejou segurar uma das mãos materializadas, a fim de
investigar melhor o fenômeno, mas o casal Rymer não o permitiu e ele não
insistiu. Elizabeth, entretanto, confessa ter deixado a sessão com suas
opiniões sobre o Espiritismo, confirmadas. Na verdade levou até para casa a
coroa de flores e a guardou por muito tempo, até que, já murcha e empoeirada,
foi jogada ao lixo.
Robert mostrou-se muito insatisfeito
com o que presenciara naquela sessão, em Ealing, na casa dos Rymers . Propôs, à
Sra. Rymer, que lhe arranjasse uma outra sessão com Home, mas não pode ser
atendido por causa de outros compromissos dela. Pouco depois, no entanto, Home,
acompanhado da Sra. Rymer e de um filho desta, compareceu ao apartamento dos
Brownings, que então se achavam, por algum tempo, em Londres. A única narrativa
que temos do encontro - observe o leitor bem este ponto - é a do próprio médium
David D. Home. Contudo, embora descontando algum exagero do narrador, a cena
deve ter sido muito penosa para todos, especialmente para Elizabeth, dado o seu
natural nervosismo e sua aguda sensibilidade. Conta-se que Browning
cumprimentou a Sra. R:ymer e seu filho, mas recusou-se a apertar a mão do
médium. "Com um ar trágico, colocou
a mão no seu ombro esquerdo e afastou-se em largos passos." Elizabeth
ficou extremamente chocada e mostrou-se "muito pálida e agitada".
Colocando suas mãos na de Home, desculpou-se da atitude do marido. No meio da
confusão, Browning regressou ao grupo e começou a falar agitadamente à Sra.
Rymer, reprovando o ocorrido na casa dela durante a sessão anterior e
reclamando por não lhe ter ela conseguido outra sessão com o médium. Quando
Home tentou explicar-se, em lugar da Sra. Rymer, Robert fê-lo calar-se. O
médium insistiu em que tinha o direito de defender-se, no que foi apoiado pela
Sra. Rymer. Browning,
então, ficou "pálido de raiva e seus movimentos, ao pender para a frente e
para trás, eram os de um maníaco". Em seguida, Home deixou a casa, para
infinita angústia de Elizabeth que estava a ponto de desmaiar. Embora a narrativa
de Home seja certamente exagerada, é, certo que Robert manifestou-lhe
claramente seu ponto de vista, com a franqueza que o caracterizava. Ele
próprio, aliás, o diz em carta à Srta. De Gaudrion. Falando
na terceira pessoa, Robert confessa que: "O Sr. Browning encontrou alguma
dificuldade em evitar a expressão ofensiva de seus sentimentos em casa dos ......... (Rymers); contudo, já teve oportunidade de encontrar-se com O' Sr.
Home, com quem se desabafou."
Em 29 de Junho de 1861, Elizabeth
partiu para o Além, não antes de deixar com ele uma herança espiritual e
artística das mais belas que se conhece em literatura. Os 44 sonetos que lhe
escreveu quando ainda solteira, foram mais tarde colocados no pináculo da
poesia mundial de todos os tempos. Tennyson achava que não havia nada de melhor
em versos
de amor, na língua inglesa. "Nem os sonetos de Shakespeare podem ser
comparados com eles, enquanto que os de Petrarca parecem meros lugares comuns
perto daqueles. "O próprio Robert escolheu-lhes um título, chamando-lhes
"Sonnets from the Portuguese" ("Sonetos da Portuguesa"). A
ideia lhe veio de um soneto da própria Elizabeth, denominado "Catarina a
Camões".
Em 6 de Março de 1849, ela lhe dera
também um filho, que, como o pai, o avô e o bisavô, chamou-se Robert - Robert
Wiedemann Barrett Browning. Nascido na Itália e lá mesmo criado, o menino
sempre desejou ser italiano, a despeito de alguma educação inglesa. Em pequeno,
com sua linguinha confusa, acabou modificando seu nome Weidemann para Penini,
mais tarde abreviado para Pen. Viveu até aos 57 anos e não deixou descendentes.
Também em 1849, quase no dia do
nascimento de Penini, morreu Sarah Anna Browning, a adorada mãe do poeta, que a
amava com a mais doce e apaixonada ternura filial. Dela escreveu a Sra.
Sutherland Orr, afirmando seu "cristianismo distintamente
evangélico". A dor de Robert foi tal que Elizabeth confessou jamais ter
visto coisa igual. O
poeta sobreviveu 28 anos à esposa e 40 anos à sua mãe.
Em 1866 morreu-lhe também o pai, já
aos 85 anos de idade. Todos os biógrafos são unânimes em traçar um esboço
simpático do velho Browning, "um homem em quem - segundo Chesterton - é
impossível pensar sem alguma emoção, um homem que viveu quieta e
persistentemente para os outros, a quem Browning (o poeta) deve mais do que
seria fácil imaginar, a quem, com toda a probabilidade, principalmente, devemos
nós o próprio Browning".
A irmã de Robert, Sariana, que o
acompanhou fielmente durante os últimos anos, desde que o pai lhes morrera,
ainda sobreviveu por três anos ao poeta, irmão e amigo.
Diante de uma existência tão
intensamente vivida, que pensaria o poeta dos grandes problemas do Espírito?
Sabemos que: na juventude, sua
paixão por Shelley o levou ao ateísmo e ao vegetarianismo. Mas isso passou. Ao
que se depreende do estudo de sua vida, grande parte dela viveu-a o poeta no
cepticismo. Faltava-lhe provavelmente uma crença mais racional e lógica que seu
cérebro de escol pudesse admitir, sem violências. Do Espiritismo que surgia, conheceu
apenas a parte menos indicada a fascinar lhe a inteligência e o coração. Por ai
se vê como é grande e séria a responsabilidade dos médiuns. Não podemos sequer
imaginar qual teria sido a vida de Robert Browning se os fenômenos espíritas,
que se produziram em sua presença, tivessem sido de maneira a impressioná-lo
favoravelmente...
Quanto à glória, só mais tarde a
alcançou, quando publicou o livro intitulado "The Ring and the Book" ("O Anel e o Livro"), sobre o
qual ainda diremos algo. Em 13 de Março de 1869, Sua Majestade a Rainha
recebeu, para conhecer pessoalmente, os dois maiores escritores da época - diz
o "Court Circular" - Thomas Carlyle e Robert Browning, que se
colocavam "cabeça e ombros acima de seus contemporâneos". Uma semana
depois, o "Athenaeum" anunciava a publicação
de "The Ring and the Book",
que, no dizer de um articulista, "sem nenhuma comparação, era a suprema
realização poética do nosso tempo", "o mais precioso e profundo
tesouro espiritual que a Inglaterra já produziu, desde os dias de Shakespeare".
Vejamos a história desse livro, que
muito nos interessa.
Robert, ainda na Itália, passava por
um dos pontos mais baixos de sua carreira de poeta. Como dizia Elizabeth, o
público da língua inglesa ainda não reconhecera o gênio dele e seus livros
caíam no silêncio da indiferença. Robert já não tinha vontade de escrever mais
versos. Ter-se-ia secado sua fonte de inspiração? Perdera o estimulo? O caso
vem contado no livro de Frances Winwar - "Elizabeth - The Romantic Story of Elizabeth Barrett Browning"
(Edição da World Publishing Co., Cleveland e Nova York).
Os Brownings já estavam morando na
Casa Guidi. Certa manhã, Robert saiu para seu passeio habitual. Subitamente,
ele próprio contou mais tarde, misteriosa mão apareceu acima de seu ombro.
Parecia indicar certa direção e o poeta a seguiu docilmente. Atravessou a praça
do mercado até à estátua de Baccio BandineIli. Lá, ao canto da Piazza San
Lorenzo, numa pilha de velharias, encontrou um livro quadrado, encadernado em
pelica amarela. Era um livro antigo, do qual o poeta leu, mesmo a caminho de
casa, o suficiente para "saber que narrava a história de um crime que em
1698 abalara a cidade de Roma. Ali estava o tema de sua obra-prima.
Assim surgiu "The Ring and
the Book".
Vemos, portanto, que a despeito de
suas divergências com o Espiritismo - e como quase sempre acontece - o poeta
era médium. Provavelmente algum Espírito bondoso, desejando retirá-lo do
marasmo em que se deixara escorregar, levou-o a um assunto que poderia trazer
novamente à tona todo o seu fabuloso poder criador.
Outra vez, pensando em Elizabeth, no
seu gabinete de trabalho, ocorreu-lhe interrogar o futuro, através de qualquer
livro que lhe caísse às mãos. Quais seriam as perspectivas de seu amor por
Elizabeth? Tomou um livro e sentiu-se desanimado:
tratava-se
de uma prosaica e comum gramática italiana. Em todo caso abriu uma página ao
acaso e leu um exercício de tradução que dizia assim: "Se amarmos no outro mundo como amamos neste,
amar-te-ei pela eternidade a fora."
Haveria mais bela mensagem de amor?
Também ela, no último de seus
famosos "Sonetos da Portuguesa", tem estes versos magníficos, numa
poderosa intuição do futuro:
“ I love thee with the love I seemed to lose
With my lost saints - I love thee with the breath,
Smiles, tears, of all my life! - and, if God choose,
I shall but love love thee better after death."
Não vou tentar
traduzi-los porque não tenho competência para voar tão alto, em companhia tão
nobre, mas posso transmitir ao leitor a ideia fundamental dos versos. Confessa
amá-lo com todo o amor que dedicava aos santos; com o seu próprio hálito, os
sorrisos e as lágrimas de toda uma vida, e conclui: "se Deus o quiser,
amar-te-ei, ainda mais, depois
da morte".
E, o poeta, que pensaria da morte?
Depois de perder uma de suas
queridas amigas, já algo adiantado em idade, Browning voltou a cogitar sobre as
velhas questões de vida e morte. Por coincidência, ainda uma semana antes do
passamento dela, como ele próprio diz - daquela "antiga e preciosa amiga", estiveram conversando sobre esse
assunto. E escreve: "Sobrevive a
alma ao corpo? Existe Deus, sim ou não?" Quais seriam, porém, as
respostas que o poeta encontrava no fundo do coração? Seus versos falam dessas
ideias, pois que sua preocupação com os temas religiosos é permanente. Uma vez
confessou que "nada menos que uma
segunda vida poderia compensar os desapontamentos e deficiências da presente
existência". Seu invencível
otimismo jogava com a chance da sobrevivência, mas, ao que sabemos, o poeta não
estava muito certo dela.
Já uma vez perguntara, num poema: "God's in his heaven / All's right with the world?” (Deus está no céu. Tudo está
direito no mundo?) Na interpretação de um dos seus críticos, essas linhas
significam que o poeta achava que, se havia um Deus no céu, não poderia existir
nada errado no mundo. Ainda não sabia ele que os erros do mundo não são de
Deus, mas dos homens mesmos que desobedecem às leis do Pai.
Elizabeth, ao contrário, não teve
dessas inquietações: viveu e morreu alimentada pela fé inabalável na
sobrevivência do Espírito e na comunicabilidade entre vivos e mortos. Anos
depois de sua morte, seu filho Robert (Penini), em carta ao "The Times", de Londres, tentou
fazer crer que sua mãe abandonara sua fé nos Espíritos, mas a evidência em
contrário é esmagadora. Todos sabiam que Elizabeth, em lugar de mudar de ideia,
mais e mais se firmou nela, com o decorrer dos anos. Um de seus biógrafos chega
a supor que a carta de Robert Wiedemann foi uma simples cobertura que ele quis
dar à memória de sua mãe, procurando desligá-la do Espiritismo que continuava a
encontrar tenaz resistência por parte da ortodoxia religiosa e científica.
Quanto a Robert Browning, parece que
às vezes sentia a nostalgia de Deus. No seu famoso poema "The Guardian Angel" (O Anjo da
Guarda), inspirado num quadro de
Guercino, em Fano, começa ele com um apelo. O quadro representa um anjo, com
uma criança pela mão, ensinando-a a orar. Browning sentia-se fascinado pela
tela. Nos seus versos,
tão belos, pede ao anjo que, depois de ajudar a criança, estenda as suas asas
sobre o poeta. E sugere ao "Pássaro de Deus" que, tal como fazia ao
garoto, também o ensinasse a juntar as mãos em prece. Em breve - prossegue -
todos os erros do mundo estariam reparados, porque o poeta os veria com
diferentes olhos, olhos curados pelo anjo. Veria o mundo tal como Deus o fez:
todo belo.
Aí está um apagado esboço da vida
desses dois grandes Espíritos. Consultando o nosso coração, vem-nos a pergunta
inevitável: onde e como estarão hoje esses dois seres excepcionais? Teria
Robert Browning voltado à carne, sem a sua Ba querida e sem a presença adorada
de Sarah Anna, sua mãe inesquecível? Teria ele regressado para redimir a
memória de Sludge? Desejaria oferecer aos sábios mentores da Espiritualidade
seu cérebro poderoso e magnífico, para que a luz do Espiritismo se derramasse
mais abundantemente que nunca neste mundo de provas e de dores?
Talvez, porque assim ensina o
Espiritismo. Os opositores de ontem são os aliados de hoje; os contraditores de
hoje serão os seareiros de amanhã. Aqueles que numa existência o combatem,
voltam, na seguinte, para regá-lo com o suor bendito dos seus rostos e clarear
o caminho, para outros irmãos, com a luz de suas inteligências.
O majestoso Espírito do poeta, que
tanta beleza espalhou pela Terra, na sua última passagem, talvez escolhesse,
então, uma existência de renúncia e de humildade, como dócil instrumento da
Verdade, do amor divinizado do Cristo, da caridade renovadora. Legiões de
Espíritos superiores estariam prontos a amparar o antigo poeta, acompanhando-o,
lá da amplidão dos espaços infinitos, porque àquele Espírito luminoso faltou
tão pouco para alçar o voo final na direção da luz mais alta, em companhia
daqueles a quem tanto ama.
Que Jesus derrame sobre esse nobre
Irmão, onde estiver, as bênçãos inesgotáveis do seu infinito amor, não lhe
removendo do caminho os obstáculos, mas fortalecendo e amparando seu Espírito e
sua vontade para as lutas e as vitórias da caminhada.
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