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domingo, 8 de março de 2015

O Banquete dos Passarinhos


O Banquete
dos Passarinhos
José Brígido /(Indalício Mendes)
Reformador (FEB) Dezembro 1955

            Chiquinho gostava extraordinariamente de caçar pássaros. Armava alçapões, besuntava de visgo os galhos das árvores, armava-se de estilingue (atiradeira), enfim, realizava com estranha alegria tudo quanto era possível para perseguir os passarinhos. Seus pais bem que o aconselhavam a não maltratar as avezinhas. Algumas vezes chegou a ser castigado, mas não se emendava.

            - Não sei, Pedro, porque o Chiquinho é assim. Não “saiu” a nenhum de nós. Você é bom, protege os animais, ajuda-os e procura impedir que sejam perseguidos. Eu, por minha vez, não gosto também de maldades com as pobrezinhos. Por isto, não sei a quem o Chiquinho “saiu” assim, tão inclinado a essas perversidades - deplorava sua mãe.

            - Isso é da idade, minha filha. Depois, com o tempo, ele deixará os passarinhos em paz e cuidará de outra coisa... - respondia o marido, intimamente desolado, mas desejoso de consolar a mulher.

            - Não sei... Desgosto-me ao ver o Chiquinho regalar-se com o sofrimento que impõe aos “bichinhos”. Sabe o que fez ontem?

            E ao proferir estas palavras, a pobre mãe desatou a chorar convulsivamente. O esposo, solícito, correu a abraçá-la:

            - Que é isso, Lucina?! Que aconteceu?! Não chore desse modo ... Conte-me o que houve...

            Conseguindo a custo sopitar as lágrimas, ela contou, entre soluços:

            - Imagine você o que o Chiquinho fez: prendeu um beija-flor no alçapão; depois, tirou-o e, segurando-lhe as débeis perninhas, rasgou-o em dois! O pranto impediu que Lucina continuasse.

            O marido, partilhando de sua dor, procurou confortá-la:

            - Ele não fez isso por maldade. É criança; não tem noção do que é mau, Lucinda. Vamos explicar-lhe que isso não se faz, porque o passarinho, como uma criancinha: não tem defesa e sente muitas dores, quando é machucado.

            - Tudo isso eu já lhe disse, Pedro. Mostrei-lhe que não é direito o que fEz. Perguntei se ele não havia sentido forte dor quando, no outro dia, arranhou a perna num prego. Em seguida, para ter uma ideia de sua reação, indaguei se ele não mais maltrataria os passarinhos.

            Ele me disse que ia matar todos os que apanhasse...

            Naquela noite, o ambiente foi dos mais sombrios, na casa do Chiquinho. Seus pais não conseguiram dormir e o menino, agitado, mostrava um sono inquieto, consequente talvez das severas repreensões paternas. Pela madrugada, Chiquinho despertou, aos gritos. Ardia em febre. Os olhos dilatados, como se fôsse presa de hórrido pavor, davam-lhe o aspecto de um louco.

            Pedro e Lucina ficaram desesperados. Chamaram o médico, que receitou umas poçõezinhas, sem que o pequeno melhorasse. Pela manhã, seu estado era o mesmo. De quando em quando, Chiquinho gritava e saltava, como se estivesse sendo perseguido. Durante horas assim permaneceu, febricitante, agitado, sem conhecer os pais. Outro médico foi chamado e disse supor tratar-se de uma ameaça de meningite. Durante todo o dia, foi intensa a luta para restabelecer a saúde do menino. Todos os recursos, entretanto, falharam.

            Eis que uma amiga da família lembrou:

            - Porque não chama dona Marieta? Ela é espírita e talvez dê um jeito nisso...

            A ideia foi aceita com simpatia. Aliás, em tais circunstâncias, qualquer sugestão salvadora teria sido benvinda. Uma hora depois dona Marieta chegava. Após as apresentações e cumprimentos habituais, ela pediu:

            - Tragam-me um copo d’água. Agora, elevemos o pensamento até Jesus e solicitemos sua proteção para todos nós, principalmente para esse pequenino que está enfermo.

            O grupo se uniu numa prece fervorosa.

            Dona Marieta, que era médium auditivo e vidente, pôs a mão espalmada sobre o copo e começou a falar:

            - Espíritos de baixa condição moral cercam esta criança. Um deles traz nas mãos fieiras de pássaros dilacerados. Têm o olhar bestial dos vampiros. Não querem afastar-se do menino, a quem estão ligados, segundo dizem, desde outras vidas. Olhem a água do copo, cada um por sua vez, e não digam nada antes que eu pergunte.

            Pedro se aproximou e empalideceu. Em seguida, a mãezinha sofredora se aproximou, a medo, lançou furtivo olhar para o copo e recuou, quase gritando de horror. Logo após, a amiga da família se acercou, olhou-o atentamente e se retirou, perplexa.

            - Que viu o senhor?

            - Dona Marieta, pode ser ilusão, mas o que vi foi um homem de mau aspecto...

            - Basta. E a senhora, dona Lucina?

             A mãe de Chiquinho, chorando, mal pode esclarecer: 

            - Vi um monstro babando sangue... Que horror! que horror!

            - E a senhora, dona Margarida?

            - Olhei bem, dona Marieta. Vi um homem semi selvagem, com a boca e as mãos ensanguentadas, tendo atrás de si outros vultos estranhos, que pareciam temê-lo...

            - Está bem . Esse menino sofre a influência de pesadíssima carga de fluidos negros.

            Coitadinho! - exclamou Lucina.

            - Compreendamos que essa criança teve  outras vidas e nelas contraiu compromissos com elementos de baixo nível espiritual. Foi caçador e um dia se negou a dividir com esses companheiros o produto de abundante caçada. Por causa disso, cortaram lhe a existência. Durante anos se viu perseguido no Espaço por entidades maléficas, às quais se juntaram os comparsas, que também já haviam desencarnado. Seu sofrimento foi grande. Um dia, alcançou a luz do entendimento e pediu ao Pai que lhe perdoasse os desatinos. Assumiu, então, o compromisso de reencarnar e não mais se dedicar à morte de indefesos pássaros e animais. Entretanto é o que ouço neste instante, cedeu às injunções dos companheiros que se encontram no plano espiritual. Vem cometendo atos que muitos desgostos tem trazido, não vem?

            - Sim - responderam, quase ao mesmo tempo, Pedro e Lucina.

            - Depois de haver dilacerado um pobre beija-flor, seu Espírito, durante o sono, foi advertido no Espaço, pelo Guia que o acompanha, ao qual ele reiteradamente tem desatendido. Em virtude de sua rebeldia, entidades trevosas o acometeram, satisfeitas, pois elas é que lhe inspiram as maldades que vocês todos conhecem, por encontrarem nele receptividade.

            Era profundo o silêncio. Depois de pequena pausa, dona Marieta acrescentou:

            - Temos todos de trabalhar muito e lançar mão de nossas armas: a vigilância e a prece. Assim estabeleceremos uma corrente fluídica com os nossos amigos invisíveis, protegendo-lhe o Espírito. E assim foi feito com absoluta regularidade.

            Uma semana depois; Chiquinho achava-se bem melhor. Não parecia o mesmo menino. Estava sossegado e obediente. Todavia, dava a impressão de que guardava alguma lembrança do terrível “sonho” que tivera, porque respondeu assim, certa vez, quando, para experimentá-lo, dona Marieta, aparentando alegria, ponderou:

            - Que bonito bem-te-vi! É pena não poder apanhá-lo...

            Chiquinho, como se houvesse recebido um choque, respondeu:

            - Não faça isso, não, dona Marieta. Eu também fui muito mau com os passarinhos, mas eles se juntaram e me fizeram ficar doente...  Agora, não quero mais maltratá-los...

            - Mas, como foi que eles fizeram, Chiquinho ?

            - Eu sonhei que todos os passarinhos que eu machuquei e matei me prenderam e me levaram para uma sala grande, onde havia uma fogueira enorme. Amarraram-me perto da fogueira e a toda hora eles me beliscavam a cabeça, os olhos, o corpo. Uns homens feios riam muito. Eu via papai e mamãe, chamava por eles, mas não me ouviam. Depois que eu pedi perdão, apareceu um homem todo de branco e iluminado, que fez os homens feios fugirem.

            -Ele acarinhou os passarinhos e me disse que tudo para mim ia melhorar e eu poderia ver papai e mamãe, se não maltratasse mais os passarinhos...

            Pedro e Lucina, encantados com a vivacidade de Chiquinho, sorriam, benévolos; mas dona Marieta, discreta, fez-lhes sinal, pois desejava falar-lhes depois. Entrementes, respondeu a Chiquinho:

            - Viu, meu filho, o que acontece às crianças que maltratam os pássaros e os animais! Nunca se deve praticar maldades. Os meninos bons e obedientes, que ouvem as palavras de seus papais, de suas mamães, das vovós e de outras pessoas idosas, são sempre protegidas por Papai do Céu. Não devemos bater nos passarinhos, e nos animais. Não devemos bater em ninguém, nem nas plantas, nem nas árvores. Você não gosta de ser bem tratado, Chiquinho!

            - Gosto, sim, senhora.

            - Então. Todos gostam de ser bem tratados. Se nós formos bons para todos, todos serão bons para nós. Nunca mais machuque algum passarinhos, ouviu? Seja amigo deles e eles virão cantar para você, contentes, porque sabem perdoar aos que se arrependem do mal feito.

            Carinhosa, dona Marieta abraçou-o e beijou-o.

            - Bem: vá brincar com o seu barquinho.

            Quando chegar a hora de dormir, peça a Jesus para que o ampare, porque você agora é muito amigo dos pássaros e dos animais, ouviu?

            - Sim, senhora.

            - Até amanhã. Ah! Estamos perto do Natal. Que é que você deseja ganhar de Jesus?

            Chiquinho ficou indeciso por alguns instantes. Depois, explicou:

            - Quero um cavalo de pau, com rodas nos pés, todo branco.

            - Só?

            - Quero uma porção de alpiste, um saco grande, assim, p'ra dar a todos os passarinhos do mundo!..

            - Então, seja sempre bonzinho e tudo acontecerá como você deseja.
Retirando-se, dona Marieta procurou Pedro e Lucina:

            - Muito mais significativo do que parece é a história que o Chiquinho contou como sonho. Vítima de Espíritos obsidentes, ele sofreu, efetivamente, os padecimentos que narrou em sua linguagem infantil. Embora atento para que nada ocorresse em demasia, seu Espírito-guia e outros Espíritos amigos permitiram que os obsessores agissem de tal modo, porque somente assim seria possível chamar o Espírito de Chiquinho à realidade para as obrigações assumidas antes, de reencarnar. Agora, precisamos conduzi-lo com muita cautela, distraindo-lhe a atenção desse episódio impressionante. Sua mente infantil deve permanecer liberta de qualquer recordação anterior ligada a esses fatos. A melhor defesa está na prece diária, feita com o coração, porque Jesus e seus numerosos trabalhadores não descansam na luta contra a treva e contra o mal.
           
*

            Os dias se passaram sem novidade digna de nota, até que chegou o Natal. Pela madrugada, um fato insólito ocorreu. Um bando de beija-flores invadiu a casa de Chiquinho, seguido de uma infinidade de outros pássaros multicores. Os trinados maviosos despertaram o menino, que experimentou inusitada alegria.

            - Vem ver, mamãe! Vem! - gritava ele, contente.

            Lucina e Pedro, de mãos dadas, contemplaram o inesquecível espetáculo. Nunca haviam visto coisa igual. Os passarinhos não demonstravam temor algum: voavam em torno da cabeça de Chiquinho, fazendo graciosas evoluções. E ele, sorridente e feliz, encheu a casa de alpiste, oferecendo aos alados visitantes o banquete que selava definitivamente sua amizade com tão belos e graciosos amiguinhos.


            Jamais ele poderá esquecer um Natal como esse. Jamais!..

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