O Banquete
dos
Passarinhos
José Brígido /(Indalício
Mendes)
Reformador (FEB) Dezembro 1955
Chiquinho gostava extraordinariamente
de caçar pássaros. Armava alçapões, besuntava de visgo os galhos das árvores,
armava-se de estilingue (atiradeira), enfim, realizava com estranha alegria
tudo quanto era possível para perseguir os passarinhos. Seus pais bem que o
aconselhavam a não maltratar as avezinhas. Algumas vezes chegou a ser
castigado, mas não se emendava.
- Não sei, Pedro, porque o Chiquinho
é assim. Não “saiu” a nenhum de nós. Você é bom,
protege os animais, ajuda-os e procura impedir que sejam perseguidos. Eu, por
minha vez, não gosto também de maldades com as pobrezinhos. Por isto, não sei a
quem o Chiquinho “saiu” assim, tão inclinado a essas perversidades - deplorava
sua mãe.
- Isso é da idade, minha filha.
Depois, com o tempo, ele deixará os passarinhos em paz e cuidará de outra
coisa... - respondia o marido, intimamente desolado, mas desejoso de consolar a
mulher.
- Não sei... Desgosto-me ao ver o
Chiquinho regalar-se com o sofrimento que impõe aos
“bichinhos”. Sabe o que fez ontem?
E ao proferir estas palavras, a
pobre mãe desatou a chorar convulsivamente. O esposo, solícito, correu a
abraçá-la:
- Que é isso, Lucina?! Que
aconteceu?! Não chore desse modo ... Conte-me o que houve...
Conseguindo a custo sopitar as
lágrimas, ela contou, entre soluços:
- Imagine você o que o Chiquinho fez:
prendeu um beija-flor no alçapão; depois, tirou-o e, segurando-lhe as débeis
perninhas, rasgou-o em dois! O pranto impediu que Lucina continuasse.
O marido, partilhando de sua dor,
procurou confortá-la:
- Ele não fez isso por maldade. É
criança; não tem noção do que é mau, Lucinda. Vamos explicar-lhe que isso não
se faz, porque o passarinho, como uma criancinha: não tem defesa e sente muitas
dores, quando é machucado.
- Tudo isso eu já lhe disse, Pedro.
Mostrei-lhe que não é direito o que fEz. Perguntei se
ele não havia sentido forte dor quando, no outro dia, arranhou a perna num
prego. Em seguida,
para ter uma ideia de sua reação, indaguei se ele não mais maltrataria os
passarinhos.
Ele me disse que ia matar todos os
que apanhasse...
Naquela noite, o ambiente foi dos
mais sombrios, na casa do Chiquinho. Seus pais não conseguiram dormir e o
menino, agitado, mostrava um sono inquieto, consequente talvez das severas
repreensões paternas. Pela madrugada, Chiquinho despertou, aos gritos. Ardia em
febre. Os olhos dilatados, como se fôsse presa de hórrido pavor, davam-lhe o
aspecto de um louco.
Pedro e Lucina ficaram desesperados.
Chamaram o médico, que receitou umas poçõezinhas, sem que o pequeno melhorasse.
Pela manhã, seu estado era o mesmo. De quando em quando, Chiquinho gritava e
saltava, como se estivesse sendo perseguido. Durante horas assim permaneceu, febricitante,
agitado, sem conhecer os pais. Outro médico foi chamado e disse supor tratar-se
de uma ameaça de meningite. Durante todo
o dia, foi intensa a luta para restabelecer a saúde do menino. Todos os
recursos, entretanto, falharam.
Eis que uma amiga da família
lembrou:
- Porque não chama dona Marieta? Ela
é espírita e talvez dê um jeito nisso...
A ideia foi aceita com simpatia.
Aliás, em tais circunstâncias, qualquer sugestão salvadora teria sido benvinda.
Uma hora depois dona Marieta chegava. Após as apresentações e cumprimentos
habituais, ela pediu:
- Tragam-me um copo d’água. Agora,
elevemos o pensamento até Jesus e solicitemos sua proteção para todos nós,
principalmente para esse pequenino que está enfermo.
O grupo se uniu numa prece
fervorosa.
Dona Marieta, que era médium
auditivo e vidente, pôs a mão espalmada sobre o copo e começou a falar:
- Espíritos de baixa condição moral
cercam esta criança. Um deles traz nas mãos fieiras de pássaros dilacerados.
Têm o olhar bestial dos vampiros. Não querem afastar-se do menino, a quem estão
ligados, segundo dizem, desde outras vidas. Olhem a água do copo, cada um por
sua vez, e não digam nada antes que eu pergunte.
Pedro se aproximou e empalideceu. Em
seguida, a mãezinha sofredora se aproximou, a medo, lançou furtivo olhar para o
copo e recuou, quase gritando de horror. Logo após, a amiga da família se
acercou, olhou-o atentamente e se retirou, perplexa.
- Que viu o senhor?
- Dona Marieta, pode ser ilusão, mas
o que vi foi um homem de mau aspecto...
- Basta. E a senhora, dona Lucina?
A mãe de Chiquinho, chorando, mal pode
esclarecer:
- Vi um monstro babando sangue...
Que horror! que horror!
- E a senhora, dona Margarida?
- Olhei bem, dona Marieta. Vi um
homem semi selvagem, com a boca e as mãos ensanguentadas, tendo atrás de si
outros vultos estranhos, que pareciam temê-lo...
- Está bem . Esse menino sofre a
influência de pesadíssima carga de fluidos negros.
Coitadinho! - exclamou Lucina.
- Compreendamos que essa criança
teve outras vidas e nelas contraiu compromissos
com elementos de baixo nível espiritual. Foi caçador e um dia se negou a
dividir com esses companheiros o produto de abundante caçada. Por causa disso,
cortaram lhe a existência. Durante anos se viu perseguido no Espaço por
entidades maléficas, às quais se juntaram os comparsas, que também já haviam
desencarnado. Seu sofrimento foi grande. Um dia, alcançou a luz do entendimento
e pediu ao Pai que lhe perdoasse os desatinos. Assumiu, então, o compromisso de
reencarnar e não mais se dedicar à morte de indefesos pássaros e animais.
Entretanto é o que ouço neste instante, cedeu às injunções dos companheiros que
se encontram no plano espiritual. Vem cometendo atos que muitos desgostos tem
trazido, não vem?
- Sim - responderam, quase ao mesmo
tempo, Pedro e Lucina.
- Depois de haver dilacerado um
pobre beija-flor, seu Espírito, durante o sono, foi advertido no Espaço, pelo
Guia que o acompanha, ao qual ele reiteradamente tem desatendido. Em virtude de
sua rebeldia, entidades trevosas o acometeram, satisfeitas, pois elas é que lhe
inspiram as maldades que vocês todos conhecem, por encontrarem nele
receptividade.
Era profundo o silêncio. Depois de
pequena pausa, dona Marieta acrescentou:
- Temos todos de trabalhar muito e
lançar mão de nossas armas: a vigilância e a prece. Assim estabeleceremos uma
corrente fluídica com os nossos amigos invisíveis, protegendo-lhe o Espírito. E
assim foi feito com absoluta regularidade.
Uma semana depois; Chiquinho
achava-se bem melhor. Não parecia o mesmo menino. Estava sossegado e obediente.
Todavia, dava a impressão de que guardava alguma lembrança do terrível “sonho”
que tivera, porque respondeu assim, certa vez, quando, para experimentá-lo,
dona Marieta, aparentando alegria, ponderou:
- Que bonito bem-te-vi! É pena não
poder apanhá-lo...
Chiquinho, como se houvesse recebido
um choque, respondeu:
- Não faça isso, não, dona Marieta.
Eu também fui muito mau com os passarinhos, mas eles se juntaram e me fizeram
ficar doente... Agora, não quero mais
maltratá-los...
- Mas, como foi que eles fizeram,
Chiquinho ?
- Eu sonhei que todos os passarinhos
que eu machuquei e matei me prenderam e me levaram para uma sala grande, onde
havia uma fogueira enorme. Amarraram-me perto da fogueira e a toda hora eles me
beliscavam a cabeça, os olhos, o corpo. Uns homens feios riam muito. Eu via
papai e mamãe, chamava por eles, mas não me ouviam. Depois que eu pedi perdão,
apareceu um homem todo de branco e iluminado, que fez os homens feios fugirem.
-Ele acarinhou os passarinhos e me
disse que tudo para mim ia melhorar e eu poderia ver papai e mamãe, se não
maltratasse mais os passarinhos...
Pedro e Lucina, encantados com a
vivacidade de Chiquinho, sorriam, benévolos; mas dona Marieta, discreta, fez-lhes
sinal, pois desejava falar-lhes depois. Entrementes, respondeu a Chiquinho:
- Viu, meu filho, o que acontece às
crianças que maltratam os pássaros e os animais! Nunca
se deve praticar maldades. Os meninos bons e obedientes, que ouvem as palavras
de seus papais, de suas mamães, das vovós e de outras pessoas idosas, são
sempre protegidas por Papai do Céu. Não devemos bater nos passarinhos, e nos
animais. Não devemos bater em ninguém, nem nas plantas, nem nas árvores. Você
não gosta de ser bem tratado, Chiquinho!
- Gosto, sim, senhora.
- Então. Todos gostam de ser bem
tratados. Se nós formos bons para todos, todos serão
bons para nós. Nunca mais machuque algum passarinhos, ouviu? Seja amigo deles e
eles virão cantar para você, contentes, porque sabem perdoar aos que se
arrependem do mal feito.
Carinhosa, dona Marieta abraçou-o e
beijou-o.
- Bem: vá brincar com o seu
barquinho.
Quando chegar a hora de dormir, peça
a Jesus para que o ampare, porque você agora é muito amigo dos pássaros e dos
animais, ouviu?
- Sim, senhora.
- Até amanhã. Ah! Estamos perto do
Natal. Que é que você deseja ganhar de Jesus?
Chiquinho ficou indeciso por alguns
instantes. Depois, explicou:
- Quero um cavalo de pau, com rodas
nos pés, todo branco.
- Só?
- Quero uma porção de alpiste, um
saco grande, assim, p'ra dar a todos os passarinhos do mundo!..
- Então, seja sempre bonzinho e tudo
acontecerá como você deseja.
Retirando-se,
dona Marieta procurou Pedro e Lucina:
- Muito mais significativo do que
parece é a história que o Chiquinho contou como sonho. Vítima de Espíritos
obsidentes, ele sofreu, efetivamente, os padecimentos que narrou em sua
linguagem infantil. Embora atento para que nada ocorresse em demasia, seu
Espírito-guia e outros Espíritos amigos permitiram que os obsessores agissem de
tal modo, porque somente assim seria possível chamar o Espírito de Chiquinho à
realidade para as obrigações assumidas antes, de reencarnar. Agora, precisamos
conduzi-lo com muita cautela, distraindo-lhe a atenção desse episódio
impressionante. Sua mente infantil deve permanecer liberta de qualquer
recordação anterior ligada a esses fatos. A melhor defesa está na prece diária,
feita com o coração, porque Jesus e seus numerosos trabalhadores não descansam
na luta contra a treva e contra o mal.
*
Os dias se passaram sem novidade
digna de nota, até que chegou o Natal. Pela madrugada, um fato insólito
ocorreu. Um bando de beija-flores invadiu a casa de Chiquinho, seguido de uma
infinidade de outros pássaros multicores. Os trinados maviosos despertaram o
menino, que experimentou inusitada alegria.
- Vem ver, mamãe! Vem! - gritava
ele, contente.
Lucina e Pedro, de mãos dadas,
contemplaram o inesquecível espetáculo. Nunca haviam visto coisa igual. Os
passarinhos não demonstravam temor algum: voavam em torno da cabeça de
Chiquinho, fazendo graciosas evoluções. E ele, sorridente e feliz, encheu a
casa de alpiste, oferecendo aos alados visitantes o banquete que selava
definitivamente sua amizade com tão belos e graciosos amiguinhos.
Jamais ele poderá esquecer um Natal
como esse. Jamais!..
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