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quarta-feira, 19 de junho de 2019

A doutrina do Padre Alta



A doutrina do Padre Alta
Lino Teles (Ismael Gomes Braga)
Reformador (FEB) Janeiro 1952

            Um dos livros notáveis deste século é, sem favor algum, O Cristianismo de Cristo e o dos seus Vigários, do Padre Mélinge, que o publicou com o pseudônimo de Padre Alta.

            Grande erudito e muito inspirado, conhecedor das línguas clássicas que guardam os originais e as primeiras traduções da Bíblia, isto é, hebraico, grego e latim, o ilustre sacerdote francês nos dá, em linguagem fácil, atraente, encantadora, uma quantidade enorme de ensinamentos do mais alto valor filosófico e religioso.

            O livro todo é formado de vinte conferências realizadas pelo autor e depois enfeixadas em volume de quatrocentas páginas. Sua imensa bondade ameniza de multo a crítica que tinha ele de fazer dos erros e desvios doutrinários cometidos primeiramente pelos judeus, organizados em ortodoxia, e, depois, pelos cristãos igualmente ortodoxos. Ortodoxia, explica-nos ele, quer dizer anátema, perseguição aos que pensem de modo diferente, é negação da lei de amor que forma o fundamento mesmo do Cristianismo. Consequentemente, uma ortodoxia cristã é. pois, uma contradição. Mais inconcebível, por certo, seria uma ortodoxia espírita, acrescentamos nós, porque, em Espiritismo, tudo é evolução e todos sabemos que a parcela de verdade que possuímos é muito incompleta, e por isso mesmo, multo mutável. Não podemos estabelecer limites ortodoxos nem mesmo para uma só pessoa, porque, pela evolução, essa mesma pessoa se tornaria herege um dia. Logo, arrepiam-se nos os cabelos quando vemos um espírita escrever a palavra "heresia" ou pretender de alguma sorte traçar limites ao pensamento.

            Nosso intento não é fazer a crítica do excelente livro do padre Alta mas simplesmente mostrar qual é a doutrina cristã que ele nos apresenta. Primeiramente, desentulha ele o espírito do Cristianismo de todo esse amontoado, dessa pirâmide imensa de interpretações, dogmas, doutrinas, comentários, sofismas, teorias, Interpelações, discussões teológicas. Vai conosco à fonte primitiva de onde jorra a água viva e não ao caudaloso rio que vem recolhendo em seu longo curso as impurezas de mil regatos lamacentos, de mil canos de esgoto. Lá, nessa fonte primitiva, o que encontramos é a vida mesma em todo o seu divino encanto. Não necessitamos do auxílio de intérpretes nem mediadores para entender e sorver o líquido vivificante desse manancial de vida eterna. Todas as dosagens da sabedoria médica aí são desnecessárias. A vida fala diretamente a todos os seres vivos uma linguagem inconfundível, sem palavras nem gramática.

            Esse Cristianismo do Cristo, desentulhado pelo Padre Alta, é tão atraente, tão encantador, tão natural, tão vivo, tão comunicativo que sobreviveu debaixo de todo esse aluvião de areia das sistematizações, das guerras religiosas, das lutas eclesiásticas. Não houve forças contrárias que o pudessem matar!

            É simplesmente a força invencível do amor em toda a sua pureza, em todo o seu ardor espiritual: o grande incêndio que veio abrasar a Terra e levantar os homens amortecidos, elevando--os para Deus, a fonte de todo o amor, a fonte mesma da vida
de todos os seres.

            O Cristianismo do Cristo é essa chama de vida que enche de ardor as criaturas e as liga ao Criador; que, transbordante de Vida e felicidade, ignora todas as dores, todos os sacrifícios; desconhece todos os temores e todas as dúvidas; não crê na morte nem poderia conceber a morte, porque é a vida eterna com o mesmo Criador da vida.

            Depois de desentulhar o Cristianismo primitivo, o Padre Alta se revela um pensador do século vinte e tem a bravura desassombrada de nos ensinar a lei das reencarnações sucessivas, rumo à perfeição; ensina-nos as influências que o Mundo dos Espíritos exerce sobre o nosso mundo; faz-nos um excelente curso de Espiritismo puro. Toda a sua doutrina é puramente kardeciana; mas vem revestida de grande autoridade, porque sai dos lábios de um sacerdote eruditíssimo em assuntos religiosos.

            Semelhante aos positivistas, o Padre Alta tem uma veneração imensa pelo Apóstolo doa Gentios. S. Paulo é para ele o único que compreendeu o universalismo do Cristianismo e soube defendê-lo contra todas as tendências judaístas dos outros apóstolos. Só ele teve a compreensão e a bravura de quebrar o círculo de aço que pretendia encadear o Cristianismo ao Judaísmo.

            Por isso mesmo, o Autor menciona a cada momento as Epístolas. Toma-as pelo documento mais autêntico de toda a Bíblia.

            Demonstra que a Incompreensão dos discípulos de Jesus era desconcertante durante toda a Missão terrena do Divino Mestre, e que a sua manifestação puramente espírita a Paulo, na estrada de Damasco, chamando-o para o apostolado, foi um momento de mais significação do que todos os esforços de Jesus em vida. Espírito ardoroso, o Padre Alta toma partido nos debates entre Paulo de Tarso e os outros apóstolos, demonstrando que toda a razão estava com Paulo e que os outros, se deixados entregues a si mesmos, teriam feito do Cristianismo universal uma simples seita do Judaísmo oficial.

            Comentando com grande inspiração os textos evangélicos, o Padre Alta nos demonstra que o narrador evangélico confundiu a profecia de Jesus sobre o fim do mundo com a outra profecia sobre a queda de Jerusalém, e reuniu as duas numa só narração, fazendo aparecer o disparate: "Esta geração não passará, sem que essas coisas se cumpram". A queda de Jerusalém, de fato, ocorreu somente 37 anos depois da crucificação de Jesus, no ano 70, logo, dentro daquela geração. Nunca havíamos encontrado explicação tão satisfatória para aquelas palavras.

            O Padre Alta proclama a doutrina da liberdade de pensamento, qual a entendia S. Paulo, interpretando os ensinos de Jesus. Só o amor religa os homens, só o amor é religião, mas não é possível impor-se o amor sob severas penas, como pretendem as ortodoxias. O amor só medra dentro da liberdade de consciência. Ortodoxia é uma forma de domínio, de escravização; pode ser uma arte, uma política, uma forma de administração, mas nunca uma religião. É de Paris que nos fala o Padre Alta, no ano cheio de liberdade de 1922. Não conheceu, portanto, as formas de tirania do pensamento que vieram depois de 1933 e chegaram a culminar em diversos países da Europa e notadamente na França. Suas teorias se confirmam na vida infeliz que os europeus estão levando em nossos dias.  

            Não nos queremos furtar ao prazer de repetir o apelo final que o Autor faz às igrejas para que regressem no Cristianismo de liberdade e vida. Eis as últimas linhas do livro:

            "O que digo com relação à Igreja Romana, digo-o das outras igrejas: que cada uma, na Vida que lhe é peculiar, facilite cada vez mais a livre expansão dos pensamentos e das obras e pense, em seguida, nas ouras igrejas que, juntas todas, compõem o jardim variegado do Catolicismo, isto é, do Universalismo. “Toda árvore que não dá bom fruto Será cortada e lançada ao fogo” diz Jesus Cristo, e “o fruto do Espírito é a Caridade, a alegria, a paz", diz S. Paulo aos Gálatas, não os anátemas recíprocos.

            "Os antagonismos das ortodoxias rivais obstam, sem dúvida, a esse preceito divino de paz e união fraterna; mas, um meio haveria, parece-me, de fazer que cessem as competições e que desaparecessem as divisões entre as igrejas. O Catolicismo Romano é reconhecido como sendo o de maior número de súditos conta, entre os que se dizem ao serviço do Cristo; que, pois, o papa de Roma convide fraternalmente, em nome do Cristo, os chefes supremos das outras igrejas para uma conferência fraterna numa cidade qualquer; que, depois de uma apresentação recíproca e de uma conversação afetuosa,  leiam juntos a Didaquê, catecismo cristão anterior a Constantino; que todos solenemente comprometam a não impor a seus fiéis nenhum outro dogma posterior a essa primitiva  dogmática; que todos, em seguida, abdiquem das suas pretensões rivais de superioridade recíproca; que cada um coloque seu nome numa urna, e um menino com os olhos vendados, tire à sorte o nome do predestinado que o Espírito de Deus escolher para reconstituir, com a livre cooperação dos outros, o Catolicismo verdadeiro, na simplicidade dogmática de S. Paulo, e a sua liberdade disciplinar ou científica, absolutamente alheio às disputas das escolas e dos concílios.

            "Somente a esse preço o Cristianismo se tornará o Catolicismo, isto é, Universalismo,  e cada árvore diferente do jardim do Cristo será a árvore prometida pelo Evangelho, onde os pássaros do céu farão seus ninhos, como diz S. Mateus, pássaros e árvores de espécies diversas.

            “Ouça quem tiver ouvidos de ouvir o que o Espírito diz às igrejas, pois que o tempo se aproxima!”  declara o Apocalipse.”

            Todos os estudiosos de Espiritismo deveriam não só ler, mas estudar muito calmamente os ensinos do Padre Alta, Ele é um grande reformador, um restaurador do Cristianismo.

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