A Escola Kardecista
e as Histórias da filosofia
e as Histórias da filosofia
por Luciano dos Anjos
Reformador (FEB) Outubro 1963
Somente a sua condição de missionário muito mais do
que sua inteligência altamente evolucionada ou sua vastíssima cultura, é capaz
de explicar satisfatoriamente a precisão com que Allan Kardec alcançou o futuro,
prenunciando acontecimentos marcantes da história do Espiritismo. Ora clara,
ora implicitamente, o Codificador deixou impressas, desde a época de sua missão
terrena, não apenas respostas a numerosas questões que - notem bem – ainda não podia sequer ser formuladas
mas também descrições exatas duma série de fatos ligados à nova doutrina que
legava ao mundo, mercê da confiança do Espírito da Verdade. Kardec parecia adivinhar
todo o desenrolamento do processo evolutivo do Espiritismo, inclusive suas fases negativas, embora provisórias sempre. Até esses
pequenos problemas que às vezes registamos nas nossas fileiras foram assinalados
com perfeita presciência e sugeridas "a priori" as soluções mais
adequadas. Acima de tudo, porém, Allan Kardec anunciou essa inevitável passagem histórica: o Espiritismo seria em principio
galhofeiramente ridiculizado; mais tarde, duramente combatido e
perseguidos os seus adeptos; finalmente, seria adrede ignorado a fim de que se
desvanecesse por completo ante uma sequência de interesses mesquinhos e pessoais.
Já estamos vivendo essa última fase, fazendo-se mister reafirmar apenas - para
que ninguém se iluda - que tal desprezo é calculado, pensado, medido, estudado,
lembrando o comportamento dos poderosos do tempo do Cristo, quando sentiam
prazer em enganar-se a si próprios, ignorando, propositalmente, a presença do
Messias ou a influência que exercia sobre a plebe. Essa posição de alheamento
acabou por soterrá-los com a glorificação do Cristianismo. Tanto mais encenavam
sua despreocupação pelo Mestre, mais Ele punha em risco os alicerces pagãos, culminando
por abatê-los e com eles as águias do Capitólio. Embora inerme, Jesus assinalou
a maior vitória duma ideia ou dum movimento popular. Sem competir com o poder
civil, dividiu o mundo em Antes e Depois
do Cristo.
As mesas girantes, em princípio, serviram de tema aos
"chargistas" da época, tornando-se motivo de chacota, zombaria ou curiosidade
deletéria nas rodas de elegância, nas colunas da imprensa e nos saraus intelectuais
de Paris. Como mais tarde alguns dos maiores vultos da ciência europeia e americana
tomassem parte de experiências largamente difundidas, não foi mais possível encarar
o assunto com os mesmos risos e passou-se então a discuti-lo, para depois
combatê-lo asperamente. Mais do que qualquer outro, o clero investiu furente,
intumescido de iracúndia contra as novas ideias, usando de todo o seu poder e a
sua cavilação. Lançou mão, por isso e para isso, dos argumentos mais
esdrúxulos, desde a negativa dos fenômenos até as explicações exclusivamente
anímicas: ou, ainda, mais modernamente, profligando a "ocasião" que as sessões mediúnicas
oferecem ao demônio. Hoje, desde algum tempo a esta parte, o Espiritismo entrou
na sua fase de verdade que atemoriza os arautos da mentira e da imoralidade. E, se ele cresce no selo
dos humildes e dos estudiosos mais honestos, os "fariseus" da
atualidade se preocupam, paradoxalmente, em não se preocupar com ele ou não lhe
emprestar a devida atenção.
Em 1875, pouco menos de 20 anos após o aparecimento de
"O Livro dos Espíritos", o famoso “Dictionnaire Larousse" consignava em suas respeitáveis páginas
que o Espiritismo estava em franco declínio e que Allan Kardec houvera apoiado
suas teorias em "cenas grotescas para constituir sua doutrina, destituída
de pesquisa, de reflexão, de meditação" e envolta num mistério distante
"das leis físicas e da constituição positiva das coisas". Nas edições
subsequentes, contudo, esse "parti pris" foi abrandecendo, tendo em
vista, sem dúvida, os pareceres e as experimentações do mundo científico. Em
1900 o "Larousse" já não fala mais em Kardec e, posteriormente, diz
tão-só quem ele foi, sem maiores comentários: "escritor francês, nascido
em Lião, falecido em Paris (1803-1869), autor do "Livro dos Espíritos",
''Livro dos Médiuns", “Evangelho segundo o Espiritismo", etc. O “Larousse
du XXe. Siècle” dedicou-lhe 16 linhas onde já se pode ler, nas duas finais: “il
est, en quelque sorte, le législateur du Spiritisme." Mais tarde, o “Nouveau
Larousse Illustré”, sem corrigir o equívoco da data do nascimento de Kardec
(1804 é o certo), emprestou-lhe 11 linhas, registando ainda que "ses doctrines
spirites furent appelée KARDECISME et ses partisans KARDÉCISTES. Por seu turno,
“La Grande Encyclopedie” em suas útimas edições registra apenas (aliás,
erradamente) que Allan Kardec “fils d’un
advocat, il s’adonna de bonne heure à l’étude du spiritisme, après avoir reçu une bonne éducation philosophique
et scientifique; son goût pour le merveilleux fut éveillé dès qu’il entendit
parler des tables tournantes, des esprits frappeurs et des médiuns qui
faisaient rage en Amérique”. Ora, aquele "de bonne heure" não tem
sentido, pois é sabido que Allan Kardec só depois de muita relutância resolveu
investigar os fenômenos, não lhes aceitando de pronto as explicações que então
corriam. Da mesma forma "son goût pour le merveilleux" não foi
acordado em tempo algum, sendo conhecido o seu frio comportamento ante os fatos
que, de resto, acabou por designar de absolutamente naturais!
O correr do tempo serviu para melhorar a posição de
enciclopedistas e dicionaristas ante a figura do Codificador, embora, paralelamente,
aumentasse a reserva com que lhe consignavam o nome. A "Enciclopedia Italiana" de 1933 concede-lhe
algumas linhas, nas quais, inclusive, não esquece de citar Flammarion, além das
obras de H. Sausse e E. Carreras como fontes bibliográficas.
Em 1957, o “Dizionario Enciclopedico Italiano” copia o
texto da “Enciclopedia Italiana”, sem esquecer de resumi-lo um pouco mais. A “Encyclopaedia
Britanica” (ed. de 1911 e 1954), como é de se esperar, nada fala de Allan Kardec.
Da mesma forma a “The Enclyclopedia Americana", edição recentíssima de
1958, ignora a existência do Codificador. Em Portugal, a “Enciclopédia Portuguesa
ilustrada” traduz e consigna o texto do “Nouveau Larousse” num escorço de 25 consoladoras
linhas. Edição recente da "Grande Enciclopédia Portuguesa e Brasileira”
contrabalançou o breve entusiasmo de seus colegas editores e fala apenas no
"escritor francês que escreveu obras de divulgação espirita". O “Lello
Universal” {1958) é ainda mais cauteloso, embora assinalando que “as doutrinas
espíritas foram denominadas kardecismo e os partidários delas kardecistas".
No Brasil registra-se confortadora exceção à regra geral e, mais do que na França,
onde Kardec reencarnou, sua figura e sua obra são melhor apreciadas. Por isso a
edição de 1968 do "Dicionário Enciclopédico Brasileiro" (ed. "O
Globo") vai ao ponto de imprimir-lhe o busto em tamanho regular; assinala
erradamente que Kardec era "formado em Medicina sem todavia dedicar-se à
profissão". O equívoco decorre de que costumava curar os enfermos pelo
hipnotismo, com passes magnéticos. A “Enciclopédia e Dicionário Internacional”,
impresso nos EUA pela W. M. Jackson, 55 excelentes linhas, exceto quanto aos
trechos em que diz que AIIan Kardec “faliu, dando um prejuízo total a seus
credores", sem dúvida uma informação falseada e aquém da verdade
histórica. A firma era de sociedade com outro elemento, este, sim, bastante inescrupuloso,
cuja conduta resultou na insolvência. Allan Kardec, porém, depois de dissolver
a sociedade, pagou do seu próprio bolso todas as dívidas decorrentes da ação
criminosa do ex-sócio. Quanto à “Enciclopédia Brasileira do Mérito”, edição de
1958 (quiçá o melhor trabalho enciclopédico já realizado no Brasil, por
brasileiros), também faz justiça a Allan Kardec com 38 linhas muito boas, equivocando-se
apenas quando diz que “O Livro dos Espíritos” lhe teria sido comunicado através
de um médium”. Sabemos que os médiuns foram mais de dez e o condicional do
verbo sem dúvida não tem sentido. Assinalemos finalmente a referência muito
disparatada que o nosso Caldas Aulete faz na edição de 1958 do seu "'Dicionário
Contemporâneo da Língua Portuguesa”: “Kardecismo: doutrina que se diz mais perfeita
que o espiritismo ortodoxo.”
Por seu turno, os dicionários filosóficos mais
conhecidos (os poucos existentes) absolutamente não registam o nome de Allan Kardec,
assinalando apenasmente, os mais modernos, a epígrafe “Espiritismo”, regra
geral seguida de lamentáveis erros, comentários absurdos e detalhes históricos
inteiramente desfigurados, além dum emaranhamento com doutrinas outras do
Oriente e da Antiguidade, tudo isso sem nenhuma referência ao nome do Codificador.
Em resumo, podemos verificar, diante do exposto, que no momento vivemos - se
assim a pudermos chamar - a terceira época do Espiritismo, quando, salvo raras
exceções, luta o farisaísmo hodierno para ignorá-lo ou não elegê-lo
devidamente, no campo da Literatura, da Ciência, da Educação, da Filosofia, etc.
Mas, quer queiram, quer não, ainda que diante de todas as objurgatórias da
Igreja, da ciência oficial ou dos "donos" da história da Filosofia,
há e haverá sempre, cada vez mais acentuada e mais consolidada, uma escola
kardecista, tanto quanto existe a escola socrática, platônica, aristotélica, cartesiana,
kantiana, patrística, etc. Isso é o que pretendemos demonstrar, embora a
evidência axiomática dos fatos praticamente torne dispensável a nossa tarefa.
Seria exagero de nossa parte pleitear junto a determinados
historiadores - como por exemplo o padre Leonel Franca ("Noções de
História da Filosofia") - que inserissem em seus trabalhos o pensamento
filosófico de Allan Kardec. Sem dúvida as partes dedicadas à escola patrística,
ou à escolástica ocupam o espaço bastante para impedir quaisquer outras novas
referências desse tipo. O mesmo podemos dizer de outros trabalhos como a “Histoire
Générale de la Philosophie”, do eclético Victor Cousin, cujo final de vida foi
uma espécie de comunhão reaproximativa com a Igreja Católica. Ou o "Breve
Curso de Filosofia", do escolástico italiano Francisco M. Terlizzi. Mas, quantas
obras do mesmo gênero já se publicaram e em cujas páginas poderia (ou deveria?)
pelo menos citada a existência do kardecismo como corrente filosófica? Embora
criticada, desapoiada ou desacreditada pelos autores respectivos, o mero registo parece a nós justo
e curial. Afinal, existe uma filosofia espírita, em torno da qual surgiu e
medrou uma escola definida, permanente, sempre mais numérica a cada novo dia.
Só um cego da alma ou um ignorante em assuntos de
cultura, é capaz de negar o autêntico aspecto filosófico que caracteriza o Espiritismo
tal como se encontra sistematizado nas obras de Allan Kardec. Aliás, é
exatamente quando toma um corpo filosófico que o Espiritismo - diz o próprio Kardec
- passou a ser levado mais a sério.
"Sua força está na sua filosofia" ("O Livro dos Espíritos",
página 470, 28ª edição da FEB). Principalmente em “0 Livro dos Espíritos",
bem como nas demais obras de Allan Kardec, quase todas as questões que ali se contém aparecem obrigatoriamente em qualquer tratado
de Filosofia, "O Espiritismo - são ainda expressões de Allan Kardec -,
tendo por objeto o estudo de um dos elementos constitutivos do Universo toca
forçosamente na maior parte das ciências." ("A Gênese". pág. 22,
13ª ed. da FEB.)
O pensamento kardecista (sabemos que a obra de Allan
Kardec é antes dos Espíritos do que propriamente sua mas em termos de filosofia
histórica não podemos expressar-nos doutra forma) divide-se em três grandes
chaves nas quais se incluem respectivamente as partes de Filosofia, Ciência e
Religião, tratadas através de cinco substanciosas obras: "O Livro dos Espíritos",
"O Livro dos Médiuns", "O Evangelho segundo o Espiritismo",
"O Céu e o Inferno" e "A Gênese". A estas podemos ainda
acrescentar: “O que é o Espiritismo” e “Obras Póstumas”.
O volume principal, sabemos todos, é “O Livro dos Espíritos";
não apenas histórica e cronologicamente, mas acima de tudo doutrinariamente,
pois, sendo a obra central do Espiritismo, nele se consubstancia todo o embasamento
da doutrina. Os outros livros, ampliando aspectos especiais, estão diretamente
vinculados a “O Livro dos Espíritos”. Neste, temos a ideia dum conjunto homogêneo,
revelando que a doutrina não pode ser fracionada em suas partes integrantes. A
base, portanto, é integra e una. Sua parte religiosa trata de Deus e dos Seus
atributos, apresentando-nos um Criador cheio de amor e bondade para quem todos
serão salvos, sem exceção. Trata também da questão dos anjos e dos demônios,
bem como dos gênios, protetores, anjos de guarda, etc., mostrando-se com
clareza o que eles representam. Perpassa pelos problemas da adoração e acentua
o valor inestimável da prece, sua utilidade e sua necessidade imprescindível.
A parte científica ensina o que é o Espírito, o que é
a matéria, suas ações reciprocas, propriedades, etc. Inclui a formação dos
mundos, sua pluralidade e habitabilidade, os seres orgânicos e inorgânicos, o materialismo,
os reinos da Natureza, os diversos fenômenos, a metodologia da comunicação
entre vivos e mortos.
Finalmente a parte não menos importante, a filosófica,
trata do princípio e do porquê das coisas, das raízes do nosso sofrimento, de
nosso destino, de nosso atraso, o que é a inteligência, o instinto, a razão.
Cuida-se da palingenesia, do equilíbrio da Natureza, do bem e do mal, da
destruição dos seres vivos, da existência de Deus, da natureza divina, etc. Falamos até aqui em termos de generalidade. Se
quisermos, entretanto, poderemos dividir o pensamento kardecista em partes mais
detalhadas e específicas, exatamente aquelas em que está dividida sua principal
obra:
1º) - Causas Primárias (Deus; elementos gerais do
Universo; Criação, princípio vital).
2º) - Mundo dos Espíritos (encarnação, desencarnação,
pluralidade de existências; vida espírita, volta ao corpo material, emancipação
da alma, intervenção no mundo físico, ocupações dos Espíritos e os três reinos
da Natureza).
3º) - Leis Morais (adoração, trabalho, reprodução, conservação,
destruição, sociedade, progresso, igualdade, liberdade, justiça, amor, caridade,
perfeição moral).
4º) - Esperanças e Consolações (penas e gozos
terrenos; penas e gozos futuros).
Dentro da obra kardecista topamos com assuntos ele íntima
relação com diversas ciências, inclusive as chamadas ciências exatas ou
positivas. À guisa de simples exemplo podemos assinalar que o cap. III da 1ª
parte de "O Livro dos Espíritos" referente à Criação, cuida num só tempo
de diversos problemas de Biologia, História, Geologia, Antropologia, etc.
Também em “A Gênese”, especialmente nos capítulos VII a XII, encontramos questões
que envolvem Geologia, Astronomia, História, Psicologia, etc. O cap. XIV, que
trata com especialidade dos fluidos (de passagem: que excelente pródromo às
lições do nosso atual André Luiz!) abrange até problemas de Física, como de
Psicologia e Fisiologia. A Antropologia, por exemplo, é alcançada quando
aprendemos as leis da reencarnação ou os diferentes tipos humanos que lhe
decorrem, bem como as teratogenias todas. A Biologia tem seu campo de discussão
quando estudamos o princípio da hereditariedade e a formação dos seres vivos, a
Vida, a morte, a reprodução das criaturas, os obstáculos à vida, etc. Quando
analisamos as
propriedades da matéria, sua constituição, etc. sem
dúvida invadimos o domínio da Física. Ao tratar das propriedades do perispírito
e suas relações com o organismo, tocamos na Fisiologia. Renteamos a Etnografia quando lemos conceitos sobre
as raças humanas, o povoamento, a moral primitiva. Ao estudarmos o homem, o
aperfeiçoamento dos indivíduos e das raças, entramos na geografia humana. Na apreciação
das relações entre os povos e seu meio social e geográfico, deparamos conceitos
profundos de Ecologia. Penetramos a Sociologia, ao ensejo do estudo sobre
trabalho, repouso, casamento, poligamia, guerra, pena de morte, vida social,
família, progresso, civilização, liberdade, igualdade, fraternidade. Convém
assinalar nesta oportunidade que a Sociologia era apenas matéria de gabinete ao
tempo em que Allan Kardec publicou seus trabalhos, excetuando os círculos de
certa forma fechados e restritos do Positivismo. Muito antes de Emílio
Durkheim, célebre filósofo e sociólogo francês, autor da obra “Da Divisão do
Trabalho Social”, publicada em 1893, Allan Kardec prevê o fenômeno social da
divisão do trabalho. Temos ainda a passagem pela Ética, no estudo que nos oferece
sobre sanções, os efeitos da causa, as consequências à infração, o bem e o mal,
o duelo. as crueldades, os efeitos da justiça, do amor, da caridade. Finalmente,
consignemos que, antes de Bergson, Kardec abordara com invulgar espírito apreciativo
o conhecimento filosófico intuitivo, que até hoje representa uma das teses mais
discutidas em Filosofia. Embora catalogada em terceiro lugar, a parte moral do
Espiritismo é, sem dúvida, a mais importante. Isto porque, tendo sido ditada
pelos Espíritos, à Revelação Espírita obedeceu, além do mais,
a um planejamento altamente lógico e harmonioso.
Assim, desde que as leis morais implicam já na aplicação prática da doutrina,
não seria razoável deixar de precedê-las dum conhecimento geral da doutrina.
Ditar nosso comportamento moral só seria possível e coerente depois de
mostrar-nos detidamente os fundamentos das leis gerais que regulam o Universo.
Resumindo, podemos manifestar que a moral espírita é a moral do Evangelho. ”O Espiritismo - afirmou Kardec - não traz moral
diferente da de Jesus" (“O Livro dos Espíritos, página 475, 28ª ed. da FEB).
Leiam-se ainda, a respeito, as questões nº 625 e 627 deste volume. Todos os
postulados morais da Nova Revelação estão resumidas na secular frase de Confúcio:
“Não façais aos outros o que não quereis que vos façam"; ensino reafirmado
por Jesus Cristo quando sublinhou: "Amai-vos uns aos outros". A parte
moral do Espiritismo mostra ao homem, portando, o caminho normal do bom procedimento
na vida de relações, sugerindo- e o meio termo das ações, entre o desprendimento
das coisas materiais e a dedicação exagerada, pelas coisas do Espírito. O ideal
da vida não está no puritanismo dos que vilipendiam totalmente o mundo nem no
imediatismo dos que só vivem para as coisas do mundo, Tanto a matéria quanto o
Espírito necessários e criados por Deus.
Como vemos, a escola kardecista poderia caber
perfeitamente, ao menos num simples registro, dentro do capítulo que trata da
Filosofia Contemporânea (sec. XIX - XX}, ao lado do pragmatismo de Carlos
Pierce e W. .James; da evolução criadora, de Bergson; da Ação filosófica, de
Blondel; do idealismo (a mais violenta reação contra o Materialismo e o Positivismo
agnóstico, depois, naturalmente, do próprio Espiritismo); do criticismo
transcendental alemão: do neokantismo; da fenomenologia, de Husserl; e da
neo-escolástica. Não queremos cometer a
injustiça ou mesmo a tolice de negar a Bergson a grandiosa tarefa. de abater o
materialismo dominante, que de certa forma complementava o êxito do transformismo
e do evolucionismo negativista do início do século XIX. Mas, não seria menor
injustiça roubar ao kardecismo o papel de fundamental agressor, dialético e científico,
de todas as doutrinas materialistas, na sua conceituação mais ampla e mais
geral. Só isto justificaria a sua referência histórica no desenvolvimento da
cultura das civilizações. Allan Kardec afirmou com muita propriedade: "O
Espiritismo é o mais terrível antagonista do materialismo" ("O Livro
dos Espíritos", pág. 46- ed. citada).
Particularizemos ainda que Kardec teve a preocupação e
a perspicuidade de sugerir um nome absolutamente novo para designar os princípios
filosóficos da nova doutrina que apresentava ao mundo. Embora o emprego do
termo Espiritismo hoje em dia escape quase completamente ao domínio dos
verdadeiros espíritas, ele foi criado para determinar uma certa corrente
filosófica, um determinado conceito doutrinário, um definido campo de ideias
próprias. E esse vocábulo, modernamente, ilustra todas as enciclopédias do
mundo, revelando com razão a sua irradiação, a sua penetração em todos os
povos, apesar do mutismo preconcebido da maioria dos Literatos e dos historiadores.
E quanto ao Codificador do Espiritismo, o professor
Hippolyte Léon Denizard Rivail? Que dizer da sua figura, da sua posição, do seu
comportamento em face do mundo? Poderia ser considerado um filósofo?' Teria
condições para inaugurar uma verdadeira escola que lhe viesse derivar a
designação do próprio nome?
Já houve até quem dissesse que Allan Kardec foi
"medíocre" (arregimente-se coragem, paciência, tolerância e
consulte-se “O que é o Espiritismo”, espécie de subliteratura do padre Álvaro
Negromonte). Houve, conforme referências acima, os que o consideraram ingênuo e
místico. Houve os que o qualificaram de ''impagável'' e "tolo"
("Tolices de Allan Kardec", dum tal Justino Mendes, pseudônimo que
encobre um padre qualquer). Outro epiteto: "um dos maiores impostores que jamais
tenham existido no mundo" ("Metapsíquica e Espiritismo", do
padre espanhol Fernando Maria Palmés). Na verdade, porém, os fatos históricos
desmentem todos esses “predicados” com que buscam mimosear o Codificador.
Allan Kardec foi um filósofo por excelência, além de
homem de grande cultura e comprovada acuidade intelectual. Em prudente e
humilde, o que caracteriza o autêntico espirito filosófico. Brilhantíssimo aluno
de Pestalozzi, chegou a substituir o mestre em seus impedimentos. Com 27 anos
apresentara um plano reformista do ensino em seu país e, antes de chegar à
maturidade, já era autor de diversas obras didáticas com ideias próprias.
Poliglota e tradutor de variados autores clássicos ("Telêmaco", de
Fénelon, que verteu para o alemão, comentando-a, mereceu os aplausos de Pestalozzi) além
de professor de Química, Física, Anatomia, Astronomia e outras matérias. Sua
formação de humanista jamais poderá ser contraditada. Ao contrário do que se
afirma era infenso ao misticismo e o fanatismo. "Nunca elaborei teorias
preconcebidas; observava cuidadosamemte, comprovava, deduzia consequências; dos
efeitos procurava remontar as causas por dedução e pelo encadeamento lógico dos
fatos, não admitindo por válida uma explicação, senão quando resolvia todas as
dificuldades da questão. Foi assim que procedi sempre em meus trabalhos anteriores,
desde a idade de 15 a 16 anos." ("Obras Póstumas", pág. 240,
11ª da FEB) Essa, a constante de Allan Kardec que ele mesmo fazia questão de
proclamar. Sobre suas experiências, diria mais tarde o grande fisiologista
Charles Richet: “C'est toujours sur l'expérimentation qu'il s'appuie, de sorte
que son oeuvre n’est pas seulement une
theorie grandiose et homogène, mais encore un imposant faisceau de faits.” Tout
de même, Allan Karde est certainement !’homme qui, dans cette periode de 1847 à
1811, a exercé l’influense la plus penetrant, tracé le sillon le plus profond dans
la science métapsychique.” ("Traité de Métapsychuque” págs. 33/34, Paris,
1923.)
Quanto ao seu caráter, era por todos os títulos um homem
de bem, cioso de sua dignidade, corajoso diante da vida que, não raro, lhe foi
bastante hostil. Praticante da caridade, era, ainda, tolerante, paciente,
simples, sóbrio e bom. Em última análise, praticava a moral da doutrina que
pregava, exemplificando sua própria assertiva de que se conhece o verdadeiro
espírita pela sua transformação moral. Como filósofo, Kardec era
impressionantemente simples, quadrando-se naturalmente ao apanágio de todos os
pensadores imortais. O kardecismo traz, portanto, essa característica de
simplicidade intrínseca e expositiva. A Filosofia, porém, como o assina-la Monteiro
Lobato no prefácio da "História da Filosofia" de Will Durant,
torna-se mal vista quando não é obscura. "Nós, "modernos" - diz
o escritor patrício -, nos acostumamos tanto à pomposa verbiagem da Filosofia
que quando a vemos apresentada em termos facilmente compreensíveis chegamos a
não reconhecê-la." E logo adiante exemplifica, explicando porque nenhum
jovem metafísico pode admitir Confúcio como filósofo: "Confúcio terrivelmente
claro - qualidade prejudicialíssima para um filósofo" (pág. 11/12 da 2ª
edição brasileira). Talvez pelas mesmas razões não gostem de Kardec...
Restaria lembrar, para justificar a defesa que levantamos
da existência histórica duma escola filosófica kardecista, que a bibliografia
espírita atual é não apenas extensíssima, mas universal, sendo de se notar que,
somente no Brasil até 1963, as obras de Allan Kardec atingiam a cerca de 1
milhão e novecentos e setenta e oito mil exemplares, consideradas apenas as
edições da Federação Espírita Brasileira, cujos dados conhecemos melhor. Os
adeptos dessa corrente de filosofia espiritualista atingem hoje, no mundo
inteiro, a muitos milhões entre vários povos e nações, desde os mais humildes
aos mais intelectualizados. Monteiro Lobato. o tradutor da “História da
Filosofia”, de Will Durant (possivelmente, no estilo, a mais popular do mundo),
não perdoa ao autor a total omissão da filosofia escolástica, omissão que considera "um ultraje".
Acrescenta ainda que “o pior pecado de todos foi a omissão das filosofias hindu
e chinesa”. Reconhecendo embora a ressalva de Will Durant, feita no prefácio,
confessando ser incompleto o seu livro, comenta no entanto (tradutor
brasileiro: "Não obstante, o incompleto incompleto é."
Esses comentários do escritor paulista (que por sinal
era simpático ao Espiritismo) servem, certamente, a outros exemplos e a outros
trabalhos. Tempo virá em que o historiador consciencioso dirá com a mesma ênfase
ser imperdoável que todas as histórias da Filosofia hajam omitido, por
ignorância, por faciosismo ou por medo, senão por ojeriza morbígena, a escola
kardecista. No entanto, esta a escola que terá transformado o mundo... O que é mais extraordinário: terá resumido em
si toda a Filosofia: Então, dentre tantas outras, cumprir-se-á mais esta previsão
do Codificador): “Mas, não é real que todas as grandes descobertas científicas
hão igualmente modificado, subvertido até, as mais correntes ideias? E o nosso
amor-próprio não teve que se curvar diante da evidência? O mesmo acontecerá com
relação ao Espiritismo que, em breve, gozará do direito de cidade entre os conhecimentos
humanos.” ("O Livro dos Espíritos",
página 476, 28ª ed. da FEB.)
Se Jesus dividiu o mundo em Antes e Depois do Cristo,
o missionário de Lyon acabou dividindo o Cristianismo em antes e depois do
Espiritismo.
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