Deus
e a igreja católica
Rodolfo Calligaris
Reformador
(FEB) Dezembro 1939
Somos dos que acham que a seara espírita é extremamente grande e
devoluta, constituindo insensatez de nossa parte o deixa-la frequentemente para
excursionarmos pelas searas alheias.
Por outras palavras, há no Espiritismo muita matéria a examinar e
estudar, que deve e precisa ser divulgada, com maior proveito para a causa, do
que a discussão de questões e assuntos que não lhe dizem respeito.
Os fatos, porém, com que nos vamos ocupar são de tal ordem, que
não resistimos ao ímpeto de alinhavar este breve arrazoado.
Em dias do ano passado, teve lugar na catedral de Diamantina a
sagração de D. José André Coimbra, nomeado bispo da Barra do Piraí, sendo a cerimônia
dirigida por D. Serafim Gomes Jardim, arcebispo de Diamantina, e bispos de
Montes Claros e Arassuaí, dioceses sufragâneas daquela arquidiocese.
Tudo decorreu com aquela pompa e aquele aparato peculiares a
solenidades que tais. Duas chapas foram batidas: uma à porta do Palácio Arquiepiscopal,
quando, sob o pálio, aqueles prelados se dirigiam à catedral e outra
focalizando o pálio já em plena rua. Até aqui, nada de extraordinário.
Acontece porém, que, ao serem reveladas as ditas chapas, notou-se
em ambas a presença, nítida e perfeita, de um "extra", identificado
como sendo o Espírito de D. Joaquim Silvério de Souza, falecido cerca de seis
anos antes da referida sagração.
D. Joaquim Silvério de Souza fora, em vida, patrono de uma
associação cuja finalidade é custear o estudo de seminaristas pobres, sendo que
era grande aspiração sua ver algum desses seminaristas sagrado bispo. Dizia
então que, quando tal se verificasse, ele próprio seria o oficiante.
A sagração do primeiro de seus pupilos, D. José André Coimbra,
deu-se seis anos depois de sua morte, circunstância que, conforme o atestam as
fotografias em apreço, não o inibiu de ver cumprido aquele seu ardente desejo.
A igreja católica, que não perde vasa para as suas especulações,
entendeu de explorar o caso, aliás conhecidíssimo dos adeptos do Espiritismo,
servindo-se do embuste grosseiro do milagre para poder enganar e conseguir o
fim que tem sempre em mira. Este "fim" é ilaquear a boa-fé dos tolos
e ignorantes e impingir-lhes milhares da milagrosa fotografia em
"troca" de uma esmolinha, o que, certamente, não deixará de dar
pingues resultados ...
Um panfleto de propaganda do milagre, contendo uma das
fotografias, só agora reveladas ao público, datada de Diamantina aos 20-9-1938,
traz os seguintes dizeres por nós destacados propositadamente para que os
nossos presumíveis leitores lhe apreciem a lógica genuinamente católica, apostólica
romana:
"Só os católicos são
dignos ante a face imutável de Deus de receber tamanha graça, em tão estupendo
milagre. Os espíritas costumam dizer que os mortos se comunicam, se deixam
fotografar mas nós continuaremos a dizer: Isto é falso, pois, sendo as leis de
Deus imutáveis, iguais para todos os filhos de Deus; só para os católicos há exceção...
Porque Deus violenta seu próprio estatuto para operar o milagre! Aí está a
prova de que os mortos não se deixam fotografar, a menos que tenham sido católicos
e como tal tenham morrido. "
Que tal, hein? "Só os católicos são dignos", "só
para os católicos há exceção" e "só para os católicos Deus violenta o
seu próprio estatuto".
E nós que estávamos quase acreditando que "as leis de Deus
são, mesmo, imutáveis e iguais para todos"...
Que ingenuidade, a nossa!
Esta outra tirada é ainda mais formidável: “Aí está a prova de que
os mortos não se deixam fotografar ... " e para corroborar aquilo que
dizem, afim de que não subsistam quaisquer dúvidas, apresentam a fotografia em
que aparece o Espírito de D. Silvério, morto seis anos antes!!!
É verdade que ressalvam: "...a menos que tenham sido católicos
e como tal tenham morrido". O inteligente leitor, porém, saberá dar a essa
ressalva o apreço que merece...
É extraordinário o ponto a que chegou o desplante e a impavidez do
clero!
Fenômenos idênticos, verificados por um Akasakof, um Crookes, um
Richet, não passam de ilusão, fraude,
mentira ou sugestão; agora, o caso de D. Silvério é milagre!
Felizmente, porém, "os tempos são chegados" e a lógica
dos faríseus já não convence a muita gente...
É deixá-los: acabarão falando sozinhos...
*
O outro fato
que deu ensejo a estas linhas não é menos interessante.
O general
Franco, chefe da revolução que cobriu de luto a bela e heroica pátria de
Cervantes, ofereceu a Deus a sua espada vencedora, tendo recebido, a propósito,
a seguinte carta do cardeal primaz da Espanha, que transcrevemos do
"Correio da Manhã.", de 12 de Julho de 1939:
“Julgo de meu
dever dar o maior relevo ao gesto nobilíssimo
de cristã edificação que teve V. Ex. ao entregar, na qualidade de
representante da Igreja na Espanha, a sua espada vencedora, como tributo de
gratidão a Deus, que, com Sua Amorosa
Providencia, auxiliou os que lutaram por Sua Honra e pela da Espanha, e
como veneração à Santa Igreja Católica da qual v. ex. é filho ilustre e fidelíssimo.
"Fiz
entrega da histórica espada ao Cabido da Catedral Primaz em cujo tesouro deve
ficar guardada. Peço a Deus do fundo d’alma que dê todas as Suas bênçãos a quem
ofereceu tal exemplo de religiosidade
à Espanha e ao mundo, e que dê a V. Ex. luz e força para triunfar nas árduas
tarefas da paz, como triunfou nos dias heroicos da guerra. Deus guarde a V. Ex.
muitos anos." (Os grifos são nossos).
Algum leitor
menos avisado que deparasse com tal noticia, sem se inteirar da data de sua publicação, poderia, com justíssimas razões, confundir-se e supor
tratar-se dalgum acontecimento ocorrido na infância da humanidade. Efetivamente, entregar um
instrumento de guerra a Deus em sinal de gratidão pelo seu auxilio ao massacre e destruição de
milhares de filhos desse mesmo Deus, é coisa que aberra dos mais comezinhos princípios
de moral e religião. O Deus que porventura aceitasse tal oferenda poderia
quando muito ser o deus Marte, da mitologia antiga, mas nunca o Deus de amor e de justiça de que nos fala o Evangelho de
Jesus, o qual não só ditou o "Não matarás", como condenou toda e qualquer forma de violência e
desprezo para com os semelhantes, por constituir infração ao "amai-vos uns
aos outros", mandamento que resume toda a lei e os profetas.
Por mais
paradoxal que pareça, trata-se, porém de um fato recentíssimo, passado num pais que se diz civilizado e essencialmente católico, constituindo
mesmo um magnífico exemplo de "religiosidade" oferecido ao mundo do século
XX por um
dos mais "ilustres e fidelíssimos filhos da santíssima igreja católica,
apostólica, romana" !
Muito
edificante, pois não!
Como vemos, a
mentalidade católica daquém e dalém mar é a mesma. Aqui, é deus 'que
"violenta o seu estatuto para operar um milagre católico", provando
destarte que "só os católicos são dignos e só para eles há exceção... "
Acolá, é o
mesmo deus que, "com sua Amorosa Providência." (triste ironia) ,
desce de seu sólio de astros e de estrelas, protege e auxilia o chefe de horrível
guerra fratricida, para, depois de saciado em sua sede de sangue e morte,
conduzi-lo finalmente á ambicionada vitória!
Semelhante
deus, francamente, mais se parece com Satanás...
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