Aquele velho morava num pequeno cômodo, na
falda do morro dos Esquecidos. Chamava-se Pedro. De quê, nunca se soube. Era
simpático, embora a fisionomia franca e atraente não deixasse de trazer o aspecto
da austeridade. Ignorava-se quase tudo a respeito de Pedro, da sua vida
pregressa e atual. Apenas era conhecido como homem bondoso, pronto a servir a quem quer que fosse, incapaz de uma palavra
inconveniente ou de um gesto intempestivo.
Vimos a conhecê-lo por intermédio de um
morador do morro, quando, numa roda de que fazíamos parte, ele salientava a
personalidade do “seu” Pedro.
- Só sei, disse Euzébio, o morador do
morro, que eu estava doente, desenganado, e ele me salvou.
- Salvou? - perguntamos.
- Sim, salvou-me. Ele ia subindo o morro e
eu ia descendo. Quando passei por ele, chamou-me:
- Preciso falar-lhe agora. Você está muito
doente, mas isso não é razão para pensar em coisas lúgubres...
- Como é que o senhor sabe que estou
doente? Quem foi que lhe disse que estou desesperado e com a intenção de me
matar?
- Isso não importa. Sei. Mas você pode
ficar bom, desde que se disponha a seguir à risca tudo o que eu lhe determinar.
Quer ficar bom?
- Querer eu quero, sim, senhor. Mas já fui
desenganado duas vezes, e acho que não dá mais jeito ...
- Não custa nada tentar, Euzébio...
- O senhor também sabe o meu nome? Como foi
que soube?
- O mundo é muito pequeno. E isso não é
assim tão difícil de saber, Euzébio.
E o ex-enfermo descreveu minuciosamente o
que lhe sucedera. Durante meses, seguiu rigorosamente o tratamento que o velho
indicara. Fisgado pela curiosidade, indaguei:
- Diga-me, Euzébio, que remédios você tomou?
- Remédios? A bem dizer, nenhum. O velho me
recebia na casa dele. Orava, orava e dizia umas coisas estranhas, como se
estivesse falando com algum companheiro. Mas não era, não. Falava sozinho...
Confesso que tive medo, no começo. Depois, acostumei. Ao fazer a prece, pedia
que Deus nos abençoasse e Jesus nos permitisse receber a visita dos Seus
trabalhadores... É: trabalhadores.
" Assim é que ele falava. Nunca vi ninguém. Ele me fazia uns gestos,
enquanto falava. Depois, dava-me a beber a água de um jarro. Fazia uma porção
de recomendações. Como eu queria ficar bom, aguentei tudo isso. Já estava
desanimado e pensando em não voltar mais ali, quando o velho me disse que a
minha doença necessitava de tratamento demorado. Era preciso ter paciência e
coragem. Eu lhe respondi que paciência eu não tinha muito, mas, coragem, poderia
provar a qualquer momento. .. Sabe o que me disse ele? – “Está bem. Dentro em pouco vou apurar se
você tem mesmo coragem.”
- Você ainda vai lá? perguntei,
interessado.
- Vou. Agora estou aprendendo com ele o
Evangelho, que ele lê e comenta, explicando coisas que são realmente
interessantes. “Chateado”, quis desistir. Ele, então, sério, me fez uma
advertência, mais ou menos assim:
- “Você precisa tanto do Evangelho quanto
nós do ar que respiramos. Não está melhor, com o tratamento que vem fazendo?
Entretanto, a sua cura será apressada quando você aprender as lições que está
recebendo e experimentá-las diariamente. E digo-lhe: o seu mal é de origem
espiritual, meu amigo. Cuidando da alma, o seu corpo será beneficiado. Não sou feiticeiro, como você está pensando, mas sei que a maioria
das doenças que infestam o mundo têm origem nos desequilíbrios da alma.”
..........................................
Não resisti e pedi que Euzébio me levasse à
casa de Pedro. E lá fui.
Conheci o velho e prendi-me também a ele.
Sua conversa é simples, porém superiormente orientada. Diante de várias
indagações minhas, disse ele:
- “Hoje muita gente acha ridículo crer em
Deus, falar em Jesus e Maria Santíssima. Isso tudo “já era”, como se diz. Só
duas coisas preocupam: dinheiro e sexo. Para obter dinheiro, muita coisa triste
é consumada. Certas pessoas, mal esclarecidas, rebeldes e intransigentes,
consideram que a vida se resume em gozar os prazeres materiais. Ouve-se
freqüentemente: “O dinheiro faz tudo.”
Fez uma pausa breve, continuando, em
seguida:
- Legiões de Espíritos inferiores invadiram
a Terra. Muitos são infelizes revoltados, que foram levados às últimas guerras.
Voltaram à Terra com o ódio no coração. Desejam destruir tudo, participam de
grupos terroristas, perdendo ótimas oportunidades para uma vida útil a si e ao
mundo. Desiludidos, cegos pelo ateísmo, sentindo as dores que herdaram de um
comportamento irregular, decidiram retomar a ofensiva homicida que a morte interrompera, convencidos de que é preciso destruir para renovar. Mas nada
renovam. São o fermento do Anticristo. As entidades de socorro da
Espiritualidade envidaram todos os esforços para que entendessem a força e a
realidade do bem, e reconhecessem ser Deus o poder que governa a vida cósmica,
e, ainda, que Jesus, tolerante e justo, está sempre disposto a ajudar os que de
boa-vontade se dispuserem a uma caminhada de recuperação. Essas enormes
falanges de Espíritos revoltados aí estão, no mundo atual, estimulando os maus
à prática de atos de violência, influenciando os Espíritos fracos ao
materialismo ateu. Dessa forma, a Terra, convulsionada, provocará, por ação da
lei cármica, medidas muito enérgicas para livrar-se da maldade que se
multiplica e se torna mais fria e cruel do que seria admissível em nosso
século.”
- E Euzébio, ficará bom? - arrisquei a
pergunta.
- “Possivelmente, porque tudo depende dele.
Será submetido por mim a novas experiências. Já lhe disse que a violência só
gera violência e a maldade é uma epidemia que só pode ser combatida com a prece
e a prática do Evangelho. Se todos os que crêem se unirem mentalmente para
formar uma barreira espiritual, tal estado de coisas declinará. Devemos
compreender que nada sucede por acaso e que os acontecimentos que estão
envergonhando a espécie humana têm uma causa, pois são efeitos de erros e
maldades de outros tempos..”
Os olhos de Pedro cintilavam de maneira
estranha. Tive a impressão de que fulgores de várias tonalidades saíam de suas
pupilas. Sua face estava pálida e as lágrimas por ela desciam, atestando a
pureza dos sentimentos que o dominavam.
Esperei que ele concluísse uma prece e
despedi-me. Nunca mais o vi. Mas o Euzébio me apareceu, certa noite, quando
dobrávamos uma esquina... Abraçamo-nos. Perguntei por Pedro e ele me informou
que não andava mais por aqui...
Despedimo-nos, e, nesse instante, reparei
que o livro que ele sobraçava era “O Evangelho segundo o Espiritismo”...
Pedro não perdera o tempo. Nem Euzébio...
Louvado seja Deus!
Uma história como outras
José Brígido / (Indalício Mendes)
Reformador (FEB) Agosto 1976
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