O Dr.
Antoine Demeure
e a
correspondência de Kardec
por Francisco
Thiesen
Reformador (FEB)
Setembro 1974
(...)
agrada à maioria dos habitantes do globo terráqueo, e aquilo que a essa maioria
agradará, não sabemos ou não podemos dizer. Ao homem só há duas ordens de
assuntos que o podem Interessar: - a que satisfaz à sua curiosidade de saber e de perscrutar o desconhecido,ou a que possa lisonjear a sua
vaidade ou as suas inclinações viciosas, ou
materiais. Tudo quanto saia desses dois campos é para ele metafísico ou desagradável.
materiais. Tudo quanto saia desses dois campos é para ele metafísico ou desagradável.
Ora
o muito que há a dizer não satisfaz a nenhum desses dois casos."
(Cezar Cantu
(Espírito), mensagem psicografada por Fernando de Lacerda, em 3-12-1906,
cap. XIX, "Do
Pais da Luz", vol. I, 5ª edição, 1952, FEB,)
Antoine Demeure, (1) desencarnado em
Albi (Tarn), França, a 25 de janeiro
de
1865, aos 71 anos, fora, segundo o
próprio Kardec, o Cura d' Ars da Medicina: médico homeopata,
humanitário, sempre disposto a socorrer sofredores e necessitados, encontrou, um
dia, na doutrina do Espiritismo, ao tempo do Codificador, “a chave de problemas
cuja solução debalde pedira à Ciência como a todas as filosofias".
Abraçando o Espiritismo com ardor, tornou-se um de seus mais perseverantes
divulgadores, pois, graças à "profundeza do seu espírito
investigador" - é ainda Kardec quem observa (O Céu e o lnferno") 2ª
Parte, cáp. II, 21ª edição, revista, 1974, FEB) - "compreendeu lhe
subitamente todo o alcance".
(1) Os escassos dados biogrãficos de
Demeure foram colhidos nas obras de Allan Kardec - "O Céu e o
Inferno", citada, e "Obras Póstumas", Segunda Parte, pp.
317/320, 13ª edição, 1973, FEB -, bem assim em "Les Pionners du Spiritisme
en France", Première Partie - "Les Ainés", III - Docteur Antoine
Demeure, pp. 28 e 29, editada por J. Malgras, 1906, e em "La Revue
Spirite", nov./dez. 1969, pp. 238/240, "Un protecteur d'Allan Kardec:
Le docteur Antoine Demeure", por Hubert Forestier.
Demeure e Kardec não se conheciam pessoalmente
mas correspondiam-se. Estabeleceu-se, assim, “mútua e viva simpatia" entre ambos, que a morte não só não fez
cessar como tornou mais intensa e profunda, pois, cinco dias após a 30 de
janeiro, escrevia o bondoso médico: “Aqui
estou. Ainda vivo, assumi o compromisso de manifestar-me desde que me fosse possível,
apertando a mão do meu caro mestre e amigo Allan Kardec. A morte emprestara à
minha alma esse pesado sono a que se chama letargia, porém, o meu pensamento velava.
Sacudi o torpor funesto da perturbação consequente à morte, levantei-me e de um
salto fiz a viagem. Como sou feliz! Não mais velho nem enfermo. O corpo, esse
era apenas um disfarce. Jovem e belo, dessa beleza eternamente juvenil dos
Espíritos, cujos cabelos não
encanecem sob a ação do tempo. Ágil como o pássaro que cruza célere os
horizontes do vosso céu nebuloso, admiro, contemplo, bendigo, amo e curvo-me,
átomo que sou ante a grandeza e sabedoria do Criador, sintetizadas nas
maravilhas que me cercam. Feliz! Feliz na glória! Oh! quem poderá jamais
traduzir a esplêndida beleza da mansão dos eleitos; os céus, os mundos, os sóis
e seu concurso na harmonia do Universo? Pois bem: eu ensaiarei fasê-lo, ó meu
mestre; vou estudar, e virei trazer-vos o resultado dos meus trabalhos de Espírito
e que de antemão, como homenagem, eu vos dedico. Até breve. Demeure." (O Céu e o
Inferno", ed. Citada, p. 202)
A comunicação que vimos de
reproduzir, revelando a jovialidade e toda a ternura de uma alma deslumbrada e
sonhadora, amiga e agradecida, não sufocara, porém, a positividade científica e
a acuidade filosófica do grande médico. Decorridos somente dois dias
- sete após o próprio desenlace - a 1º de fevereiro, Demeure retoma para
socorrer Allan Kardec num acidente por este sofrido: (2) (...) tende
coragem e confiança em nós, porquanto essa crise, apesar de ser fatigante e
dolorosa, não será longa, e, com os conselhos prescritos, podereis, conforme desejais,
completar a obra que vos propusestes como
fito da vossa existência." "Sou eu, Demeure, o amigo do Sr. Kardec -
esta mensagem é a do dia seguinte, 2-2-1865 . Venho dizer-lhe que o acompanhava
quando lhe sobreveio o acidente. Este seria certamente funesto sem a
intervenção eficaz para a qual me ufano de haver concorrido. De acordo com as
minhas observações e com os informes colhidos em boa fonte, é evidente para mim
que, quanto mais cedo se der a sua desencarnação, tanto mais breve reencarnará
para completar a sua obra. É preciso, contudo, antes de partir, dar a última demão às obras
complementares da teoria doutrinal de que é o iniciador. Se, portanto, por
excesso de trabalho, não atendendo à imperfeição do seu organismo, antecipar a
partida para cá, será passível da pena de homicídio (3) voluntário. É
mister dizer-lhe
toda a verdade, para que se previna e siga estritamente as nossas prescrições. Demeure."
(2) A natureza do acidente ou
crise não ficou esclarecida. Mas, sabendo-se que o mestre Kardec tinha problemas
circulatórios, vindo a desencarnar ao rompimento de um aneurisma da aorta, é
bem possível que um
distúrbio cardiovascular o tenha atingido. A mensagem do dia 1º terminava com
estas palavras: "Está muito quente aqui: esta fumaça é Irritante. Enquanto
estiverdes doente, convém não fazer lume, a fim de não aumentar a vossa opressão.
Os gases que aí se desprendem são deletérios. Vosso amigo Demeure."
A questão da correspondência de
Allan Kardec, cada dia mais volumosa, e a sua saúde, suscitando contínuos
cuidados, trazem-lhe novos conselhos de Demeure, visando à restauração das energias
físicas do missionário, seus afazeres doutrinários e, especificamente, a
solução para o problema epistolar: Instrução relativa à saúde do Sr. Allan
Kardec, comunicação mediúnica de 23-4-1866 (vide “Obras Póstumas", ed.
citada, pp. 317/320). “As forças humanas tem limites que o desejo de que o
ensino progrida te leva muitas vezes a ultrapassar. Estás errado, porquanto,
procedendo assim, não apressarás a marcha da Doutrina, mas arruinarás a tua saúde
e te colocarás na impossibilidade material de acabar a tarefa que vieste
desempenhar neste mundo." “Ouve--me: deixa para mais tarde as grandes
obras destinadas a completar a que está esboçada nas tuas primeiras publicações..."
“(...) sou aqui o delegado de todos os
Espíritos que tão poderosamente tem contribuído para a propagação do ensino,
mediante suas sábias instruções. Eles te dizem, por meu intermédio, que esse
atraso, que consideras prejudicial ao futuro da doutrina, é uma medida
necessária de mais de um ponto de vista, quer porque certas questões ainda não
se acham completamente elucidadas, quer para preparar os Espíritos a melhor
assimilá-las. É necessário que outros tenham limpado o terreno, que se ache
provada a insustentabilidade de certas teorias e que maior vácuo se haja
produzido. Numa palavra: o momento não é oportuno; poupa-te, portanto; quando
for tempo, indispensável te será todo o vigor de corpo e de espírito."
"Farei aqui o que não ousarias fazer por ti próprio: dirigindo-me a
generalidade dos espíritas, pedir-lhes-ei, no interesse mesmo do Espiritismo,
que te evitem toda sobrecarga de trabalho...” “Se a tua correspondência algo sofrer com isso, em compensação o ensino
ganhará." “Às vezes, necessário se torna sacrificar as satisfações
individuais ao interesse geral."
A correspondência comum, Kardec
passou a responde-la por intermédio de um substituto com o que as cartas a
serem por ele mesmas preparadas, por abordarem assuntos relevantes, demandariam
menores atrasos e em breve estariam em dia. Mas, como resolver o problema das
cartas acumuladas, mais de quinhentas? “ preciso"- responde Demeure ”como
se diz em linguagem comercial lança-las em bloco à conta de lucros e perdas. Noticiando
esta providência pela “Revista”, os teus correspondentes saberão o que fazer;
compreender-lhe-ão a necessidade e a considerarão justificada pelos conselhos
que acabamos de dar. Repito: seria impossível que as coisas continuassem como
têm ido. Tudo com isso sofreria: a tua saúde necessário, fazer os sacrifícios
indispensáveis.”
Demeure sabia muito bem a significação
daquelas epístolas que saíam das mãos do Codificador,
o seu poder de penetração nos espíritos e o alcance amplíssimo que elas tinham
na época e teriam ainda no futuro: “A
volumosa correspondência que recebes é para ti um precioso acervo de documentos
e informações; ela te esclarece sobre a verdadeira marcha e os progressos reais
da Doutrina; é um termômetro imparcial; proporciona-te, além disso, satisfações
morais que por mais de uma vez te tem sustentado a coragem, mostrando-te a
adesão que encontram tuas ideias, em todos os pontos do globo. Sob esse aspecto,
a superabundância é um bem e não um inconveniente, mas com a condição de te auxiliar
os trabalhos e não de os embaraçar, criando-te um acréscimo de ocupações."
* * *
Em 1913, a FEB foi instada por
confrades franceses a secundar "La Revue Spirite" (4) na
divulgação da "Correspondência Póstuma de Allan Kardec", abrangendo o
período de 1854
a 1869. "O Sr. Paul Leymarie, (5) diretor da
"Revue Spirite", fundada pelo mestre em 1858, julgou de utilidade
inserir na dita revista alguns extratos dessa correspondência, cuja publicação parece impor-se, muito particularmente
na época atual."
"Escritores, pensadores, políticos,
eclesiásticos, sábios, homens de todas as condições e de todos os países
corresponderam-se com Allan Kardec." "Com incansável paciência e
a fé esclarecida de
um apóstolo seguro de sua missão com toda a sua energia e talento de escritor,
o grande iniciador esforçou-se por consolar, satisfazer e instruir, abrindo às
almas aflitas e torturadas as ridentes e doces perspectivas da vida
supraterrestre. Minha correspondência,
escreve em uma de suas cartas - a primeira que vai aparecer no número de dezembro de 1913 da "Revue Spirite" -, será um dia, quando eu tiver desaparecido,
uma coisa bem curiosa: será o mais vasto repertório da história do Espiritismo
moderno."
(4) o artigo "La" só foi preposto ao nome da
"Revue Spirite" a partir de 1913. Mas, os franceses custaram muito a
se habituar com a inovação; por isso, no início, ainda usaram várias vezes a
grafia antiga na própria "La Revue Spirite".
(5) Não confundir com o pai,
Pierre-Gaétan Leymarie, companheiro e amigo de Kardec, e também administrador e
redator-responsável pela "Revue" durante longo tempo.
As palavras de Paul Bodier, (6) que reproduzimos
entre aspas, são parte das que ele escreveu no prefácio à publicação referida e
que estamos recolhendo do "Reformador", janeiro
de 1914, pp. 4 a 7. O nosso órgão não se limitou a anuir ao convite que lhe
vinha de
Paris, acolhendo, desde logo, em suas páginas a importante correspondência do
Codificador, pois teve, também, a primazia de estampar algumas cartas, às vezes
seguidas de ligeiros comentários do apresentador aludido, já que a guerra europeia
de 1914/1918 causou problemas à "Revue", obrigando-a a atrasos e
interrupções, enquanto o "Reformador" , inobstante as dificuldades de
outra ordem, peculiares à época e ao meio, conseguia manter-se à tona,
propagando as questões e os ensinos, os fatos e as notícias pertinentes à doutrina
e ao movimento do Espiritismo.
(6) Os nossos leitores já o
conhecem: é o autor do livro "A Granja do Silêncio" {Documentos
póstumos m Doutor em medicina relativos a um caso de reencarnação, prefaciado
por Gabriel Delanne, na qualidade de presidente da União Espírita da França, e
traduzido por Guillon Ribeiro para a FEB.
Mais tarde - dizia Paul Bodier -, a
reunião de todas essas cartas, (7) classificadas cronologicamente,
será suscetível de formar muitos volumes; mas, antes dessa exibição definitiva,
achamos que devíamos dar importantes extratos, persuadidos de antemão de que
serão favoravelmente acolhidos pelos admiradores do mestre."
(7) Como é do conhecimento público,
o Dr. Canuto Abreu é possuidor de volumosa correspondência original (rascunhos
manuscritos) de Kardec. Em junho último, esse nosso confrade gentilmente nos
exibiu algumas peças de sua vasta coleção, uma delas a pertinente à oferta de
um exemplar de "O Livro dos Espíritos", em abril de 1857, pelo
Codificador, ao Sr. Pâtier, responsável em parte pela iniciação de Allan Kardec
no Espiritismo, segundo se depreende da referida carta. Quase todos os
manuscritos são inéditos. Em virtude de as cartas publicadas na
"Revue" dentro do esquema traçado pela sua direção e sob orientação
de Paul Bodier, não terem atingido grande número de originais, como se
esperava, entendemos que isso já foi decorrência das destruições de documentos
por motivo da guerra 1914/1918 (fenômeno que se repetiu, com importantes papéis
do Espiritismo em 1939/1945).
Não
excluímos a possibilidade, entretanto, de que muitos documentos tenham sido
salvos, daqueles que constituiriam os muitos volumes do Sr. Paul Bodier, e
estejam Integrando o rico e bem catalogado acervo do nosso amigo de São Paulo,
Dr. Canuto Abreu.
***
Veremos, a seguir, que as epístolas
de Kardec, ainda aquelas redigidas por secretário, longe
de ligarem-se a razões de mera formalidade convencional, obedeciam a ditames de invariável
essencialidade, revelando na figura cativante do missionário de Lyon a clareza,
a precisão
e a lógica rigorosas que ressaltam dos seus trabalhos publicados, ao mesmo
tempo que da sua superioridade moral, emergente das palavras, conceitos e
atitudes, sobressaía aquela
imensa humildade que fora a sua fortaleza de todas as horas, humildade que o conservara
sereno e tranquilo na luta, até o fim da jornada.
***
Em
1865, com carta de 24 de setembro, o Sr. J. P. Sanson remeteu de Madri a Allan Kardec,
uma coletânea de poesias que escreveu com o fim de popularizar na Espanha as
idéias espíritas. O mestre respondeu àquela missiva nestes termos: "Sr. Só muito tardiamente recebi vossa carta
de 24 de setembro de 1865, assim como o volume de poesias que a acompanhava.
Não agradeci mais cedo porque, não compreendendo a linguagem espanhola, não
podia apreciá-las por mim mesmo, a meu pesar. Tive de confiá-Ias a pessoa mais
capaz e só há pouco tempo foi-me restituído o volume com uma análise que me
prova quanto a nossa bela doutrina felizmente vos inspirou. É uma mina fecunda para
a literatura e as belas-artes, que um dia nela se avigorarão largamente, (...)"
Depois dessas demonstrações de
modéstia e humildade, e da previsão do desenvolvimento da literatura espírita -
em plena realização no século XX - e da arte inspirada nos ensinos da revelação
nova, vejamos uns parágrafos da carta de 30 de dezembro, do mesmo ano,
endereçada ao Sr. Villou: "(.,,) mas estais enganado pensando que estou
impaciente por deixar a Terra. Certamente, não é ela uma mansão agradável, mas,
como minha tarefa não está ainda cumprida, peço a Deus que me dê forças e tempo
para terminá-a. Entregue ao dever que ela me impõe, encaro, graças a Deus, as coisas
de um ponto assaz elevado para suportar com indiferença as coisas da vida.
Deus, em sua bondade, concede-me além disso tão doces e numerosas compensações
que eu seria muito ingrato se me queixasse. Se aqueles que se ligam
ostensivamente com meus inimigos pudessem ver o fundo de meu coração
compreenderiam que perdem o tempo. O resultado que obtém é fazer-me extremar os
amigos duvidosos dos amigos sinceros e devotados. Lastimo aqueles que esperam,
por pequenas intrigas, impedir a marcha das coisas. Não é contra mim que eles
se ligam, mas contra a vontade de Deus, que lhes pedirá contas do moral de
todas as suas ações. Não é a mim que pertence julgá-los; não posso senão
Implorar
para eles a misericórdia do soberano Mestre. Recebei, etc."
A fé raciocinada era, na vida de
Kardec, autêntica, experimental, como no-lo revelam suas
palavras cheias de conformação às asperezas da existência e confiança na
Providência Divina, mas conformação e confiança ativas no ininterrupto trabalho
a que se impunha, no esforço de cumprir plenamente o seu dever - a
sistematização dos ensinos do Espiritismo. Tudo isso mais se configura nas
linhas abaixo, de 13 de janeiro de 1865, à Sra. Bouillant, de Lyon, além da
polida e franca abordagem de delicadíssimo assunto contido na carta sob
resposta: "Quando vejo os benefícios
da doutrina, as consolações que ela oferece, considero-me largamente pago de
todas as minhas fadigas e pergunto o que são a par disso as diatribes de alguns
detratores invejosos e ciumentos que não pensariam em mim se não estivessem
aterrorizados pelos progressos da doutrina." "Desejais tanto estar
comigo em minha próxima volta à Terra que me recomendais incessantemente não me
esquecer de vos inscrever. Não sabeis a quanto vos comprometeis; a tarefa será,
talvez, mais rude do que supondes. Ser-me-ão necessários companheiros firmes
que não recuem diante de nada; eu os manterei na vanguarda. Tanto pior para vós
se vos arrependerdes mais tarde; estais arregimentados, vós e o Sr., Bouillant,
e não podeis mais recuar, a menos de ser desertor (sic). Cumprimentos ao Sr.
Bouillant e acreditai no devotamento de Allan Kardec."
Quando escreveu, em 5 de janeiro de
1863, ao Sr. Normand, advogado, secretário da Sociedade Espírita de Tours, o
mestre revelou-se atilado psicólogo e não menor estrategista no trato de
problemas de alta relevância no âmbito do movimento espiritista: " ... em presença de semelhante resultado
(pertinente ao futuro da humanidade), as questões de pessoas devem desaparecer,
como quando se trata de uma grande batalha que deve decidir da sorte de um
império. Considerar-me-ia feliz se pudesse inscrever a Sociedade Espírita de
Tours no número dos melhores trabalhadores e aqueles que a dirigem no número
dos melhores generais da grande falange espírita; mas, não se deve perder de
vista que o melhor general é aquele que sabe aliar a prudência à coragem. Se
virdes o inimigo extraviar-se, não vos apresseis em atacá-lo ; deixai-o, ao
contrário, embaraçar-se na sua própria rede e então não tereis grande trabalho
para vencê-lo, porque ele se enfraquece e se desacredita e mata-se, por si
mesmo por seus próprios excessos". ("Reformador" de 1917,
pp. 334, 408 e 409.)
O trabalho de implantação do
Espiritismo no mundo realmente não se consolidou sem lutas, e estas Kardec teve
de vencê-las por fora e por dentro da área do edifício da codificação, envolto
em considerável andaimaria. É o que observaremos mais pormenorizadamente, a
seguir, principiando por tópicos da carta ao Sr. T. Jaubert, em resposta à que
este lha endereçara em fins de 1865 e lida na Sociedade de Paris: "Há tantas pessoas que não apanham senão a
superfície das melhores coisas! E, demais, é preciso considerar que alguns veem
no Espiritismo muito menos assunto de convicção do que uma nova mina a explorar
... " "Finalmente, devemos
fazer entrar em linha de conta os falsos irmãos, dóceis agentes de seitas
tenebrosas, que tomam todas as máscaras para se insinuarem por toda parte;
lobos que se vestem com pele de ovelhas para se introduzirem no redil;
hipócritas de devotamento factício que, com o auxílio de falências verdadeiras
ou simuladas esperam lançar a desordem e o desânimo nas fileiras..."
"Sim, caro Sr., é preciso que a
humanidade crie pele nova para se purgar de todas as suas chagas! Os inimigos
mais poderosos do Espiritismo não são seus adversários abertamente. declarados,
mas aqueles que lhe tomam a máscara. Fiscalizar todas as suas intrigas e
frustrá-las com prudência não é a parte menos rude e menos penosa da minha
tarefa. Felizmente, tenho por mim a coragem e a perseverança que dão a certeza
de conseguir o fim. Conheço os homens e de nada me admiro; sei que as grandes
ideias não se estabelecem sem luta; sei que terei ainda grandes obstáculos a
vencer, mas não os temo porque sei que a vontade dos homens nada pode contra a
vontade de Deus. O progresso é um parto laborioso que encontra resistência
tenaz nos abusos que ele tem de arrancar e que lhe disputam o terreno, palmo à
palmo. Digamos ainda- outra coisa - evito falar de mim -, é que se o sucesso de
minhas obras é causa de alegria para os adeptos sinceros, é para alguns uma dor
de coração: o crédito que esse sucesso me dá os ofusca. Não são verdadeiros
espíritas, direis; de acordo; mas
querem ter-lhes a aparência. Têm
ciúmes da minha posição! Desejaria vê-los em meu lugar, trabalhando sem tréguas
nem descanso, acabrunhado pela fadiga e pelas vigílias, com o espírito sempre
tenso, o olhar constantemente sobre todos os pontos do horizonte para vigiar a
minha barca à feição e conduzi-la mais seguramente ao porto e isso sem poder
tomar o repouso que seria necessário à minha saúde. Ao menos o marinheiro, uma
vez no porto, descansa ; para mim o porto é no outro mundo."
As respostas dirigidas através de
secretário não eram, como chamamos a atenção no início
deste artigo, formais, superficiais. Eis parte da que foi dada a um professor
que anteriormente
merecera uma carta do mestre a propósito de comunicação de Voltaire, publicada
na "Revue" em 1862: "O Sr.
Allan Kardec, como outro qualquer, não tem a pretensão de satisfazer a todos;
se achais o Espiritismo muito católico, outros supõem que não o é bastante.
Entre estas duas apreciações, encontra-se uma massa, crescente dia a dia, que o
considera como a filosofia mais racional." "Deixemos, pois, ao tempo o cuidado de esclarecer os
pontos ainda obscuros, porque cada dia se alarga o círculo dos mistérios que
ele revela. O Sr. Allan Kardec, que acompanha esse progresso, sabe também que
não se deve, por uma impaciência inconsiderada, ultrapassar a ordem das coisas,
e que, antes de colher, é
necessário deixar que o grão amadureça." "Além de muitas questões secundárias que encontrarão solução
ulteriormente, há uma que domina todas, é a prova da existência da alma e da
vida futura, baseada em fatos e apresentada sobre aspecto mais racional do que
até hoje se fizera; somente dessa prova decorrem consequências de incalculável
alcance para o futuro da humanidade." "Termino dizendo-vos que o Sr. Allan Kardec tomou muito em consideração
as vossas observações, que encontrarão seu lugar em tempo útil em seus escritos
ulteriores. Recebei, etc." ("Reformador", 1914, pp. 7,8,9,
180 e 181.)
A correspondência e a "Revue
Spirite" constituíam para Kardec - e é importante lembrarmo-nos
disso - vasto campo experimental, no qual ensaiava junto à opinião pública -
aquela parte consciente e ativa da coletividade que se não confunde com a massa inconsciente
e passiva - o desenvolvimento das ideias e a gradação dos ensinamentos, pois não
ignorava que tudo vem, no mecanismo sensível da evolução, no tempo próprio. É
por isso
que, às vezes, e não poucas, identificamos em suas cartas, como anteriormente
constatáramos em artigos e mensagens mediúnicas na "Revue", estudos
pelo mestre incorporados às páginas dos livros da Codificação e aos escritos
que deixou entre seus papéis, e que P.-G. Leymarie reuniu e "fez publicar
sob o título de "Obras Póstumas", em 1890 - vinte e um anos após a
desencarnação do missionário de Lyon.
Na carta abaixo, dirigida à Sra. M
...("Reformador", 1914, pp. 369 a 370), encontraremos Allan Kardec,
em sua bondade e humildade habituais, analisando a situação da sua pessoa, da
tarefa que lhe fora confiada, dos companheiros de lutas em face dos deveres
comuns, das dificuldades que encontrava, da posição de firmeza por ele assumida
e do rumo a ser seguido - tudo objetivando, sem equívocos nem ambiguidades, o
fiel e integral cumprimento daquilo de que lhe incumbira o Espírito de Verdade:
a implantação na Terra do Consolador prometido por Jesus-Cristo. O caráter sem
jaça do valoroso codificador do Espiritismo pode ser avaliado por este
documento transcrito integralmente, como o tem sido por outros tantos o
termômetro imparcial, no dizer do Doutor Demeure, e o mais vasto repertório da
história do Espiritismo moderno, na avaliação do próprio Kardec.
"Cara Senhora. Embora tenha tido o prazer de
ver o Sr. M ... -na sexta-feira última, «não
me julgo dispensado de agradecer-vos pessoalmente ,a boa e afetuosa carta que
tivestes a bondade de escrever-me e os testemunhos de simpatia que ela encerra.
Minha
pessoa é questão secundária: eu sei que a verdade será um dia conhecida e que
isso não se dará para a maior glória de certas pessoas; mas, cada coisa deve
vir a seu tempo e esta é desse número.
Certamente,
minha tarefa não é toda de rosas, e o que aumenta a dificuldade é que a
maior parte cai sobre mim; é que muitas vezes aqueles que deveriam secundar-me
trazem-me peias e suscitam embaraços. Mas, que é que isso me faz, desde que sei
que hei de
chegar ao fim? Sinto um pouco mais de peso e eis tudo. Isso não traz prejuízo
nem a mim
nem à doutrina, mas àqueles que não tiverem querido partilhar as fadigas e os
perigos da campanha; colherão o que semearam.
Não me lamenteis, porque eu próprio
não me queixo; tenho a pele de um elefante para as mordidelas; ela está à prova
de bala. Tenho além disso tantos bálsamos para acalmá-las, quando não fossem
cartas da natureza da vossa. Tudo isso é necessário e tem sua
utilidade. Jesus não teve seu Judas? Ora, eu, que estou longe de ser Jesus,
devo admirar-me
de os ter, às dúzias? Isso me está anunciado há muito tempo, e tudo que me
acontece que me impede de seguir meu caminho reto e de marchar a meu fim. Dia
virá, tenho a certeza, em que o Espiritismo terá, campeões devotados, que
saberão falar alto e fazer calar as más línguas e em que eu próprio serei
secundado por homens de coração na minha tarefa pessoal, que crescerá em lugar
de diminuir.
Não
creiais, minha cara Senhora, que minhas respostas ,e explicações sejam de
natureza a acalmar a malevolência; longe disso, quanto mais irrefutáveis forem
elas, mais irritação causarão a certos indivíduos como é lógico, porque eles
não procuram convencer-se da verdade: ora, quanto mais clara é a verdade, mais
os ofusca. Aqueles, sobretudo, que se escondem sob falsas máscaras ficarão
furiosos por se verem adivinhados. Não querendo confessar-se vencidos, forjam
novas armas, inventam novos estratagemas, e, é querendo salvar-se que se
perdem, porque se desmascaram.
Há
pessoas que nunca me perdoarão o ter sido bem sucedido e que prefeririam ver perecer
o Espiritismo, ao verem prosperar em outras mãos que não as suas. Mas, se fui bem
sucedido, não é ao meu mérito pessoal que o devo - porque não tenho a tola
pretensão de ser o único homem no mundo, capaz de levar esse negócio a bom fim:
é ao apoio dos bons Espíritos, que quiseram servir-se de mim, é pois dos
Espíritos que eles se devem queixar de não terem sido escolhidos.
Os
Espíritos tem muita razão de dizer que o Espiritismo levanta a vasa do mundo encarnado
e desencarnado e dele faz sair uma multidão de animais venenosos. Nunca
doutrina alguma causou tanta inquietação nem cólera e é o que prova a sua
importância.
Parece-me
ver bandos de pássaros que se agitam, se inquietam e gritam à aproximação da
tempestade.
Mas,
embora rindo-me desse rebuliço, vejo que devo agir com extrema prudência para
governar meu barco através dos escolhos; avançar ou parar a propósito,
interrogando os quatro ventos do horizonte. É um combate perpétuo com o
inimigo, que está em face, ocupado em barrar a passagem e o que está por trás,
procurando nos morder as pernas e para o quais é muitas vezes de alta política
fingir-se morto.
É
preciso que eu esteja sempre alerta, sempre trabalhando na construção do
edifício. Semelhante aos colonos do deserto, é preciso que eu tenha a enxada
numa mão e a a espada na outra.
Mas,
através da bruma, tenho uma bússola segura que me mostra a estrela polar e o
ponto a que devo chegar; e se sucumbisse antes de alcançá-lo, Deus
providenciaria, porque, falhe eu cedo ou tarde, Ele não deixará a sua obra inacabada:
as obras divinas não repousam sobre a cabeça frágil de um homem. Se um instrumento se quebra, é imediatamente, substituído.
Deu tem-nos sempre de sobressalente; é para por em prova que Ele permite que
certas pessoas se façam conhecer desde já pelo seu justo valor. Tenho sido, e
sou ainda agora, ao mesmo tempo, o capitão e o tenente, mas o alferes virá
e,por sua vez, tornar-se-á capitão; somente é preciso ganhar suas esporas.
Perdão,
Senhora, de toda esta verbiagem à qual me levou, sem que eu percebesse, não sei
que Espírito tagarela. Se eu não o fizesse parar, ele diria muito mais.
A Sra. Allan Kardec incumbe-me de
vos apresentar e a vossas senhoritas os mais afetuosos cumprimentos e eu vos
ofereço, assim como a toda a família, a expressão de meu inteiro devotamento.”
Allan
Kardec
Nenhum comentário:
Postar um comentário