Motes há, que, pela sua sutileza,
sugerem particular cautela para serem feridos. Eles figuram no índex de alguns
confrades e, cem olhos, como os do gigante Argos (da mitologia
grega),
os rebuscam nas publicações espíritas, a fim de serem imediatamente criticados,
se chegam a ser abordados. Um caprichoso tabu faz com que se transformem em
tema sacrílego, por isso conservados atrás de simplégadas (Da Mitologia - eram
rochas móveis no Bósforo que impediam, com seus repentinos choques, que os
barcos, passando por elas, atingissem as águas do Ponto.) que fecham a
passagem ao articulista audaz, esmagado sistematicamente, sempre que pretende
invadir o Ponto Euxino (O mar Negro era
originalmente chamado de Ponto Euxino) em que são conservados. Abordá-Ios,
portanto, é temeroso. Todo cuidado é pouco. Esse cuidado, todavia, pode ir, se
se quiser, desde a fábula até a parábola, a paródia, ou o diálogo. Eis os
recursos para se tratar de determinados motes, sem deixar em pânico alguns de
nossos vigilantes leitores.
Platão foi o gênio do diálogo e
ninguém, entre os gregos, o excedeu. Luciano - meu xará
dos idos do século 11 - foi o inventor do diálogo humorístico. Wieland
imitou-o, conferindo à técnica os ancenúbios (sinônimo de nuance) da comicidade e da
sátira. Erasmo de Roterdã fê-la famosa e inesquecível. Na Alemanha,
comprouveram-se no diálogo as inteligências de Mendelssoln e Engel. Entre os
italianos, notabilizaram-se Petrarca, Maquiavel, Gelli e Gozzi. Produziram
também notáveis obras em diálogo os ingleses Berkeley, Hurd, Lyttelton e
Addison. Mas foi da França que despontaram os maiores gênios, depois
naturalmente das gloriosas expressões da Antiguidade: Pascal, Malebranche,
Fénelon, Fontenelle, Montesquieu, Renan e esse incrível Voltaire!
Emprestando-lhe necessária extensão
filosófica, assim registra o tradicional “Grand Larousse”:
“On comprendra l'importance philosophique
du dialogue si l’on songe que Ia «dialectique»,
méthode de connaissance qui permet de s'élever à Ia contemplation de
l'absolu, n'est
autre chose à l'origine que l'art de díaloguer”. (Entende-se a
importância filosófica do diálogo, se considerarmos que a “dialética" -
método de conhecimento que permite se eleve até à contemplação do absoluto, não
é outra coisa que a origem da arte do diálogo – acataremos traduções melhores)
Tenho pois todas as razões para
escudar-me nessa parma (escudo
romano)
estilística, se me aventuro a reproduzir a intimidade de agradável dialogismo (figura de estilo que consiste em apresentar as ideias
das personagens em forma de diálogo), a travar-se num anfiteatro qualquer da
antiga Cencréia (cidade próxima a Corinto), onde Paulo raspou
a cabeça por fidelidade doutrinária, ignorando que o Cristianismo iria acabar
sendo um dia praticado dentro dos rigores da nova e nossa codificação
kardequiana, sem vinho, sem jejum, sem batismo, sem lava-pés, etc. Acompanhemos
portanto a conversação de Minos e Anaetes.
*
- Meu bondoso Anaetes, que me dizes
desse sincretismo estranho em que desejam os
menos estudiosos enredar o Rivailismo, nosso movimento de salvação espiritual?
- Referes-te certamente, Minos, às
ideias extravagantes que emergem da plebe e que buscam
imiscuir num só bloco a eles, espíritos incultos, ignaros e involuídos,
conosco, da
alta intelectualidade e de superiores noções da verdadeira iniciação...
- Pois já viste tamanha estultícia?
- Devo dizer-te, meu conspícuo
confrade, que guardo comigo, sobre o tema, algumas preciosas reservas...
- Mas como? Tu, Anaetes?! Não me
deixes supor que perdeste o juízo! Cáspite!
- Não é bem isso, Minos. Deixa que
me confesse ao teu judicioso coração de irmão e
compreenderás minhas preocupações.
- Se isto te vale de consolo...
- Pois bem. Fui noutro dia numa
dessas reuniões e...
- Tu?! “Pelo Cão!”
- Escuta-me, por Deus, antes de me
criticares a ação! Fui lá e verifiquei algumas
distorções
dolorosas, como rituais, símbolos, cantochões, etc, Mas, - curioso - Espíritos havia
que se manifestavam e, tanto quanto nós registramos em nossas tertúlias
intelectivas, procuravam ali conduzir aquela gente à prática do Bem, à crença
em Deus, ao conhecimento das leis fundamentais da nossa Pura Doutrina, tais
como a reencarnação, a
comunicação entre mortos e vivos, a pluralidade dos mundos habitados, etc.
- Mas isto não basta, meu caro
Anaetes!
- Sim, porém o difícil me parece que
está justamente nesse verbo: bastar. Afinal, que
é que basta?
- Ora, é claro que é preciso mais: é
preciso ler os compêndios básicos e assimilar as
lições dos tratadistas; é preciso livrar-se da superstição, dos rituais
exóticos, das danças bárbaras, das crenças toscas, etc.
- No entanto, como induzir criaturas
que se encontram naquela faixa evolutiva a passarem
para a nossa? Como é mesmo, meu caro Minos, aquele axioma da natureza que não
dá saltos..?
- Pelos nossos Guias! É fácil! Vamos
até a esses locais e ali preguemos a alvinitente singeleza da Doutrina!
- Meu bom amigo, não se me afigura
assim tão fácil a solução. Conto-te mais um pedaço
da minha incursão àquele érebo (sombra, escuridão
profunda).
Um medianeiro incorporado, vendo-me a um canto, chamou-me. Não tive como
escapar e, embora, já bem vês, bastante a contragosto, postei-me à frente dele,
depois que me obrigaram a tirar as sandálias. Aí, disse-me a entidade que se
manifestava: “Pois é, meu irmão, com você posso falar normalmente, mas com eles
aqui tenho de assumir outras personificações, senão acham que sou obsessor e
nem me querem ouvir. Mandam-me logo embora e começam a rezar para eu melhorar”.
Ou, então, acham que o meu intermediário está mistificando ou que a
manifestação não passa de puro animismo. Não tem jeito, não, meu filho. Tenho
mesmo de enrolar a língua e ir levando a coisa. Assim, pelo menos, me ouvem e
eu posso habilmente ir conduzindo essa gente à prática do Bem”...
- Ora vejam só...
- Pois é o que te conto. Disse-me
mais a tal entidade: que se ele cometesse a “ousadia” de dizer que a simbologia
não vale nada, logo lhe chamariam inimigo da Luz e seriam até capazes de surrar
o médium para por fim à “mistificação”.
- Estou perplexo! Quase aterrado com
tuas palavras. Porém, sei-as sinceras e, sendo tu quem as usa, não posso deixar
de aceitá-las. Mas, convenhamos, pelo menos que se dê
a isso tudo outro nome. Isso não é Rivailismo e não devemos sequer citá-los!
- Aqui não te compreendo, meu leal
Minos. Afinal, quando aportam nestas glebas cientistas
estudiosos dos fenômenos psíquicos, logo te apressas em convidá-los à
intimidade do nosso areópago para falarem às nossas hostes. Estes, no entanto,
não menos do que aqueles, estão afastados da nossa ortodoxia, por princípios
fundamentais. E não deveríamos também citar em nossos trabalhos e estudos
doutrinários os nomes dos investigadores clássicos da fenomenologia rivailista,
porque jamais foram ou se disseram rivailistas. Todavia, as pesquisas que
fizeram não serão por acaso Rivailismo? E os médiuns profissionais
das terras dos “goidels” (celtas) e dos “britanos” (britânicos?), que andarão
fazendo por lá: Rivailismo ou materialismo? No mais, hás de convir comigo que
em esferas altamente superiores estarão Espíritos ainda mais evoluídos do que
nós e os quais certamente também já não compreendem e dispensam a música das
materializações, a água da terapêutica fluídica, os nomes materialmente
deixados sobre as mesas de trabalhos para efeito de socorro, ou mesmo o
magnetismo da imposição das mãos. Será que lá em cima, nas culminâncias da
evolução, também eles estarão querendo desligar-se completamente de nós, a
dizerem que o que fazemos não é pureza doutrinária?
- Anaetes! Tu me confundes!
- Perdão, meu bom amigo. Acho que tu
te confundes a ti mesmo.
- Além de tudo, esqueces-te de que o
termo Rivailismo foi criado especificamente para
nomear a nossa Doutrina!
- Para replicar-te não creio sequer
necessária a “Arte de Glauco” (divindade marinha). Dás importância ao que não tem. Sabes
muito bem que o termo “ectoplasma” é acadêmico, pertence à Biologia e foi
criado para nomear a membrana que envolve o citoplasma. E daí? Nós por isso não
poderemos usá-lo, emprestando-lhe acepção mais larga? Penso, meu estimado
confrade, que esse termo “rivailismo” já não pertence exclusivamente a nós.
Disse o Mestre, aliás, que rivailista é todo “aquele que crê nas manifestações
dos Espíritos”. Ademais, também não poderíamos chamar-nos a nós mesmos “cristãos”,
que longe, muito longe
estamos de proceder rigorosamente como o Cristo doutrinou... Finalmente,
peço-te que atentes para o seguinte: se só pudesse ser considerado “rivailista”
quem segue severamente
a Doutrina Rivailista, nem eu, nem tu, nem ninguém sê-lo-ia de verdade. E cristãos,
por seu turno, só poderíamos contar algumas raríssimas exceções humanas.
- É incrível! Porém de certo modo
óbvio... Talvez tenhas alguma razão, Anaetes. Qual
deverá ser, então, nosso comportamento diante dessa gente?
- Acima de tudo, entendê-la. Um dia compreenderão muitas
coisas, como já compreendemos nós outros. A vida é uma escada, cujos degraus
representam ciclos evolutivos e conquistáveis passo a passo. Lá entre aquela
gente, como aqui entre nós, e como além de nossa evolução, está o Espírito. E
onde estiver o Espírito está o Rivailismo. Há Espíritos que se ignoram como
tais, quer no corpo, quer fora do corpo. Manifestam-se. Deixará
de haver Rivailismo nessas manifestações? Não é a ignorância ou o conhecimento
das coisas que dá existência à Revelação. Ela existe por si, como uma Verdade
independente de tudo. Da mesma forma não nos importa se alguém crê ou não no
Espírito: a
verdade é que afirmaremos e demonstraremos sempre que esse alguém é um
Espírito!
- Teus argumentos têm lógica,
Anaetes. Confesso-me perturbado.
- Acalma-te, Minos... É preciso que
te acalmes. Do contrário serão capazes de dizer que
já não és mais rivailista, pelo simples fato de que já pensas como eu...
- Apenas para terminarmos, resume
para mim tua belíssima conceituação, Anaetes.
- Que seja. Anota isto, Minos: tudo
é Rivailismo; mas nem tudo é Doutrina Rivailista.
E encerro aqui a reprodução do
diálogo que ouvi em Cencreía, e cujo mote, por reproduzi-lo, certamente me
levaria a ser esmagado entre as terríveis simplégadas, se Jáson não me houvesse
confidenciado, em tempo, a mágica de Medéia, para que eu vencesse o dragão da
intolerância ortodoxa... Praza aos céus que também eu tenha conseguido fixar
para sempre o movimento daqueles rochedos, deixando doravante o mar aberto a
todos, ainda que nele se tenha de entrar sob a proteção estilística do diálogo
que Platão e outros imortalizaram...
“Marcus: 9-40, in dialogus”
por Luciano
dos Anjos
Reformador (FEB) Abril 1971
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