Maurice Lachâtre
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O Último Auto-de-Fé
O Último Auto-de-Fé
por Zêus Wantuil
in ‘Reformador’ (FEB) Outubro 1976
(...) “Hoje a retaguarda da Inquisição praticou o seu último autro-de-fé, porque assim o quisemos." Saint Dominique (São Domingos)
“Espíritas de todos os países!
Não esqueçais a data de 9 de outubro de 1861. Será marcada nos fastos do Espiritismo; que ela seja para vós um dia de festa, e não de luto, porque é o penhor de vosso próximo triunfo!” Allan Kardec
Desde o começo do século XIX, O absolutismo e o liberalismo viviam, na Espanha, em constantes lutas entre si. A Igreja ora ganhava, ora perdia privilégios. A negra Inquisição, ali existente desde 1481, era abolida e restabelecida, até que o movimento revolucionário de 1820, contra o qual se opunha o clero, a suprimisse definitivamente. Dirigido pela Junta apostólica; o partido dos tonsurados suscitava várias insurreições a favor de D. Carlos, o representante co absolutismo extremo e do clericalismo escravizante.
O grande povo de Barcelona, capital do antigo Principado de Catalunha, participava ativamente do movimento nacional contra a cegueira ultramontana. As revoluções se sucediam, sempre com a classe clerical mancomunada com as forças absolutistas. Por volta de 1834, o povo oprimido praticava uma série de autos-de-fé. Turbas de homens ensandecidos, com machado em uma das mãos e tocha incendiária na outra, assaltavam, furiosos, mosteiros e templos, matando padres e freiras. Pouco mais tarde, em nome da Concordata de 1851, impunha-se a intolerância religiosa às Constituintes. E os anos corriam...
Em 1861, justamente no ano em que saía a lume, na, França, O Livro dos Médiuns, era posta à venda, na Espanha, notável síntese da doutrina kardequiana na célebre Carta de un espiritista a don Francisco de Paula Canalejas, ilustre escritor espanhol, futuro membro da Academia de Letras. Alberico Perón (Enrique Pastor), conhecidíssimo nos círculos filosóficos e literários como ardoroso discípulo de Allan Kardec, foi o autor da citada Carta, que produziu grande sensação. Mas, mesmo que Alberico Perón houvesse escrito centenas de cartas semelhantes e as distribuísse a torto e a direito, talvez não conseguisse a retumbância que teve o "auto-de-fé",
O famoso escritor e editor francês Maurice Lachâtre, a quem se deve a autoria da História dos Papas (10 volumes) e da História da Inquisição, achava-se refugiado em Barcelona, "albergue de los extranjeros", condenado que fora a cinco anos de prisão pelo regime absolutista de Napoleão III, por ter editado o célebre Dicionário Universal llustrado. Naquela cidade, onde permaneceria até 1870, ele fundou uma livraria. Profundo admirador de Allan Kardec, cujo nome e obra enalteceria no primeiro volume do seu Novo Dicionário Universal (1865) e a cujos ideais se unira, solicitara dele uma certa quantidade de obras espíritas, para expô-Ias à venda e propagar, assim, a Nova Revelação. "A Doutrina Espírita, tal como ressalta das obras de Allan Kardec: - declarava Lachâtre -, encerra em si os elementos da uma transformação geral das ideias, e a transformação nas ideias conduz forçosamente à da sociedade. Assim considerando, ela merece a atenção de todos os homens progressistas. Já se estendendo a sua influência a todos os países civilizados, ela dá à personalidade do seu fundador uma importância considerável, e tudo faz prever que, em futuro próximo, ele será consagrado como um dos reformadores do século XIX."
'As obras remetidas a Lachâtre, em número de trezentas, foram expedidas em duas caixas, com todos os requisitos legais indispensáveis. Na AIfândega de Barcelona, cidade que Cervantes qualificou de "archivo de Ia cortesía", as caixas de livros foram inspecionadas, cobrando-se do destinatário os direitos alfandegários de praxe. A liberação estava prestes a ser dada, quando uma ordem superior a suspendeu, com a declaração de que se fazia necessário o consentimento expresso do bispo de Barcelona, Antonio Palau y Termens. Este se achava ausente da cidade. A sua volta, foi-lhe apresentado um exemplar de cada obra. Não precisou muito tempo para que ele concluísse pela perniciosidade de tais livros, logo ordenando que fossem lançados ao fogo, por serem "imorais e contrários à fé católica".
Reclamou-se contra esta sentença, em frontal desacordo com as leis do pais, as quais poderiam, nó máximo, proibir a circulação daquelas obras, não havendo, porém, nenhum artigo que justificasse a sua destruição pelo fogo, Na ocasião, Kardec achou que o caso, a seu ver, "levantava grave questão de direito internacional", pois havia uma permissão legalmente solicitada. E perguntava "se a destruição dessa propriedade, em tais circunstâncias, não era um ato arbitrário e contra o direito comum", Pediu-se ao Governo que, em vista de não se permitir a entrada desses livros na Espanha, pelo menos consentisse na sua reexpedição ao país de origem. Por absurdo que pareça isso foi recusado, apresentando o bispo - homem de ampla cultura, doutor em Teologia, catedrático do Seminário de Barcelona, cônego magistral de Tarragona, e autor de várias obras religiosas - esta alegação medieva: "A Igreja Católica é universal, e, sendo esses livros contrários à moral e à fé católica, o Governo não pode permitir que eles pervertam a moral e a religião dos outros países."
Os livros foram confiscados pelo Santo Oficio, que tomou a si o poder absoluto de juiz e carrasco, sem sequer reembolsar o proprietário no que dizia respeito aos direitos aduaneiros.
Allan Kardec - declarou Henri Sausse - teria podido agir por via diplomática, levando o Governo espanhol a devolver as obras. Mas, os Espíritos dissuadiram-no disso, aconselhando que seria preferível, para a propaganda do Espiritismo, deixar essa: ignomínia seguir o seu curso.
continua
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