Caveant Consules
por Manoel Quintão
Reformador (FEB) Novembro 1939
‘caveant consules
ne quid respublica detrimenti capiat’
(que os cônsules se acautelassem
a fim de que a república romana não sofra nenhum dano.)
Certificar-se tão somente da
realidade tangível do fenômeno espírita e atestá-lo à face do mundo, sem
amarras de preconceitos, não é corresponder às finalidades superiores e
providenciais da doutrina.
O fenômeno pelo fenômeno é
pristino quanto o mundo e a humanidade nem por isso, até hoje, soube ou pode utiliza-lo, antes que como elemento
de superstição e confusão, em detrimento da boa causa.
Nem se trata, tampouco, de
certificar anseios e desígnios de imortalidade, transparentes de todos os
sistemas e confissões religiosas, em função moral regenerativa.
Sem retrosseguir mais longe por
fundamentar a tese, basta evocar a só atitude dos povos contemporâneos, que
padronizam a nossa decantada civilização ocidental e reivindicam foros de
cristandade.
Se houvéssemos de aplicar a essa
humanidade, que aí está a chacinar-se em espasmos de besta-fera, a sentença insofismável
do próprio Divino Mestre, quando disse que é pelo fruto que se conhece a
árvore, para logo teríamos, como de fato temos, a convicção de que esse
rotulado cristianismo nada tem de cristão e, desvirtuado e pervertido em suas
fontes originais, apenas há servido de engodo e repasto a todas as paixões e
apetites materiais. Acomodado, amesendado (= acomodado) a
quaisquer situações e vicissitudes políticas, nacionais e internacionais;
benzendo armas, sancionando conquistas belicosas, do mesmo passo que
responsando (repousando) por algozes e vítimas, a clamar misericórdia, é força reconhecer
que se de todo não faliu nos fins anódinos (conduzir a corrente
elétrica) lhe resultaram os meios de reconduzir o armentio (rebanho
de gado grande) ao aprisco do Pastor.
Entretanto, em espécie, esse
cristianismo também predica a imortalidade, a
responsabilidade da criatura e, a rigor, não contesta a
comunicação dos Espíritos (ditos santos) pro domo sua.
Que lhe falta, então, para
revalidar as promessas do seu divino legado e pacificar a consciência humana?
CONSULES!
Do ponto de vista material,
formal, convencional, teórico e até extrinsecamente
prático, nada, nada lhe falta. Ele tem pingues tesouros acumulados,
urdidura disciplinar perfeita, apoio tácito ou implícito de governos e povos.
Tem, a mais, o prestígio da tradição a valorizar-se na inópia (situação
de extrema penúria material) e na rotina das massas. Imiscui-se
nos ministérios, nas escolas, nas casernas, nas oficinas, nos lares; ergue
templos suntuosos e ermidas rústicas em toda parte; funda asilos e hospitais,
academias até... Tem prebendas (rendimentos de quem ocupa cargos
religiosos) e comendas, insígnias e galardões, múnus (encargo,
obrigação) e sinecuras com que forrar a ingenuidade de uns, a velhacaria de
outros e a vaidade de todos. Que lhe falta, então, para legitimar o sagrado
ministério?
- Pedro, tu me amas? Apascenta as
minhas ovelhas. Pasce aves meas... -
disse Jesus.
Mas as ovelhas não tem paz, tem
guerra. Perguntamos: onde a paz de N. S. Jesus Cristo? Concílios, encíclicas,
pastorais, bulas, decretais, cânones, anátemas, bênçãos, indulgências, missões,
é tudo antítese desse Evangelho que só deveria ser Luz, Espírito, Vida. Mas, a
luz da Fé redundou em treva de fanatismo sectário e fonte de tirania; o
Espírito desterrou-se da letra, por confugir-se em dogmas compulsórios; a Vida
aí a temos no estendaI (varal de roupa) de horrores contemporâneos.
E quando vozes autorizadas, por
extremes das gangas deste, clamam do outro
mundo o penitet (desgosto,
dó, tristeza) para os esplendores da vida eterna, o que se pretende é, não
aclarar a inteligência e pacificar a consciência, porém, negar simplesmente o
Espírito e, com ele, a razão única da própria vida!!!
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Não é, contudo, para esse cenáculo
que endereçamos estas linhas.
Sabemos o alcance e a latitude da
palavra evangélica que induzia o servo a que deixasse aos mortos o ônus de
enterrar seus mortos. Sabemos, também, de Martas
e Madalenas... Nosso reparo vai aos que, por misericórdia e de acréscimo,
vão tendo
olhos de ver e ouvidos de ouvir o novo sentido da vida planetária,
neste angustioso fim de século e de milênio, de pura revalidação evangélica, em
espírito e verdade. O reino de Jesus ainda não é nem será deste mundo, antes
que todas as criaturas de Deus o tenham realizado em si mesmas. Ainda não há
muito, clarividente amigo, do plano espiritual, dizia-nos que, em todo este
fermentar de horrores que se desatam no mundo, um só perigo existia, temível
para nós outros - o da própria falência. E de pronto compreendemos que não basta ter fé e praticar obras de fé; não basta dar testemunho
da verdade, senão que precisamos vivê-la em nós, para outrem, qual a viveram o
Cristo e seus legítimos Apóstolos, com amor.
Não será, portanto, de convenções
estatutárias, de tentames espetaculares, de congregações maciças, de institutos
de beneficência material, contingente, a obra precípua do vero Cristianismo,
que tanto vale dizer, do Espiritismo.
De realizações opimas e opulentas
que tais, vai o mundo referto, em decadência fragorosa. Essas obras não se
constituíram em antemural à onda de perversão dos princípios mesmos em que
radicaram, mas, até lhe ensejaram maiores brechas, ao sopro de competições e
dissídios humaníssimos.
Outro Espírito dizia-nos, de outra
feita, que era preciso cogitar do operário antes que da máquina, porque esta,
sem aquele, fadava-se ao fracasso.
Ora, não condenamos, nós, em tese,
quaisquer empreendimentos materiais do proselitismo espírita, certo de que tudo
vem a seu tempo e respeitamos o arbítrio humano, ainda mais quando lhe
reconhecemos sanidade intencional. Isso, porém, não nos impede, também, de
assinalar em consciência o que nos parece mais essencial na estruturação
doutrinária - a edificação íntima de cada um, da qual, nunca forçada, mas
espontaneamente, haja de surgir a eficiência e magnitude do conjunto, sem eiva
de personalismos. Porque, a verdade das verdades, à luz da Revelação que
pretendemos cultivar e divulgar, é que, sem paz e sem amor para conosco e entre
nós, não podemos senão ridiculamente oferecer-nos ao mundo. E mais: fá-lo-emos
com agravo de responsabilidades, porque já precatados de que a hora ê, e muito
se pedirá a quem muito se houver dado.
Qual de nós ousaria, em sã consciência,
atestar o integral cumprimento de seu dever, não na pauta do que tem feito,
mas na do que deixou de fazer, justamente porque, colhido no vórtice das
seduções temporais, não raro troca a alva de penitente por manto de sacerdócio,
esquecido de que foi este - o sacerdócio, que matou o profetismo.
Que a hora seja de testemunhos estrênuos,
ninguém, dentre nós, pode duvidar; e quando o espinheiro avulta e ameaça abafar
a semente, não descabe gritar - caveant consules.
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