A. Wantuil de Freitas
- Um hino ao Trabalho - Parte l
Indalício Mendes
Reformador (FEB)
Março 1976
Wantuil,
quatorze meses após esta foto,
assumiria a Presidência,
substituindo Guillon Ribeiro.
“Somente vive quem
luta,
Quem traz n’alma e
sobre a fronte
Um desígnio
inabalável;
Quem galga o áspero
cume
De um destino alevantado;
Quem vai pensativo
e cheio
De sublime
aspiração,
Levando diante dos
olhos,
Toda noite, todo
dia,
Ou algum santo
trabalho,
Ou então um grande
amor."
Victor Hugo
Fac et
spera!
(Trabalha e espera!)
Há dois anos, partia para a Espiritualidade
uma das mais significativas figuras do Espiritismo brasileiro, homem bom,
honesto, apegado ao trabalho, que construiu a própria vida terrena com esforço
pessoal, sacrifícios e louvável tenacidade, sem deixar de dar cumprimento aos
deveres que todos temos para com Deus. Pode ter parecido um obreiro como tantos
que mourejam neste mundo, sem alarde nem recursos que pudessem ser apontados
como incompatíveis com os sagrados mandamentos. Para ele a honestidade não era
uma virtude excepcional, mas um curial dever de todas as criaturas. Não
cortejou a popularidade nem cultivou o narcisismo. Não andou regateando
aplausos para os atos meritórios que praticou. Era simples e compenetrado de
que a vinda para este planeta não constituiu
uma excursão turística, mas uma oportunidade para o resgate de antigos débitos
e para a conquista do respeito que o comportamento retilíneo pode assegurar.
Chamou-se Antônio Wantuil de
Freitas, na encarnação que se encerrou a 11 de março de 1974. Quando a luz da
revelação espírita iluminou a sua consciência, soube ele compreender as
responsabilidades que assumem com o Alto todos aqueles que conscientemente se
declaram irmanados à Revelação dos Espíritos. Ser espírita não é urna simples
adesão verbal ao Cristianismo Redivivo: é um compromisso de trabalho fiel, de lealdade
incorruptível, de respeito a todos os seres vivos, a tudo quanto vive, de
incorporação integral à obra de colaboração com o Bem, sem preconceitos de
nenhuma ordem, sem restrições de qualquer espécie, a fim de que a passagem pela
Terra seja marcada por ações dignificantes e benéficas à humanidade em geral,
sem se deter para defender-se das injustiças do mundo, porém com a exclusiva
preocupação de exemplificar os ensinamentos do Cristo, tendo por bússola o
Evangelho.
Isto porque, conforme esclareceu
Bezerra de Menezes, "o mundo não vos compreende, como não compreendeu ao
Cristo de Deus. O mundo desvaira. Vive para o presente, nada espera do amanhã.
Quando despertar, será sob a guante da dor, que por toda parte flagela, mas
redime."
Dotado de aguda inteligência,
Wantuil dela jamais se utilizou para ofender ou destruir a quem quer que fosse.
O temperamento era equilibrado pela compreensão dos homens e das coisas desta
vida. Assim, a tolerância era apanágio da sua formação moral. Todavia, sabia
distinguir as nuanças do comportamento humano, e não se deixava iludir, graças
a um como que sentido intuitivo bem desenvolvido, que o advertia a tempo de qualquer
perigo oculto.
Reputava a disciplina como lei de
salvaguarda da unidade e da liberdade dos homens. Assim, conduzia-se com
segurança no meio heterogêneo em que atuamos. Sentia a prudência como atributo
essencial ao êxito, tanto quanto a discrição é importante no âmbito das
relações humanas. Sua energia era algo que bem retratava a excelência do seu
caráter. Gostava de dizer sim, mas nunca vacilou em dizer não, quando se
tornava imprescindível que o dissesse. Esse homem revelou desde cedo qualidades
pessoais que emolduraram sua personalidade com o acatamento e a veneração dos
que o compreenderam. Inspirava confiança e tranquilidade, por ser ponderado e
dado à introspecção prudente. Jamais foi capaz de dizer mais do que o necessário
em uma dada circunstância. Poder-se-ia afirmar que foi o homem certo para fazer
as coisas certas no tempo
certo.
Amou o trabalho, pôs sempre muito
amor em suas tarefas, como se estivesse a todo momento repetindo mentalmente
estas palavras de Jesus: "Meu Pai trabalha até agora, e eu trabalho
também" (João, 5:17),
Parece sua esta frase lapidar de
André Luiz: "O dever lealmente cumprido mantém a saúde da
consciência."
Por querer tanto bem ao trabalho,
dava muito valor ao tempo, e procurava sempre fazer o melhor possível, buscando
aproximar-se da perfeição, que é o ideal humano. Não desprezava pormenores. Estava
certo, porque, segundo o inolvidável inventor Edison, "são quase
sempre as coisas simples as que mais nos escapam", podendo trazer consequências
negativas para o sucesso de qualquer empreendimento. Se atentarmos para o fato
de que tudo é feito de pequeníssimas partículas, compreenderemos que não se
deve jamais subestimar
os pontos aparentemente insignificantes.
Disciplinador
do Tempo
Sua operosidade levava-o a
"brigar" com o Tempo. Não tinha, entretanto, o relógio como desafeto,
mas como prestimoso colaborador, porque lhe permitia enganar o Tempo uo, como
dizia Montherlant, "comer o tempo". O qualificativo, aliás, era
"les chronophages" (cronófagos ou comedores do tempo), frisou André
Maurois. Também foi, portanto, um "comedor" de tempo. Tanto assim
que, ao se converter ao Espiritismo, deixou
definitivamente de assumir compromissos sociais, e não aceitava atividades
estéreis, talvez por compreender que a vida humana é muito curta, e malbaratar
horas valiosas e irrecuperáveis com frivolidades significaria sacrilégio.
Metódico, dividia o tempo com
sabedoria e, assim, tinha tempo para tudo. Respeitava a pontualidade com
religioso escrúpulo, e não permitia que o atraso acidental se transformasse num
hábito, de maneira que para tudo tinha horário, dentro e fora dos deveres da
Casa de Ismael. Não se julgue haja sido ele um escravo do tempo, pois, na
realidade, foi um "disciplinador do tempo". Tinha-se a impressão de
que o relógio andava de
acordo com a conveniência do seu serviço. Seu dinamismo, mesmo quando a idade
já lhe impunha certas restrições, dava-lhe o caráter como que de ubiquidade,
tantas as providências que, quase simultaneamente, tomava, assegurando a
consumação dos esquemas preestabelecidos.
Seu amor ao trabalho faz-nos
recordar o célebre escritor Alexis de Tocqueville, autor de "Da Democracia
na América", livro que teve enorme repercussão em todo o mundo ocidental,
na época do lançamento. Tocqueville amava também o trabalho, e não desperdiçava
tempo. A esse respeito, escreveu Gustave de Beaumont: "O ócio era antipático à sua natureza e quer
o seu corpo se achasse em movimento ou imóvel, sua inteligência estava sempre a
trabalhar. Para Alexis, a conversa mais agradável nenhum valor tinha se não era
útil. Os dias aziagos eram os que ele perdia ou haviam sido mal empregados. A
menor perda de tempo o contrariava." Outro famoso escritor, Samuel
Smiles, hoje, infelizmente, desconhecido da juventude, escreveu: "O próprio Tocqueville disse: "Este
mundo pertence à energia. Não há época alguma da vida em que nos possamos
entregar ao descanso. O esforço no exterior de nós mesmos, e mais ainda no
interior, é tão necessário e até mesmo muito mais necessário à medida que
envelhecemos do que na mocidade. Comparo o homem neste mundo a um viajante que
se encaminha incessantemente para uma região cada vez mais fria, e que se vê
obrigado a agitar-se mais e mais, à proporção que se vai internando. A grande
doença da alma é o frio. E para embatermos esse mal terrível, devemos entreter
o movimente vivo do nosso espírito, não só por meio do trabalho, senão também
pelo contato de nossos semelhantes e dos negócios deste mundo."
Simplicidade
e Franqueza
Aquele seu "jeitão" de
mineiro do interior contrastava com o desembaraço do seu espírito, e a sua
inteligência viva e percuciente. Era franco e claro, mas não grosseiro. Pode
ser que haja sido algumas vezes mal compreendido, mas, muitos dos que se
surpreenderam com o seu feitio franco, mais tarde louvaram a sinceridade do seu
comportamento. Não iludia ninguém, não fingia, não contemporizava, não
procrastinava a solução dos problemas: enfrentava-os decididamente. Poder-se-ia
ter aludido à agrestia de um gesto seu,
mas jamais acoimá-lo de fariseu. Sua sinceridade estava à flor da pele. Entretanto, quando
preciso, sabia conversar amavelmente, recebendo com bonomia os que o
procuravam, revelando paciência e condescendência, que se casavam perfeitamente
com a natural simplicidade de suas maneiras, o que confirma "in
totum" o dito de Mayer: "a simplicidade é o selo da verdade".
Detestava os intrigantes e
aduladores. Não perdia tempo com eles, mesmo que tentassem corrompê-lo com
louvaminhas excessivas.
Modesto e sóbrio, por mais que
produzisse, sempre se dizia em situação deficitária em relação ao serviço
prestado ao Espiritismo e à Federação Espírita Brasileira. Fugia de se tornar
alvo de atenções, e padecia, quando, ungido pelas circunstâncias, tinha de ser
fotografado. Raramente condescendeu, como o fez, por exemplo, no lançamento do
primeiro selo espírita do mundo, comemorativo do Centenário da Codificação do
Espiritismo, a 18 de abril de 1957, no balcão filatélico instalado, por
deferência do então Sr. Diretor de Correios, no andar térreo da sede da
Federação, à Avenida Passos.
(Importa não se confunda com selos
postais os emitidos pela Federação Espírita Espanhola - a fim de angariar
recursos para o Congresso Espírita Internacional, realizado em Barcelona, em
1934 -, em número de seis, trazendo as efígies de Allan Kardec, Léon Denis,
Amália D. Soler, Bezerra de Menezes, Conan Doyle e Cosme Mariño.)
Economizar para prosperar
Wantuil era um homem econômico.
Considerava a economia a plataforma para a prosperidade, isto é, uma economia
ativa, destinada a promover utilidades, assegurando, ao mesmo tempo, a estabilidade
de que todos, indivíduos e coletividades, necessitam para progredir.
Não apoiava a economia estática,
improdutiva, carecente de movimento, como a dos sovinas, que têm no dinheiro
não um meio para a melhoria da vida, mas um fim egoístico, infecundo. Seu
conceito de economia, portanto, era elevado. Disse alguém, alhures, que "os poderes das virtudes formam o corpo de
um homem bom". Da mesma forma, os poderes da economia formam o corpo
da prosperidade. Além do mais, Wantuil dava muito valor à reciprocidade e
também à solidariedade. Ambas constituem um princípio coincidente com as ideias
evangélicas: No primeiro caso, "tudo o que quiserdes que os homens vos
façam, fazei-o assim também vós a eles"; no segundo, "pedi, e
dar-se-vos-á. Pois
todo o que pede, recebe" (Mateus, 7:7-12). É da sabedoria de Confúcio
princípio idêntico: "0 que não queres para ti mesmo, não o faças a outrem.
Isso é Reciprocidade."
A economia representa um ato
previdente, ato que atinge o clímax quando ela se dinamiza, proporcionando
oportunidades de desenvolvimento e fartura. Ainda mais se nobilita a economia
quando objetiva favorecer aos que necessitam mais, ou ao se destinar a
empreendimentos em favor da coletividade.
Até hoje se comenta, com um certo
sabor anedótico, que Wantuil mandava aproveitar o verso de envelopes de cartas
recebidas, para recados, pequenos cálculos e anotações, em vez de gastar papel
novo. Isso foi feito durante anos, mormente na longa fase de aperturas da FEB,
que se preparava para o prodigioso salto de que resultou o Departamento
Editorial.
Uma das maiores calamidades dos
tempos é o desperdício. Das sobras das mesas dos fartos, milhões de bocas
humanas poderiam ser alimentadas. ("Recolhei
os pedaços que sobejaram, para que nada se perca. Assim os recolheram e
encheram doze cestos de pedaços dos cinco pães de cevada que sobejaram aos que
haviam comido" - João, 6:12-13.)
Da supressão dos gastos supérfluos,
dos indivíduos, das organizações particulares humanas e dos governos muitos
recursos poderiam ser recolhidos para atender a imprescindíveis providências de
interesse público. .
As economias feitas por Wantuil,
juntas a outras providências por ele determinadas, permitiram que a Federação
Espírita Brasileira, pela primeira vez em sua história, pudesse respirar
aliviada, livre de angústias imensas, e partir para a realização de reformas necessárias
ao seu progressivo desenvolvimento.
Dores
e Silêncio
Como Kardec, Bezerra de Menezes,
Leopoldo Cirne, Guillon Ribeiro e outros, Wantuil de Freitas não escapou às
farpas da maledicência e da calúnia, e também sofreu em silêncio, sem queixas.
Se vez por outra se manifestou
para esclarecer e retificar alguma afirmativa aleivosa, foi por compreender que
seu silêncio poderia, de certo modo, envolver o nome respeitável da Casa que
tão proficientemente dirigia.
Sabedoria
da Experiência
Conversando um dia com alguns dos
mais íntimos elementos da Federação, disse Wantuil que, convidado para Diretor,
por Guillon Ribeiro, isto em 1936, levou seis anos a comparecer às reuniões sem
opinar fundamente acerca dos assuntos ali discutidos. Seguia o velho preceito:
"ver, ouvir e calar". Entrementes, prestava muita atenção à natureza
dos problemas debatidos, observava o comportamento dos demais Diretores e suas
reações, de modo a se assenhorear de tudo e recolher ensinamentos que, mais
tarde, muito úteis lhe seriam.
Conhecendo a situação geral da Federação, sentia-se mais apto para dar qualquer
opinião, quando achou que era chegada a hora de participar ativa e eficientemente
dos trabalhos. É que acumulara, pela observação, pela análise psicológica dos
companheiros e
do ambiente, a sabedoria que a experiência bem aproveitada vai formando, quase
que por um processo de sedimentação, para enriquecer o cabedal de aquisições
seleciona das pela inteligência. Não era homem de atitudes apressadas e
intempestivas. Não falava pelo prazer
tolo de falar, sem conhecimento de causa. Ponderava e externava seu ponto de
vista, quase sempre aprovado, em virtude da lógica de seus argumentos. Calados
podemos ser, às vezes, mais úteis do que opinando sobre algo que não conhecemos
suficientemente.
Dois
Acontecimentos Marcantes
Em 1944, a 8 de agosto, foi a
Federação Espírita Brasileira surpreendida por uma ação declaratória da Exma.
Sr.ª D. Catharina Vergolino de Campos, pleiteando os direitos autorais dos
livros até então recebidos mediunicamente por Francisco Cândido Xavier, ditados
pelo Espírito Humberto de Campos. O fato teve extraordinária repercussão no
país e no estrangeiro. O leitor interessado poderá encontrar na obra "A Psicografia ante os Tribunais",
de Miguel Timponi, editada pela FEB, o relato completo do ruidoso
acontecimento.
A inesperada situação exigiu de
todos, preponderantemente de Wantuil de Freitas, como Presidente da FEB, muita
concentração e solidariedade, para defrontar um problema que sequer fora
sonhado em nossa comunidade. Não se pode, hoje, imaginar o "corre-corre"
que foi a coleta de elementos destinados à contestação oferecida pela Federação
Espírita Brasileira, como primeira suplicada, e o nosso querido Chico Xavier,
como segundo suplicado, pois o tempo era curto, embora a atividade de Wantuil e
a capacidade do nosso também
querido Dr. Miguel Timponi, patrono da causa, assistido pelos advogados Drs. Nélson
Martins Paixão e Francisco Nogueira.
Todos foram convocados por Wantuil,
e todos - admirável exemplo de amor e solidariedade! - buscaram dar o máximo
que podiam para o êxito das tarefas que lhes foram atribuídas.
Uma noite, recebemos telefonema de
Wantuil, dizendo-nos da sua enorme preocupação com um trabalho de confrontação
e demonstração literárias, solicitado a ilustre correligionário, advogado,
jornalista e homem de letras, que - disse-nos - era, sem dúvida, excelente
prova da competência e da cultura do autor.
Entretanto, não era precisamente o
de que precisava para instruir a contestação. Tentara comunicar-se com o
acatado confrade, para tentar urgente recondicionamento do trabalho, mas não
conseguira localizá-lo. A situação era crítica, porque já não havia tempo disponível,
porquanto, esgotar-se-ia no dia imediato, às tantas, horas, o prazo previsto em
lei para a entrega da contestação por parte da FEB.
Feito o novo trabalho, "em cima
da perna", como se costuma dizer de algo feito às carreiras, foi enviado a
Wantuil, com a ressalva de que talvez necessitasse de emendas, para uma redação
definitiva. Ele o recebeu e mandou-o tal como estava, para não perder o prazo
fatal, pois, em resumo, era o que queria para evidenciar a identidade de estilo
entre Humberto-Homem e Humberto-Espírito.
Registramos o fato pela só
circunstância de evidenciar os dias atribulados que ele viveu, para reunir toda
a documentação necessária à defesa entregue a Miguel Timponi, autor da importante obra "Magnetismo Espiritual", sob o pseudônimo de Michaelus, e concatenar tudo quanto
hoje faz parte de um dos mais importantes livros acerca da psicografia em face
dos Tribunais.
O Espiritismo, finalmente, saiu
triunfante, graças ao elevado senso de justiça e à admirável isenção de ânimo
com que foi o feito julgado. Mas o nosso Wantuil deve ter conseguido muitos
fios grisalhos a lhe enfeitarem a cabeça... Não lhe faltara, porém, a
assistência dos Grandes Espíritos, a começar por Ismael. As preces feitas com a
maior unção, tiveram, finalmente, o resultado desejado.
Tudo parecia haver-se acalmado, e a
Federação continuava, como sempre o fez, como o faz e sempre o fará, a exercer
o seu mandato moral e espiritual com a tranquilidade dos justos, quando, logo
no ano seguinte, outro acontecimento importante, e igualmente grave, sacode-a.
Havia uma surda perseguição ao Espiritismo. As sociedades espíritas sofriam
mais de perto os efeitos da coação, que, dia a dia, se tornava maior. Todas as
dificuldades eram-lhes impostas para funcionar. Criou-se até um cadastro
policial para o fichamento dos adeptos.
Estávamos em 1945, ainda sob o
governo de Getúlio Vargas. Compreendendo a gravidade da situação e o alcance
coercitivo das medidas até então tomadas, Wantuil movimentou-se e pôde manter
contato direto com o próprio Presidente da República e com o Chefe de Polícia,
que era, na ocasião, o Ministro João Alberto. Não nos cabe esmiuçar o assunto.
Dentro de poucos dias, foram desfeitas todas as incompreensões, e as autoridades
"reconheceram às instituições espíritas o direito de se organizarem e
funcionarem livremente". Os acontecimentos de 1945 nada mais foram do que
a reeclosão do que havia acontecido em 1937 e em 1941, quando Wantuil ainda era
Gerente do "Reformador". Sua atuação foi corajosa, mesmo temerária,
pois esteve a pique de ser posto na cadeia como vulgar delinquente. As pressões
e coações ao Espiritismo vinham de longe. Uma Portaria do Sr. Chefe de Polícia
do então Distrito Federal, datada de 10 de abril de 1941,
reavivou a prevenção sem fundamento. Foi determinado o imediato fechamento das
portas da Federação Espírita Brasileira e de todas as sociedades e centros
espíritas. Wantuil tomou a frente do movimento de defesa do Espiritismo, com a
energia jovem que o distinguiu
até a madureza. Envidou esforços incomuns, mobilizou conhecimentos e promoveu
auxílios valiosos de personalidades simpáticas à Casa de Ismael e, principalmente,
à causa do Direito e da Razão, assegurada, pelos textos constitucionais. E o
mesmo Sr. Chefe de Polícia, que ordenara o fechamento das casas espíritas, deu
ordem, sete dias depois, para que elas reabrissem.
O curioso é que, em determinadas
circunstâncias, a Constituição era acatada para permitir que o médium Padre
Antônio pudesse exercer seus "milagrosos" atributos, mas os médiuns
espíritas eram considerados à margem das garantias constitucionais! Foi o que
mais tarde, por volta de 1945, veio a acontecer...
* * *
Como esclarecimento de natureza
histórica, diremos que a primeira perseguição imposta ao Espiritismo brasileiro
ocorreu no dia 28 de agosto de 1881.
A Polícia proibiu a realização das
sessões da Sociedade Acadêmica Deus,
Cristo e Caridade, que era, ao tempo, a mais importante Sociedade espírita
do Brasil. Em
consequência,
a Diretoria da mesma, a 6 de setembro do mesmo ano, enviou extenso Memorial ao
Imperador D. Pedro II, em defesa do Espiritismo. No dia imediato, 7 de
setembro, essa Sociedade dirigiu também ao Papa Leão XIII a sua reprovação aos
lutuosos acontecimentos verificados em Roma, na noite de 13 de julho do mesmo
ano de 1881, por ocasião da trasladação dos restos mortais do Papa Pio IX.
Benção Papal...
Diante disso, o Cardeal Z. Jacobine,
em nome do Papa Leão XIII, remeteu, a 19 de novembro, à Sociedade Acadêmica, um
ofício, agradecendo os termos da reprovação citada, enviando, aos signatários,
a bênção papal...
Contra
a ação antiespírita
Como continuassem as pressões contra
o Espiritismo, cuja origem não era desconhecida dos espíritas, a 19 de novembro
de 1890, a Federação Espírita Brasileira, fundada em 2 de janeiro de 1884,
através do "Reformador", que passara a ser seu órgão oficial, por
oferta de seu fundador, Augusto Elias da Silva, desde o dia 19 de janeiro do
mesmo ano, dirige ao então Ministro da Justiça longa defesa contra os artigos
157 e 158 do novo Código Penal, artigos que embaraçavam a prática do
Espiritismo, fazendo, a 22 de dezembro
de 1890, pelo Centro Espírita do Brasil, uma representação ao Marechal Deodoro
da Fonseca, primeiro Presidente da República Brasileira, solicitando a
supressão dos dois citados artigos do Código Penal.
Essa representação foi feita pelos
Drs. Bezerra de Menezes e Francisco de Menezes Dias da Cruz (então Presidente
da FEB) e os advogados Drs. João Carlos de Oliva Maia, José dos Santos Silva e
Antônio Luiz Sayão.
Em vista de persistirem as coações
ao Espiritismo, foi constituída, a 4 de agosto de 1892, no Rio de Janeiro, uma
Comissão Permanente que defenderia os espíritas quando perseguidos em suas
convicções e na propaganda da Doutrina. A Comissão ficou assim composta: Dr.
Ramos Nogueira, Senador Antônio Pinheiro Guedes, Dr. Adolfo Bezerra de Menezes,
Deputado Aristides Spínola Zama, Dr. João Carlos de Oliva Maia, Dr. Francisco
de Menezes Dias da Cruz, Deputado J. C. de Almeida Nogueira, Deputado Alcindo
Guanabara, Prof. Angeli Torterolli e Dr. Valentim Magalhães.
As figuras mais eminentes do
Espiritismo continuavam, entretanto, pugnando pela liberdade dos espíritas,
tanto que, a 10 de agosto de 1893, foi lida no Congresso Nacional uma
representação assinada por alguns espíritas ilustres, entre eles os Drs. Adolfo
Bezerra de Menezes, Dias da Cruz e Senador Pinheiro Guedes. Pedia-se ao
Congresso reconhecer a inconstitucionalidade do Código Penal na parte relativa
ao Espiritismo. O Presidente do Congresso remeteu a representação à Comissão
Revisora do Código Penal, para que a tomasse em consideração.
Eis, em síntese, alguma coisa dos
esforços despendidos em defesa do Espiritismo. Wantuil de Freitas, que conhecia
todos esses-fatos, sabia as dificuldades que teria de enfrentar, quando
sobrevieram os acontecimentos de 1941 e 1945, acima registrados,
* * *
Quando aludimos ao perigo por que
ele passou de ser preso, não exageramos. Ele próprio, alguns anos depois, o
declarou, pelas páginas do "Reformador", de agosto de 1948, que
poderá ser consultado por quem desejar aquilatar bem da estatura moral e da
coragem desse
homem que, depois de ser um Gerente excepcional do "Reformador" (cabe
ao Procurador a Gerência do órgão de imprensa
da FEB - exercida gratuitamente, como sucede em relação aos demais cargos da
Administração), viria a tornar-se, por consenso unânime dos amigos fiéis da
Casa de Ismael, um dos seus extraordinários Presidentes.
Estima
Justificada
A estima e admiração que Guillon
Ribeiro tinha por ele sublimou-se com a atitude varonil, mas humilde, ao
defender os espíritas contra a impertinência e o facciosismo de um acusador,
que pretendeu estender a todos os adeptos da Terceira Revelação o procedimento
inaceitável atribuído a um pseudo-espírita.
A coragem verdadeira é conhecida em
momentos agudos, como aquele, quando as possibilidades de segurança inexistem,
embora sejam exuberantes as da humilhação moral e física. Guillon não se
enganara, desde que trouxera Wantuil para o seu lado. Antevira as virtudes
do amigo, quando era ele ainda completamente desconhecido de todos. Lera-lhe na
alma a firmeza de caráter e a segurança de que seria capaz em qualquer
oportunidade, em defesa do Espiritismo, em defesa da Doutrina, em defesa da
Federação Espírita Brasileira.
O autor deste artigo tem motivos
para louvar, novamente hoje, a coragem de Wantuil de Freitas. Convidado para
Secretário do "Reformador", através de um telefonema de Wantuil de
Freitas para a redação do "Diário de Notícias", onde trabalhava,
ficou atônito.
Mediu a sua pasmosa insignificância e a altura do convite recebido de um homem
que conhecia, ainda superficialmente, dos momentos em que, em companhia de
Guillon Ribeiro, João Luiz de Paiva Júnior, Alfredo Félix da Silva (Capitão
Félix), João d'Oliveira e
Silva e outros, se conversava, às vezes, na sede da FEB. Ainda atordoado pelo
intempestivo convite, demo-nos pressa em agradecer e recusar a honrosa
lembrança, por vários motivos óbvios. Ante a insistência, acabamos por
aquiescer, em princípio, à vontade de Wantuil. Depois, conversamos e ele ficou
sabendo das razões fortes que nos levavam a não aceitar a indicação, ainda que
nos dispuséssemos a ficar inteiramente a seu dispor, dentro das limitações
reveladas. Tivemos, mesmo assim, de ceder.
Dias depois, algo sucedeu, sem o
conhecimento de Wantuil, que nos aconselhara a desistir. Escrevemos-lhe uma
pequena carta, sem relatar as razões que nos levavam a tal gesto. Divergiu
fortemente da nossa atitude. Tivemos, então, de lhe expor as razões verdadeiras
da renúncia, pois não desejávamos criar-lhe embaraços, porquanto um companheiro
não vira com bons olhos a escolha, e nos hostilizara. Compreendemos que, em
tais condições, iríamos, talvez, criar dificuldades ao trabalho de Wantuil, e
não seria justo que isso acontecesse, pois tudo ficaria em paz com a nossa
saída. Wantuil fechou a questão, tivemos de ceder, plenamente prestigiado por
ele. O companheiro, entretanto, alegou motivos particulares e se retirou.
Daí nasceu uma amizade de mais de
trinta anos, que ainda perdura, pois Wantuil está mais vivo do que nós, ainda
amortalhados na carne. Sentimos, no momento em que descrevemos esse fato,
apenas como subsídio modesto para a história desse grande amigo, uma
profunda emoção. A sua lealdade sólida jamais enfraqueceu, comprovando a sua
bela formação moral.
O
Guia de Wantuil
Compulsando notas e documentos
inéditos de Wantuil de Freitas, que nos foram confiados para que pudéssemos
consubstanciar este trabalho, soubemos de um fato, que não deixa de ser
pitoresco, ocorrido pouco tempo depois da sua conversão ao Espiritismo. No
Grupo familiar de que fazia parte, foi-lhe dito, logo às primeiras reuniões,
que o seu Guia era Ismael. Ao tomar
conhecimento disso, Wantuil procurou informar--se da personalidade de Ismael,
que muitos pensavam tratar-se do iluminado patrono da Federação Espírita
Brasileira. Wantuil recebeu o informe como simples mistificação.
Peremptoriamente, recusou-se a aceitá-lo. No decurso desse mesmo ano, ouviu
referências a uma médium residente, então, na Avenida Pedro II, no Rio, cuja
especialidade era retratar mediunicamente, a pastel, sem receber qualquer
remuneração, Espíritos desencarnados. Apesar de ainda não conhecer essa médium,
que era a distinta senhora Dinorah Simas Enéas, esposa do Coronel Simas Enéas,
com quem tivemos cordiais relações, bateu à sua porta, desinibidamente, e pediu
o retrato do seu Guia, o que lhe foi desde logo prometido. Passaram-se
dois meses. Voltou à casa da médium e esta lhe entregou o retrato que fizera, o
que foi para ele grande decepção. O Espírito apresentado era jovem, sem barba
nem bigodes. Isso lhe deu que pensar. Pelo menos, acertara num ponto: não se
tratava do
Ismael
que lhe haviam dito antes, no que, aliás, nunca acreditou. O verdadeiro Ismael, em que todos pensavam, deveria
ter barbas longas, como as de uso em sua época. O fato serve para reafirmar que
Wantuil, desde cedo, gostava das coisas claras, sem sofismas. Levou o retrato
para casa. Havia lá uma pretinha analfabeta, que era médium vidente. Quando viu
o patrão entrar e deu com os olhos no retrato, exclamou, de inopino, num misto
de surpresa e contentamento: "Xii! É o Guia do seu Antônio!"
Isso fez aumentar ainda mais a
confusão que ele estava desejoso de esclarecer. Quer dizer que o seu Guia era
mesmo aquele jovem imberbe?
Nada disse, mas, na sessão que
dirigia em seu lar, perguntou mentalmente como poderia ser explicada tamanha
confusão. A resposta não se fez esperar: "Todos os que trabalhamos sob a direção de Ismael tomamos-lhe o nome”. Eu sou um dos muitos que lhe recebem
instruções." Depois disso, Wantuil deixou o caso de lado. A propósito,
tivemos também uma experiência igual, em seu desfecho, quando, na década de 40,
fazíamos sessões em nossa casa. Não compreendemos também, naquela ocasião, que
um Espírito se manifestasse no mesmo dia e na mesma hora em sessões realizadas
em lugares diferentes. Fizemos idêntica consulta e tivemos resposta idêntica.
Causara-nos espécie a presença de um
Espírito com o mesmo nome, a apresentar-se, coincidentemente com as suas
atividades conosco, em outras reuniões à mesma hora, no mesmo dia.
Disse-nos o orientador espiritual
dos nossos trabalhos que, via de regra, o Guia, chefe ou diretor espiritual do
grupo, é o mais solicitado. Tem ele seus assessores, que são componentes do
mesmo grupo e estão autorizados a usar-lhe o nome e a se apresentarem, nas
obras de assistência moral, espiritual e de caridade, com a sua assistência,
como se fossem ele próprio, pois, na realidade, é ele que determina a seus
colaboradores o que devem fazer e como o fazer em qualquer circunstância, com
um certo poder discricionário, é claro. Desde então, compreendemos o
"mecanismo" dos trabalhos espirituais, nesse particular, porque nos
satisfizera cabalmente a resposta clara que recebêramos. O
Espiritismo tem sutilezas que somente podem ser conhecidas através da
experiência trazida pelo contato frequente com esses prestimosos amigos do
Além. Podem os mais exigentes considerar a explicação insubsistente e parca,
talvez por não compreenderem
ainda
o que já nos foi possível compreender: há da parte dos caridosos irmãos da
Espiritualidade a tendência para dar soluções práticas e simples a problemas
igualmente simples, criados pelos humanos...
Bezerra,
Cirne e Wantuil
Quando atacado, raramente se
defendia, e, quando o fazia, era por meios que não redundassem em ataques
pessoais, em prejuízo da Doutrina. Em 1950 como fosse acusado de dilapidar o
patrimônio da Federação, respondeu com a publicação do Relatório que se vê no
"Reformador" do mesmo ano - págs. 219 e 220 -, na qual ficou
evidenciado haver feito, em apenas dez anos, o que a Casa de Ismael não
conseguira realizar nos 57 anos anteriores. Doutra feita, acusado de já não
merecer a confiança do corpo social, Wantuil convocou a Assembleia Geral, e
esta, em 15 de abril de 1950 (ver "Diário Oficial" de 12 de maio de
1950, página 7.399), unanimemente lhe concedeu poderes que só se dão a homens
daquela estatura moral. Em 1954, contra a expectativa dos que o hostilizavam,
viu aprovada, também por unanimidade, a reforma dos Estatutos da Instituição.
Ele, Bezerra e Cirne foram os Presidentes mais combatidos de toda a história do
Espiritismo, mas, como esses dois, soube sofrer em silêncio e não se esqueceu
nunca de orar pelos que o caluniavam e perseguiam, sem jamais recorrer à
Justiça Criminal para processar seus detratores.
A. Wantuil de
Freitas - Um hino ao trabalho - parte 2
por Indalício
Mendes
Reformador (FEB)
Abril 1976
Biblioteca
e Livraria Wantuil de Freitas
Há aspectos muito interessantes da
personalidade de Antônio Wantuil de Freitas que poucos puderam conhecer. A sua
modéstia era, como dissemos, congênita. Por isso, não foi surpresa para nós o
encontrarmos, em algumas das anotações por ele deixadas, ou em volantes
impressos, frases como esta: "Nunca
foi publicado, nem no "Reformador". W.", "Arquivo na Biblioteca", etc. Não
raro, mandava arquivar sumariamente, sem qualquer vacilação, o que quer que a
ele se referisse, salientando o seu trabalho, direta ou indiretamente, como,
por exemplo, uma carta do "Centro Espírita do Calvário ao Céu" - Rua
Cel. João Manoel, 763 - Caixa Postal, 141 - Bebedouro - Estado de São Paulo, da
qual tomou conhecimento por cópia a ele enviada pelo 1º Secretário da FEB,
noticiando homenagem a Wantuil, em se lhe atribuindo o nome à Biblioteca e à
Livraria da Instituição.
Reverência
à FEB
O seguinte ofício, da Federação
Espírita do Estado do Rio de Janeiro, subscrita por seu Presidente, Dr.
Floriano Moinho Péres, mostra também, a tinta vermelha, esta recomendação:
"Guardar. Refere-se ao Presidente da
FEB":
"Niterói, 3 de dezembro de
1968. Caro doutor Wantuil de Freitas.
- Paz, com Jesus-Cristo!
"Na oportunidade do NATAL que
se aproxima e do ANO NOVO que se prenuncia dos mais fecundos para a DOUTRINA DO
ESPIRITISMO, desejo fazer-lhe, em meu nome pessoal e no da DIRETORIA DA CASA DE
BEZERRA, os votos sinceros de muita paz e tranquilidade espiritual junto
àqueles que mais lhe são caros.
"Pedimos ao PAI CELESTIAL muito
pela sua saúde, e pela permanência, ainda por longos anos, no corpo somático, a
fim de que a CASA DE ISMAEL possa continuar encontrando, nas suas afinidades
psíquicas com o PLANO MAIOR, toda a orientação segura
com
que tem genialmente conduzido esta grande nave que se chama PACTO AUREO.
"Que possamos estar sempre à
sombra dessa árvore frondosa, que é a FEDERAÇÃO ESPíRITA BRASlLEIRA, que nos
tem inspirado e conduzido no CAMINHO CERTO.
"Fraternalmente, Floriano
Moinho Péres."
Curioso
Bilhete de Ismael Gomes Braga
O seu comportamento coerente
impunha-se mesmo com os amigos mais íntimos, evitando sempre que algo fosse
feito para se pôr em relevo a sua pessoa. Ismael Gomes Braga, figura relevante
no movimento espírita, que o estimava muito e era também por ele muito
estimado, enviou-lhe o seguinte bilhete, cuja redação, deliciosamente
impregnada de bom humor, deve ter feito o "velho" Wantuil sorrir e
morder de leve a indefectível cigarrilha que o acompanhava:
"23-10-64 (1º de seu ano 70)
"Wantuil,
"Quanta coisa V. já fez em 69
anos!
"Fortuna, cultura, rica prole,
livros, construções, etc., etc. Deixará o mundo bem melhor do que encontrou.
"Deus seja louvado por tudo que
V. pode e por tudo que ainda poderá realizar pelos nossos belos ideais EEE.
"O longo artigo
"Continuidade", aqui anexo, é excelente quanto à qualidade do papel,
e só. As ideias são velhas e pouco valem, mas V. reconhecerá que o papel é
realmente bom e não poderia ficar perdido.
"Peço-lhe apresentar à sua
santa companheira os meus sinceros parabéns pela virtude de estar suportando
Você há tantos anos, sempre com paciência.
"Cordial abraço do
ISMAEL."
Estamos fazendo estes registros sem
qualquer preocupação cronológica, como o leitor deve ter observado. O
importante é realçar a firmeza de comportamento de Wantuil de Freitas, pela
segurança e lucidez com que se houve no desempenho de numerosas funções, no
curso de sua vida produtiva.
Cultura
Reconhecida
Em 1942, isto é, um ano antes de ser
conduzido à Presidência da Federação Espírita Brasileira, para substituir
Guillon Ribeiro, personalidade forte e atraente, sob todos os aspectos,
principalmente pela educação evangélica, aprimorada cultura geral e profundo conhecimento
do nosso idioma, ingressou Antônio Wantuil na Sociedade de Homens de Letras do
Brasil, por proposta do Dr. Nélson Martins Paixão.
Sabendo-se o rigor mantido por esse
conspícuo cenáculo de cultura fundado por Olavo Bilac, em 1914, avaliar-se-á o
reconhecimento do valor intelectual de Wantuil de Freitas, bem versado em nosso
vernáculo, hoje tão descurado, e a ratificação do seu mérito pela unânime
resolução da Diretoria, constituída por homens de letras.
Eis o ofício que lhe foi enviado, ao
qual nunca se referiu, nem mesmo em palestras íntimas:
"Rio de Janeiro, 1º de 12 de
1942.
"Ilmo. Sr. Dr. Antônio Wantuil
de Freitas.
"Tenho a subida honra de
comunicar-lhe que por resolução unânime da Diretoria foi indicado o nome de V.
Exa. para fazer parte do nosso grupo social na
categoria
de sócio efetivo.
"Congratulando-me com a feliz
escolha, valho-me da oportunidade para reiterar os protestos da mais elevada
consideração e distinto apreço.
"Subscrevo-me, com a devida
vênia,
confrade admirador
Arnaldo Damasceno Vieira,
Presidente."
Com
Chico Xavier
Wantuil de Freitas foi amigo pessoal
dos grandes espíritas do seu tempo, com os quais se correspondia amiudadamente.
Dentre eles, Guillon Ribeiro, Vinícius, Ismael Gomes Braga, Romeu Camargo,
Camilo Chaves e muitíssimos outros, como seja o nosso querido Francisco Cândido
Xavier, cuja amizade se iniciou em 1932.
Chico era tratado por ele como um
filho, e ambos se entendiam maravilhosamente. O trecho da gravação feita em
Uberaba (MG), na manhã de sábado, dia 19-12-1967, quando da visita da
"Caravana Cristã-Espírita da Guanabara" ao médium, sob a responsabilidade
de Geraldo de Aquino - e integrada também por Floriano Moinho Péres, Presidente
da FEERJ -, estampado na edição de janeiro-1968 de "O Espírita
Fluminense", sob o título "De Francisco Cândido Xavier ao Presidente
da Federação Espírita Brasileira", é,
neste sentido, bastante expressivo:
(...) "Nós pedimos ao nosso Geraldo de Aquino levar ao querido
companheiro e orientador, Dr. Wantuil de Freitas, o nosso respeitável e cada
vez mais digno Presidente da nossa Federação Espírita Brasileira, a nossa
palavra de agradecimento pelo muito que recebemos do seu coração e da sua
inteligência da sua capacidade administrativa, do seu senso de orientação!
"Durante
quarenta anos o nosso Dr. Wantuil ele Freitas tem sido para mim um amigo e um
mentor. Se é verdade que temos no Espírito de Emmanuel um amigo vigilante, um
orientador no Mundo Espiritual, eu devo reconhecer de público tudo quanto devo
a este nosso amigo valoroso e incansável, que, no silêncio e no sofrimento,
tantas vezes incompreendido, tantas vezes na luta, tem sabido arrostar
dificuldades enormes para conduzir o Navio
dos nossos princípios no Brasil, durante estes anos todos de sua orientação na
Federação Espírita Brasileira, com o valor e com a paciência que nós lhe
reconhecemos.
"Nós
queremos dizer, diante deste Natal: - Dr. Wantuil, nosso querido amigo, Deus o abençoe, Deus o
engrandeça! Que Jesus multiplique as suas forças, e que nós todos, em oração,
possamos agradecer ao nosso Divino Mestre e Senhor tudo quanto devemos à
presença do senhor no Brasil e no mundo! Nós queremos reconhecer isto! Muitas
vezes, senão podemos reconhecer, é pela nossa imperfeição. Mas nós queremos que
o senhor saiba que nós desejamos reconhecer isto, e Jesus há de nos ajudar para
que reconheçamos isto, dando ao
senhor a homenagem do nosso carinho, do nosso respeito e da nossa gratidão! A
nossa alegria de hoje, em Uberaba, é uma alegria em que o senhor está dentro
dela em todos os minutos. Em cada número dessas orações musicadas (porque nós
estamos dentro de melodias que são verdadeiras orações), a sua presença está conosco,
e nós dizemos: Dr. Wantuil, Deus o abençoe! O nosso Geraldo de Aqvino levará ao
senhor e aos companheiros
da Federação Espírita Brasileira a nossa mensagem de respeito, e de gratidão
também. Louvado seja Deusl"
Algum dia, naturalmente, os
biógrafos do estimado médium mineiro oferecerão ao mundo a valiosa e interessante
correspondência entre eles permutada, tão importante para a história do
Espiritismo no Brasil, e há dois anos confiada, por Zêus Wantuil, ao nosso companheiro
Francisco Thiesen, Presidente da FEB.
Então, ver-se-á quão valioso foi o
período da vida de Wantuil em suas relações sempre amistosas com Chico. Homem
dotado de enorme perspicácia e clarividência
possuiu
ele um como que dom premonitório, que muitas vezes o ajudou a prevenir
problemas difíceis, situações angustiantes ou embaraçosas.
Wantuil
parecia "Adivinho"
Lembramo-nos de que, um dia, ele nos
expusera pelo telefone certo fato que teria de encarar proximamente. Trocamos
ideias e, modestamente, opinamos. Wantuil divergiu. Ao nosso ponto de vista
opôs o seu. Pelo modo com que falava, dava a impressão de que o fato já se
verificara e ele o via, como que numa tela, com as consequências respectivas,
pois nos disse:
"Não. Isso deve acontecer assim e assim, por isso e por aquilo."
Depois, rematou: "Já sei o que vou fazer." E explicou-nos
superficialmente a ação que iria desenvolver, com a prudência que nunca o
abandonou. Desligou o telefone. Ficamos a pensar no caso e a desejar que ele
fosse bem sucedido, no que não tínhamos, aliás, a menor dúvida.
Passam-se os dias e chegou aquele,
decisivo, em que deveria tomar a atitude que nos revelara. Os obstáculos não
foram pequenos, mas ele os venceu, porque tudo foi "assim e assim",
conforme sua previsão, "por isso e aquilo", etc., etc. Evidentemente,
muitos fatos curiosos, da intimidade da Casa de Ismael, poderiam ser mencionados,
e talvez o possam um dia, como evidência do que foi ele como homem espírita, a
serviço da Casa-Máter.
Restaurava
sua força na prece
Sua força de vontade era algo de
admirável também. Sabia o que queria e como devia querer. Eclodira o "caso
Humberto de Campos", envolvendo a Federação Espírita Brasileira e
Francisco Cândido Xavier. Foram dias e noites de intensa preocupação para todos
nós, principalmente para Wantuil, que, como Presidente, suportava o peso de
gigantesca responsabilidade. Como sempre fazia, recorreu à oração, porquanto
tinha uma fé
inabalável no poder do Alto. Sabia, porém, que todos temos compromissos
espirituais a satisfazer, e que, a este respeito, a imparcialidade da Lei é
inexorável. Se tivesse de carpir a dor de uma provação maior, decorrente do seu
passado espiritual, estava pronto e resignado a receber fosse o que fosse.
Entretanto, não desejou jamais que algo pudesse ferir, ao de leve, embora, a
Federação Espírita Brasileira. Temia não por si, individualmente, mas pelo que
pudesse afetar Francisco Cândido Xavier e a Casa de Ismael, de tradição pura e
respeitável, amparada pela autoridade moral e intelectual de tantos vultos
insignes que por ela passaram e que constituíram a base terrena, íntegra e
sólida, do Espiritismo Cristão no Brasil.
Sentia-se pequenino diante da
enormidade da questão que, inopinadamente, desafiava a Casa-Máter.
Na sua condição de médium, deve ter
pensado como pensou Pedro Richard, certa vez, quando se manifestou no Grupo
Ismael e ditou ao médium Celani palavras cheias de amor e incentivo, conforme
se poderá ver pelo trecho que, a seguir, reproduzimos:
"Compreendei todos vós que a Federação é árvore que o Pai plantou. (...)
Porém, não perecerá. (...) É preciso lutar, lutar muito, para receber aqui o
prêmio do sacrifício. É preciso confiar de verdade nas promessas de
Jesus-Cristo, as quais se cumprem mediante a assistência dispensada a seus
servos. Se reconheceis a vossa fraqueza, também haveis de reconhecer que acima
de vós laboram os fortes, fortes pela virtude, fortes pelo saber." .
A verdade é que, pelas preces,
revigorava o ânimo e tomava providências que contribuíssem para acautelar os
respeitáveis direitos da Federação. Nós, fechados em nossa
insignificância, como um tatu-bola quando acossado pelo perigo, nos
fortalecíamos ao mirar a serenidade, ainda que aparente, de Wantuil de Freitas.
Ele confiava na Justiça brasileira,
porque a questão, como ficou provado posteriormente, apesar de delicada, teria
de encontrar uma solução compatível com a Verdade. E esta é indivisível e una.
Humildade
Num certo período da década de 60,
Wantuil sentiu que sua saúde declinava. Supôs mesmo que não demoraria muito
tempo na Terra. Redigiu suas últimas vontades, dentre as quais destacamos o
seguinte trecho, que diz bem da sua humildade:
"
... que todos fiquem sabendo que eu mesmo reconheço ter feito pouco em
beneficio da
coletividade, mas também reconheço que dei tudo quanto me foi permitido pelas
minhas fracas forças físicas, espirituais e intelectuais."
Quanto nos sentimos nulos diante do
homem dinâmico e empreendedor que foi Wantuil de Freitas!
Sentimo-nos um inseto perdido na
planície, em face de um conquistador de gigantesco alcantil, a contatar mais de
perto com a saudação do Sol ardente e dominador! Sua passagem pela Federação
galvanizou o Espiritismo brasileiro, tornando o Livro Espírita não uma aventura
tímida, mas um cometimento audacioso e altruístico.
Instrumento
da caridade espiritual
Na tribuna da FEB, no grande salão
do edifício da Avenida Passos, às terças-feiras, durante longos anos, dissertou
Wantuil sobre o Evangelho. Certa noite, seus amigos, bem como todos os que frequentavam
assiduamente a Casa, estranharam que ele se houvesse afastado do ponto em
estudo, coisa que jamais fizera, porquanto era muito escrupuloso e rigoroso na
observância das regras estabelecidas. Terminada a reunião, os amigos souberam
que ele, médium intuitivo que era, fora obrigado a falar de assunto
completamente diverso daquele sobre que vinha discorrendo. Logo após, compareceu
à Secretaria um casal que, após meses de desespero, comparecera pela primeira
vez àquela
reunião. Viera dizer-lhe que ia sair feliz da Federação, consolado, resignado e
cheio de esperança, em virtude daquilo que Wantuil dissera, como se estivesse
falando especialmente para esse casal de ouvintes inesperados.
Cedo
ainda para repousar...
Doutra feita, em 1956, quis ele
deixar a direção do "Grupo Ismael", sentindo-se cansado, e também
porque julgou necessário ir preparando novos trabalhadores, a fim de que a FEB
não fosse colhida de surpresa, no caso da sua súbita desencarnação. Os Guias, porém,
e não somente os Guias, mas, também, antigos diretores da Instituição, já
desencarnados, vieram apelar para que ele não passasse aquele posto a ninguém, pois
a sua presença era ainda imprescindível.
A. Wantuil de
Freitas - Um hino ao trabalho - Parte 3
e final
por Indalício
Mendes
Reformador (FEB)
Maio 1976
DE -
Miragem que se tornou realidade
Encontrava-se a Federação a braços
com dificuldades enormes, inclusive deficiência de recursos financeiros,
retardando a reedição de livros doutrinários, quase todos esgotados, e a
publicação de novas obras, sem que se encontrasse meio de solucionar o impasse.
Os livros e o "Reformador"
eram, então, compostos e impressos também em oficinas de terceiros, por vezes
apresentados com falhas gráficas, atrasos e custos excessivos. Os problemas
continuaram, pois a oficina do "Reformador", montada em 1939, e que
se não confunde
com aquela que fora construída na própria residência de Elias da Silva, não
correspondia às necessidades impostas pela crescente procura de livros.
Wantuil levou dias a meditar sobre o
assunto. Aquilo não podia continuar assim, dizia. Era preciso achar maneira
positiva de vencer os obstáculos, mesmo à custa de ingentes sacrifícios. Pensou
maduramente, e levou à Diretoria o gigantesco plano de criação do Departamento
Editorial (DE), em local em que as leis municipais lhe permitissem todo o
desenvolvimento que se fizesse necessário. E, assim, foi o DE criado em São
Cristóvão, a 1.800 metros da Avenida Presidente Vargas, apesar de o
considerarem "louco".
Para a aprovação de seu plano,
porém, Wantuil teve de lutar contra as trevas. De nada valeram as provas de
capacidade, dinamismo, coerência, abnegação, seriedade e firmeza que dera até
então. Passou a defrontar má vontade e pessimismo, restrições e até ataques
pessoais, pois chegou a ser caluniado. Alguns elementos da Diretoria
opuseram-lhe fortes objeções: "Donde tirar os recursos monetários, se a
Federação não possuía em Caixa senão modesta e insignificante quantia destinada
a pagamento de suas despesas mensais? Como se entregar a empreendimento de
tamanho vulto se havia dívidas a saldar em prazo fatal?"
Wantuil deveria demonstrar, mais uma
vez, que não era apenas um grande e inspirado idealizador, um sonhador, como
supunham, mas também um destemeroso e eficiente realizador. Seu espírito
prático evidenciava-se a todo momento, deixando aparecer o homem metódico,
pertinaz e objetivo que era. Fez alto donativo à Federação e, pelo
"Reformador", apelou para que auxiliassem a FEB. A quantia conseguida
em todo o Brasil, no entanto, não fora além de um décimo da imprescindível para
dar o passo inicial do plano traçado. Não tardou, porém, que encontrasse uma
solução salvadora para superar essa nova dificuldade. Foi para casa e reuniu a
dedicada mulher e os filhos esclarecidos, expôs-lhes a gravíssima conjuntura em
que se encontrava a Casa de Ismael e a necessidade de uma solução que a
libertasse da dependência prejudicial à causa do Espiritismo, pela escassez de
meios para aumentar a produção de livros doutrinários e evangélicos.
Ficou radiante, quando todos,
espontaneamente, aprovaram a ideia que apresentara, revelando admirável
compreensão. Imediatamente, pôs à disposição da Federação Espírita Brasileira a
importância que fosse precisa, sem documento algum e sem juros nem prazo, para
a execução do plano estabelecido, importância para ser paga, se fosse possível, pela devedora.
Wantuil conseguiu, ainda, a ajuda financeira de Frederico Figner e Manoel Jorge
Gaio. Ergueu-se a obra, ele à frente, alheio às cassandras agourentas, e,
dentro de poucos anos, a Casa de Ismael levantava os primeiros marcos do
Departamento Editorial. Nada mais devia, e estava com as suas edições em dia.
Allan Kardec e outros autores
espíritas foram lançados em inúmeros países da Europa e de todos os demais
continentes, através da língua internacional - o Esperanto. Longo seria este
resumo - que então deixaria de sê-lo - se fôssemos citar todos os sacrifícios e
todas as preocupações que ele teve de arrostar, além dos murmúrios e dos
cochichos dos descontentes, daqueles que pouco ou nada fazem, mas são exigentes
e severos nas críticas, mesmo injustificadas. Não tinha horas suficientes para
o trabalho que reclamava sua atenção. Época houve em que seu estado de saúde se
tornara tão precário, devido a esgotamento físico e mental, que, sobre uns
tijolos, os empregados colocaram algumas tábuas, dessas que acompanham os
fardos de papel, para que pudesse o benemérito Presidente repousar um pouco. E
quantas vezes Wantuil foi conduzido para aquela dura e improvisada cama, quase
em estado de síncope, por excesso de trabalho...
O bem sempre triunfa
Ainda nos lembramos de certo período
de agitação. Havia grupos que permanentemente o hostilizavam e, assim, iam para
as reuniões pessoas industriadas para desfechar-lhe golpes, recusando
sistematicamente suas propostas e sugestões, contrariando-o em todos os pontos,
por qualquer motivo, e buscando influenciar a votação, quando chegada a hora de
uma decisão definitiva.
Numa tarde, elementos de um dos
grupos romperam fogo contra ele, em plena reunião. Outros, estimulados,
reforçaram o ataque a uma proposição que deveria ser aprovada. Estabeleceu-se
um princípio de tumulto. Sereno, Wantuil restabeleceu a ordem, pedindo aos
presentes que defendessem como quisessem seus pontos de vista, sem, contudo, se
esquecerem dos princípios da Doutrina. Os ânimos serenaram. Em meio ao impasse
surgido, foi proposta a votação, que era o que desejavam os que lhe estavam
fazendo oposição, pois o momento parecia favorável aos desígnios dos
turbulentos.
Nós, confessamo-lo, estávamos
desencantados. Wantuil, os cotovelos sobre a mesa e o rosto oculto pelas mãos
em concha, parecia vencido. Mas, estava em prece. Iniciada a votação, tivemos a
impressão de que os opositores venceriam por larga margem de votos, porque
cabalaram, buscando convencer, sugestionar, pressionar outros representantes.
Os votos começaram a pingar na urna, Wantuil continuava calado, muito sério,
compenetrado, orando. Termina a votação. Vencera a Federação Espírita
Brasileira, com um único voto contra! -
Como pudera ser isso? É que, tal
como disse Hamlet, "há mais coisas
no céu e na terra, Horácio, do que julga a vossa filosofia" (There are
more things in heaven and earth, Horatio, / Than are dreamt of in your
philosophy).
Dois
amigos novamente juntos
Wantuil de Freitas foi grande amigo
de Guillon Ribeiro, cujo caráter puro enaltecia sempre, reconhecendo-lhe as
nobres virtudes e a sólida cultura, considerando-o mesmo seu "pai
espiritual". Essa veneração, que todos quantos conheceram Guillon Ribeiro
sabem ser justificada, era correspondida, porquanto este também muito o
admirava, quer pela operosidade e escrúpulo, como pela lealdade e firmeza. Isso
durou sempre.
Wantuil gozou da absoluta confiança
de Guillon, que, em seus últimos anos de permanência na Terra, nada publicava
sem ouvir a opinião do amigo dileto, pois lhe apreciava a franqueza e isenção
de ânimo. Entre eles havia grande diferença de idade: vinte anos.
Eram, possivelmente, Espíritos já irmanados desde pregressas existências,
reunidos na Casa de Ismael para servir à causa do Espiritismo. Como se
entenderam! Guillon Ribeiro parece haver pressentido estar Wantuil de Freitas
destinado a substituí-lo, porque ninguém se lhe revelava, mais do que este, com
tantas qualidades naturais para o árduo cargo de Presidente.
A convivência com Guillon Ribeiro
foi-lhe muitíssimo útil, pois lhe permitiu assimilar tudo quanto poderia ser
indispensável numa função, como essa, de alta responsabilidade, na Casa-Máter.
Hoje, ambos se acham novamente unidos na Espiritualidade, trabalhando com o
mesmo entusiasmo, a mesma alegria e a mesma eficiência pela causa
cristã-espírita, de que é expoente a Federação Espírita Brasileira, instituição
que, como dirigentes terrenos, tanto amaram e serviram, e que, agora, libertos
das restrições carnais, continuam a servir com o mesmo acendrado carinho.
A netinha
Arnete
Embora a aparência de homem frio,
desligado de certas emoções terrenas, Wantuil era um amoroso, no bom sentido da
palavra. Nunca foi piegas, mas foi terno, sem, no entanto, misturar ternura com
fraqueza. Sua discrição era, aliás, conhecida. Guardava no_ imo do peito as
emoções mais íntimas, evitando resvalar na vaidade ou no personalismo. Daí o
pensarem alguns ter sido ele indiferente aos sentimentos de afeto. Homem de
pensamento, que vibrava, emocionado, com a só leitura do Evangelho, não poderia
jamais ser alheio às emoções que valorizam o sentimento humano. Por isso, só
depois do seu retorno ao lar espiritual é que muita coisa curiosa a respeito da
dinâmica e proveitosa vida terrena vem sendo conhecida. Sua maneira de ser não
sugeria grandes rasgos de ternura a quem
o conhecesse superficialmente, mas, repetimos, não era um homem glacial. Hoje,
as qualidades que o tornaram tão útil emergem para comprovar exuberantemente
que foi autêntico servo do Cristo, com reservas de ternura como forças potenciais.
Em dezembro de 1962 escreveu o
soneto, até hoje inédito, que abaixo transcrevemos, dedicado à netinha Arnete,
então com 10 anos:
De nada valerá a vida
aqui no mundo,
Tomando novo corpo entre
os que eram teus,
Se contigo não vem um
desejo profundo
De muito amar o próximo
e sobretudo a Deus.
Efêmeras serão as
glórias desta vida,
Se apenas sociais, se
apenas cá da Terra.
A vitória real só será
conseguida
Se cumprimos a Lei que o
Sinai nos descerra.
Lutando contra o Mal, na
certa vencerás
A prova derradeira a que
fizeste jus,
Na conquista do Bem, na
conquista da Paz,
Sentindo mais suave a
dor de tua cruz.
E a vitória final, a
glória tê-Ia-ás,
Quando fores tão boa,
como te quer Jesus!
Teu Vovô Wantuil.
Analisem rigorosamente cada estrofe
deste belo soneto. Nele encontramos o encanto da lição doutrinária, que
resplende, soberba, da Regra Áurea, firmada por Jesus. É o amor à neta
espelhando reflexo do amor ao Cristo. É o amor ao Cristo fazendo viver a meiga
advertência evangélica, de que de nada valerá sua reencarnação se não houver
trazido consigo o amor a Deus e a vontade de observar a Lei que pode fazer
todos os homens felizes, porque sempre colhemos o que plantamos. É o senso
estético dos versos alcandorados nas grimpas celestiais do Evangelho, a
projetar a Luz do amor à humanidade, aura sublime do Cristo de Deus, através do
alerta ao Espírito que inicia nova trajetória terrena!
Como poderia Wantuil, sendo poeta
tão afetivo, possuir coração frio?
Homenagem
poética de um Espírito
Nesse mesmo ano de 1962, novas
manifestações do Alto ocorreram. No dia 17 de dezembro, o médium Porto Carreiro
Neto, de quem guardamos a mais terna lembrança, recebeu psicograficamente o
seguinte soneto de Damasceno de Aguiar, Espírito de suave estro, a. ele
dedicado e também nunca publicado:
Cobre
(Ao
irmão Wantuil)
Fui matéria de
verde-azul vestida,
No lodo, eu mesmo lama
repelente;
Mineiros me arrancaram
da jazida
Para o bem, para o mal -
que sabe a gente?
Fui bronze no canhão de
amor ausente,
Ceifando vidas, sem
plantar a vida...
Depois, no sino, quérulo
ou ridente,
Rezando no ar uma oração
sentida...
Afinal fui eu mesmo,
cobre vivo,
Expurguei-me das culpas,
redivivo,
Ligando terras na
Fraternidade!
E destarte marchando,
passo a passo,
Minhalma vibra no Divino
Espaço,
Vivendo alegre para a
Humanidade!
A margem do original, a mesma
anotação de punho próprio: "Nunca foi publicado, nem no
"Reformador". W."
Reconhecimento
público
Muito há ainda a se recolher a
respeito de Wantuil de Freitas. Até aqui mencionamos alguns elementos obtidos
aqui e ali, ou de uns pouquíssimos papéis por ele deixados. O de que se pode
ter plena certeza é que ele não foi como aquela personagem do poeta, que
"passou pela vida em branca nuvem". Ele, pelo contrário, deu muito de
si mesmo, mas, como tem acontecido com outros grandes vultos do Espiritismo
Cristão, não se preocupou com a "sua história". Esses homens
geralmente não deixam os elementos essenciais para uma biografia, mesmo
modesta. Pensam mais nos deveres assumidos com Jesus. O trabalho na Terra é
tarefa importante, sem dúvida, porque determinada pelo Alto, no exercício da
qual somos, por vezes, meros executores de encargos antes recebidos.
Para não se supor estejamos nós
exaltando, incensando a personalidade desse companheiro valoroso, reproduzimos,
a seguir, um trecho da mensagem de Bezerra de Menezes, captada
mediunicamente pela médium Maria Cecília
Paiva, na reunião pública de 12 de abril de 1974, na sede da FEB, data
imediata à da desencarnação de Antônio Wantuil de Freitas, e publicada nesta
revista, na íntegra, na edição de abril do ano citado, sob o título "A
chegada do justo":
"Não estamos fazendo aqui os
elogios desnecessários, mas escrevendo uma página "post mortem" para
os que ficam na labuta do mundo. O exemplo de trabalho e perseverança,
paciência e tolerância, humildade e amor, de nosso confrade, é digno de ser
imitado por quantos seguem as pegadas do Mestre e desejam transformar os
corações em focos de luz para o terceiro milênio. Saudamos com intenso júbilo a
chegada de nosso irmão no plano mais alto e desejamos àqueles que o substituem
nas lides terrestres a mesma perseverança e fé nos trabalhos de Ismael."
Embora ainda seja cedo para se lhe
fazer completa justiça, principalmente da parte daqueles que dele possam ter
tido distorcida imagem, fato é que sua atuação ultrapassou nossas fronteiras, e
seu nome foi mencionado com respeitosas referências. Como comprovação do que
dizemos, basta a homenagem que lhe foi prestada pelos espíritas
norte-americanos, em 1948, por ocasião do centenário do famoso episódio de
Hydesville, vilarejo do Estado de Nova York, situado a cerca de vinte milhas da
então nascente cidade de
Rochester. Esse notável fato histórico foi devido à mediunidade de duas jovens
criaturinhas - Margaret, de 14 anos, e Kate, de 11 - de uma honesta família de
fazendeiros, a família Fox.
Pode dizer-se que o Espiritismo (ou
o Espiritualismo Moderno, como, desde então, passaram os povos de língua
inglesa a denominar o acontecimento da descoberta do relacionamento do mundo
físico com o mundo espiritual) nasceu aí, desde que, a 31 de março de 1848,
foram percebidos os ruídos de arranhadura, provocados por um Espírito, aflito
por se comunicar com alguém da Terra que pudesse compreender a magnitude das
revelações que desejava fazer. Chamava-se, conforme disse, Charles B. Rosma.
Vamos passar a palavra à senhora
Fox, mãe de Margaret e Kate, reproduzindo trechos do depoimento por ela
prestado naquela época, colhido em "História do Espiritismo", de Sir
Arthur Conan Doyle:
"Na noite da primeira perturbação, todos nos levantamos, acendemos uma
vela e procuramos pela casa inteira, enquanto o barulho continuava e era ouvido
quase que no mesmo lugar. Conquanto não muito alto, produzia um certo movimento
nas camas e cadeiras, a ponto de notarmos quando deitadas. (...) Na noite de
sexta-feira, 31 de março de 1848, resolvemos ir para a cama um pouco mais cedo
e não nos deixamos perturbar pelos barulhos: íamos ter uma noite de repouso.
Meu marido aqui estava em todas as ocasiões, ouviu os ruídos e ajudou a
pesquisa. (...)
Minha filha menor, Kate, disse,
batendo palmas: "Sr. Pé Rachado,
faça o que eu faço." Imediatamente seguiu-se o som, com o mesmo número
de palmas. Quando ela parou, o som logo parou. Então Margaret disse, brincando:
"Agora faça exatamente como eu. Conte um, dois, três, quatro" e bateu
palmas. Então os ruídos se produziram como antes.
Ela teve medo de repetir o ensaio. Então Kate disse, na sua simplicidade
infantil: "Oh, mamãe! eu já sei o
que é. Amanhã é primeiro de abril e alguém quer nos pregar uma mentira."
Então
pensei em fazer um teste que ninguém seria capaz de responder. Pedi que fossem
indicadas as idades de meus filhos sucessivamente. lnstantaneamente foi dada a
exata idade de cada um, fazendo uma pausa de um para o outro, a fim de os
separar até o sétimo, depois do que se fez uma pausa maior e três batidas mais
fortes foram dadas, correspondendo à idade do menor, que havia morrido.
Perguntei então: "é um ser
humano que me responde tão corretamente?" Não houve resposta. Perguntei:
"É um Espírito?" Se for dê duas batidas." Duas
batidas foram ouvidas assim que fiz o pedido. Então eu disse: "Se foi um Espírito assassinado dê duas
batidas." Estas foram dadas instantaneamente, produzindo um tremor na
casa. Perguntei: "Foi assassinado
nesta casa?" A resposta foi como a precedente. "A pessoa que o assassinou ainda vive?"
Resposta idêntica, por duas batidas. Pelo mesmo processo verifiquei que fora um
homem que o assassinara nesta casa e os seus despojos enterrados na adega; que
a sua família era constituída de esposa e cinco filhos, dois rapazes e três
meninas, todos vivos ao tempo de sua morte, mas que depois a esposa morrera.
Então perguntei: "Continuará a bater
se chamar os vizinhos para que também escutem?" A resposta afirmativa
foi alta.
Meu marido foi chamar Mrs. Redfield,
nossa vizinha mais próxima. (...) Então Mrs. Redfield chamou Mr. Duesler e a
esposa e várias outras pessoas. (...) Mr. Duesler fez muitas perguntas e obteve
as respostas. ( ... ) Pelo mesmo processo
das batidas Mr. Duesler verificou que ele tinha sido assassinado no quarto de
leste, há cinco anos e que o assassínio fora cometido à meia-noite de uma terça-feira,
por Mr....; que fora morto com um golpe de faca de açougueiro na garganta; que
o corpo tinha sido levado para a adega: que só na noite seguinte é que havia
sido enterrado; tinha passado pela despensa, descido a escada e enterrado a dez pés
abaixo do solo. Também foi constatado que o móvel fora o dinheiro.
"Qual a quantia: cem
dólares?" Nenhuma resposta. "Duzentos? Trezentos?" etc. Quando
mencionou quinhentos dólares as batidas confirmaram. (...) Na noite de sábado,1º
de abril, começaram a cavar na adega; cavaram até dar n’água; então pararam. Os
sons não foram ouvidos nem na tarde nem na noite -de domingo. (...) Nada mais
ouvi desde então até ontem. Antes de meio-dia, ontem, várias perguntas foram
respondidas da maneira usual. Hoje ouvi os sons várias vezes.
Não acredito em casas assombradas
nem em aparições sobrenaturais. Lamento que tenha havido tanta curiosidade
neste caso. Isto nos causou muitos aborrecimentos. (...) Garanto que o
depoimento acima me foi lido e que é a verdade; e que, se fosse necessário,
prestaria juramento de que é verdadeiro."
(a)
Margaret Fox."
Desculpem-me a extensão dos trechos
transcritos. Foi o mínimo possível para que aqueles que desconhecem o famoso
acontecimento pudessem dele ter uma idéia razoável. Pois bem, a Federação de
Templos e Sociedades Espíritas (Federation of Spiritual Churches and
Associations, Inc.) e a Comissão incumbida de celebrar o Centenário do
Espiritualismo Moderno (Espiritismo) - (World Centennial Celebration of Modern Spiritualism),
a primeira, por seu Presidente, Rev. V. R. Cummins, e a segunda, por seu
Secretário, Rev. HeIene Gesling, assinaram o Certificado de Serviço conferido a
A. Wantuil de Freitas, certificado esse que contém os seguintes dizeres:
Comemoração
Mundial do Centenário
1848 do
Moderno Espiritualismo 1948
Declaramos pelo
presente que a A. Wantuil de Freitas, Rio de Janeiro, Brasil, por haver
prestado valiosos serviços para o sucesso material e a glória espiritual da
Comemoração Mundial do Centenário do Espiritualismo Moderno, é concedido este
Certificado
de Serviço
como reconhecimento
oficial e gratidão por esse motivo.
E como testemunho e
aprovação disto é aposto o selo da Federação de Templos
e Sociedades Espíritas,
no primeiro dia de setembro do ano de mil novecentos
e quarenta e oito,
em Hydesville, no Condado de Wayne,
Estado de New York,
Estados Unidos da América.
Federação
de Templos e Sociedades Espíritas
Rev. V. R. Cummins,
Presidente
Comemoração Mundial do Centenário do Moderno Espiritualismo
Rev. Helene
Gesling, Secretária
Ao lado direito, parte inferior do
Certificado, um selo dourado, picotado em toda a sua circunferência, com os
seguintes dizeres em relevo: "Federação de Templos e Sociedades Espíritas,
Inc.", tendo, no centro, as iniciais dessa instituição: F S C.
Homenagem
póstuma
Deixamos propositadamente para
encerrar este trabalho o seguinte soneto, que bem exprime, em relação ao
querido amigo Wantuil, hoje liberto da prisão carnal, o sentimento de todos
nós. Que, já agora, possa ser ainda mais útil colaborador da obra de Jesus,
"nos altos páramos da
mansão celeste":
Regresso
Antônio Wantuil âe
Freitas foi-se embora:
Regressou redimido
à Pátria Bela e Santa...
Vendo-o subir assim
triunfante a gente canta,
Mas de tão distante
sabe-lo a gente chora.
Descansa o lidador
na deslumbrante aurora
Que as forças
retempera e os ânimos levanta;
Mas logo torna à
liça em. que tanto se encanta,
Pelo Reino do Bem
que o mundo ansioso exora.
O servo do Senhor
não cruza os braços nunca,
Enquanto o mal feraz
afiar a garra adunca,
Envenenando os
corações de angústia e dor.
Vamos de novo
juntos - Deus seja louvado!
Agora no presente,
como no passado,
Na porfia divina da
extensão do Amor!
Hernani T. Sant’Anna
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