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quarta-feira, 23 de julho de 2014

A Seiva do Cristianismo


A Seiva do Cristianismo – Parte 01
por José Amigó y Pellicer
Reformador (FEB) Fevereiro 1955

            A República Romana, ferida de morte sob o domínio de Júlio César, o vencedor de Pompeu, acabava de sucumbir afogada nos vigorosos braços de Augusto, o vencedor dos republicanos Bruto e Cássio e dos triúnviros Lépido e Marco Antônio.

            A nação soberana, que havia jungido ao carro de seus triunfos e imposto o seu jugo a todos os povos da Terra, prostrava-se a seu turno, como uma escrava humilde, aos pés de um mancebo, submisso, na aparência, às mais leves insinuações do Senado.

            Uma mudança radical se operava na organização política do grande povo, e sobre as velhas instituições de uma república tirânica e invasora se erigia um império robusto e varonil desde os seus primeiros dias. Júlio César com a sua espada tinha feito de todo o antigo continente uma só província, cuja metrópole era Roma; e Augusto, com a sua moderação e gênio organizador, pacificara os países conquistados, inaugurando neles um período de bem-estar e prosperidade que os seus sucessores não souberam conservar.

            Essa mudança de instituições políticas, porém, se bem que essencial na forma, não alterava no fundo o modo de ser daqueles povos. Haviam levantado um edifício novo sobre alicerces deteriorados, Era um enxerto jovem e pujante em um trono vetusto e carcomido.

            O mundo precisava de alguma coisa mais que mera transformação na organização dos poderes públicos, porque o mal que o minava e corroía estava antes no sangue que na superfície, nas entranhas daquela geração corrupta e depravada.

            Em vão o jovem Império apanhará no lodo a autoridade prostituída; em vão fundirá todas as ambições em uma só ambição; todos os poderes em um só poder, todas as vontades em uma só vontade, todas as tiranias em uma só tirania; em vão cerceará os direitos e foros populares e as cabeças turbulentas; e em vão também levará aos mais remotos climas suas aguerridas legiões, para que o ruído das armas faça esquecer a perda da liberdade, e a fama apregoe aos quatro ventos a glória da orgulhosa Roma; tudo em vão, porque a grande família humana tinha o coração gangrenado e o Império continuava as tradições e os vícios sociais que vinham de longe minando os sentimentos, os hábitos e as crenças.

            A civilização romana, imperfeita desde o seu nascimento e princípio, e corruptora depois, ao passo que alargava as suas fronteiras conquistando cada dia novos países, precipitava com a lepra de seus vícios a decadência da antiga sociedade.

            Era uma civilização ruidosa pelo fragor dos combates, brilhante pela eloquência de seus oradores e o fausto dos cidadãos, dominadora pelo direito do mais forte, e sensual pelo epicurismo que encontrou as portas abertas, graças ao politeísmo brutal. A imoralidade e a dissolução reinavam no Olimpo entre os deuses, não menos que nas províncias romanas, entre os senhores, os libertos e os escravos, Cada apetite tinha um altar, cada paixão um templo; e se um resto de pudor levantava altares a uma que outra deidade protetora das virtudes, a corrupção geral os profanava, ou eles permaneciam esquecidos e solitários.

            O fanatismo oferecia holocaustos humanos nos templos e as donzelas e matronas se divertiam nos circos vendo a arena avermelhada com o sangue do gladiador, ou os restos ainda palpitantes de algum miserável escravo entregue e em bárbaro espetáculo à voracidade dos leões e ferocidade popular.

            E que princípio regenerador podia opor a antiga sociedade a essas coisas dissolventes, essas enfermidades morais que lhe enervavam as forças e lhe aceleravam a decomposição e morte? Havia em suas entranhas algum gérmen ainda latente, com a virtualidade necessária para estabelecer e vigorizar as aptidões morais daquelas gerações? Ardia em sua mente alguma ideia salvadora entre as tantas aberrações que a envileciam e perturbavam? Existia um povo virgem no meio da prostituição, crente ao meio do ceticismo e do fanatismo, virtuoso no centro da relaxação universal dos costumes, forte e robusto no seio de uma sociedade impotente e decrépita, povo donde pudesse sair o princípio de uma nova era de luz, de prosperidade e de glória?

            Lá na Ásia, berço da humanidade histórica, na parte ocidental, na Palestina, vivia um povo que, não obstante estar submetido ao jugo dos Césares, se regia e governava por suas próprias leis, tendo sabido preservar seus hábitos e crenças da influência invasora que a capital do mundo exercia sobre todas as nações, até onde alcançava o seu poder. Aquele povo era o judeu, com seus costumes, suas tradições, sua teologia, seu templo, seu Deus, em uma palavra, com a sua civilização de quinze séculos, refratária completamente à civilização pagã que ameaçava absorvê-la. Provado na prosperidade e na desgraça triunfante hoje de seus inimigos e amanhã subjugado por estes; tiranizado pelos Egípcios, humilhado pelos medianistas e filisteus, levado de um para outro ponto em servidão, oprimido pelos assírios, babilônios, caldeus, persas e gregos, havia demonstrado ao mundo que, se podia ser vencido e encadeado, possuía inquebrantável força de caráter, em virtude da qual via decorrerem os séculos de servidão, conservando suas tradições e esperanças, sem decompor-se com os do desterro nem jamais confundir-se com os seus dominadores.

            Seria, pois, a civilização hebreia a chamada a triunfar das nações; o rito moisaico, a seiva regeneradora das sociedades, e o povo judeu o povo típico da Terra para a renovação moral dos outros? Certamente, não. Ainda que baseada na unidade de Deus e, por isso, superior às práticas politeístas dos outros povos, a civilização hebraica era, como a romana, a civilização do orgulho, do fausto, da conquista, do ódio, da servidão e da volúpia. Jeová é o Júpiter tonante dos pagãos, e o Deus dos exércitos de Israel o Marte da teogonia grega. Os holocaustos humanos aplacavam as iras do Deus da casa de Judá, como detinham o braço das divindades do Olimpo.

            O povo judeu, na longa e trabalhosa série de suas invasões e conquistas, havia tratado com ferocidade os vencidos, apagando da face terrena nações inteiras pelo ferro e pelo fogo, saciado seu furor contra velhos, mulheres e crianças, não menos que contra os soldados inimigos. Dirigido por seus Juízes, acaudilhado por seus Reis e impelido pelos seus Sacerdotes que lhe pregavam a matança e o extermínio como deveres iniludíveis e sagrados, julgava-se o instrumento das divinas vinganças e o eleito de Deus para subjugar e possuir a Terra.

            Só cessou de invadir e exterminar, quando ficou débil e seus inimigos poderosos.

            Quando chegou o Império, o povo judeu era senão o esqueleto de um gigante e a sorte das nações que entraram no período crítico de humilhação e decadência. Sua importância social e política era nula; e, se subsistia como nação, até certo ponto indedente, só o devia, antes que à virilidade de sua organização, à munificência ou ao orgulho dos Césares, que gostavam de ter reis como vassalos e nações como províncias.

            Só inspiravam lástima os descendentes de Jacó,  cujo poderio estava reduzido a vergonhosa impotência. Nem suas leis nem suas crenças transpunham os estreitos limites da Judeia.  Povo saído do nada, volve aceleradamente ao nada depois de esgotada sua fecunda atividade e cumprida sua missão providencial.

            Não, não é também a civilização hebreia a que podia dar melhor direção às correntes humanas, que vertiginosas se precipitavam nos abismos da idolatria, do ódio, da hipocrisia e da vaidade.

            O povo judeu era, como o romano, um povo flutuante, aparentemente rígido observador de suas tradições religiosas e na realidade falto de fé e apegado à sensualidade e ao egoísmo. Belicoso nos tempos de pujança, mas, quando não podia disputar aos romanos suas conquistas esgotava suas próprias forças em querelas estéreis de caráter religioso acerca da interpretação das Escrituras, promovendo cismas e seitas que cada dia lhe iam aumentando a debilidade interna.

            Trabalhado pelo farisaísmo, cujos numerosos prosélitos faziam consistir, como os modernos ultramontanos, toda a perfeição espiritual em vãs exterioridades, ao mesmo tempo em que se acreditava o escolhido entre os povos, empregava a religião como capa de suas abominações e meio de manter sua influência pessoal.

            Como poderia tal povo servir de ponto de partida à regeneração do mundo, estando exausto de todo gérmen de virilidade e virtude?

            Não esperemos também que venha de outras civilizações e de mais longínquos confins o primeiro impulso regenerador e salvador.

            A África, em sua vasta extensão não sujeita à espada do Império, agita-se na obscuridade da barbaria; e se uma outra centelha de civilização brilha na Ásia, perde-se sob a espessa bruma levantada pelo fanatismo e pela ignorância.

            Em toda parte o fragor das armas e o sacrifício do homem pelo homem. A América dormirá ainda um sono de quinze séculos, até que nasça o gênio chamado a arrancá-la aos segredos do oceano. Estará, pois, a Humanidade condenada a ser, por sua corrupção, riscada da superfície terrena?

            Os povos desaparecem, as sociedades fundam-se, as civilizações têm o seu orto e o seu ocaso; mas a Humanidade subsiste perpetuamente, entregue à lei das transformações, que são o crisol de sua depuração e de seus necessários desenvolvimentos. Das ruínas de um povo, dos resíduos de uma sociedade, das cinzas de uma civilização, surgem uma nova civilização, uma nova sociedade ou um novo povo, com toda a virtualidade necessária para o cumprimento de mais elevados fins.

            O gênero humano, no primeiro período de sua existência terrenal, teve de arrastar como a larva uma vida trabalhosa, de instinto grosseiro e material, para converter-se, chegado o segundo período, em inexperta crisálida, afogado por suas paixões e encerrado no cárcere de sua ignorância e na miserável servidão de seus vícios. Mas a obscura crisálida se converterá por sua vez em ligeira mariposa, que, emancipada de seu asfixiante casulo, elevará seu voo às regiões da liberdade e da luz, ganhando em formosura e felicidade em cada uma de suas fases.

            A Humanidade, no momento histórico do nascimento do Império, havia chegado ao último período da segunda de suas essenciais metamorfoses. Presa no grosseiro casulo de suas leviandades, filhas de sua ignorância e orgulho, ela precisa de ar e luz, ar para, respirando, renovar as suas forças, e luz para poder conhecer seus funestos extravios. Ainda os homens não compreenderam que pelo caminho das invasões se chega à escravidão, e se esforçam para traiçoeiramente usurpar uns aos outros os seus mais sagrados direitos. Ainda não compreendem que a comunidade de origem fá-los todos iguais por natureza; e lutam para se destruir raça contra raça, seita contra seita, povo contra povo, como se o destino do homem neste mundo fosse devorar ou ser devorado, e a Humanidade uma horrível confusão de vítimas e algozes. Ainda não pressentiram as doçuras do amor, nem adivinharam que todos, sem exceção de um só, são irmãos; e o egoísmo e o prazer, são os reguladores das ações individuais e dos movimentos coletivos. Para adivinhar os puros gozos da fraternidade universal, para conhecer a grande justiça da igualdade de direitos e para aprender que a liberdade é a saúde do corpo e a vida do espírito, falta um raio de sol que, com a pureza de seu brilho e a suavidade de seu calor, desperte os entendimentos e fecunde os corações. Rompa as trevas o benéfico sol da verdade e do sentimento, e a ninfa escura abrirá suas asas, ditosamente transformada em alegre e ativa mariposa. 

            Adoradores de divindades obscenas e brutais, lançai no fogo sagrado de seus altares os últimos grãos do vosso nauseabundo incenso; discípulos de Epicuro, apurai em lúbricas orgias as fezes da moral do prazer; fariseus hipócritas, envolvei-vos bem no manto de vossas exterioridades para seduzir o povo e ainda explorar por mais um dia suas crenças religiosas; escribas, doutores e levitas, dai a última interpretação ao sentido da Escritura, ainda quando se levante uma seita mais, um novo motivo de discórdia e divisão no seio da sociedade judaica; apressai-vos todos em corromper e perturbar, porque vai soar a hora em que a Humanidade há de sacudir o jugo de vossas fementidas práticas e corruptores ensinos.

            É preciso que a linhagem humana se salve, e se salvará; porque o que é necessário irrevogavelmente acontecerá.

            A Humanidade é filha de Deus, e Deus não há de permitir, dentro do seu amor onipotente, a perdição de sua filha. Do Céu baixará a verdade ao entendimento humano e o orvalho do amor suavizará a dureza do sentimento.

            Querendo Augusto conhecer o número dos homens submetidos à sua autoridade, no Império e nas províncias tributárias, mandou proceder a uma recenseamento geral.

            E em cumprimento do imperial edito um homem e uma mulher, aparentemente de condição modesta, foram de Nazaré da Galileia inscrever seu nome na cidade de Belém; antes, porém, de chegarem ao termo de sua viagem, sobrevieram à mulher as dores do parto e em humilde palhoça, sem mais auxílio que o do seu esposo e sem outro amparo que o de Deus, deu à luz um formosíssimo menino.

            Uma estrela, precursora da regeneração da linhagem humana, brilhou naquele instante para o lado do Oriente. Acabava de nascer o predestinado dos tempos, o redentor dos homens: Jesus-Cristo.



A Seiva do Cristianismo – Parte 02
por José Amigó y Pellicer
Reformador (FEB) Março 1955


            Trinta anos permaneceu Jesus oculto antes de dar princípio à santa prédica de uma doutrina nova, que havia de derrubar os altares dos antigos deuses, para substitui-los por outro altar, não de mármores e preciosas madeiras, mas de puríssimo sentimento espiritual.

            Filho de pais humildes, de pobres operários que precisavam do fruto de seu trabalho manual para obterem honrada subsistência, ele compartia com eles os suores de seu ofício obscuro, enquanto amadurecia o vastíssimo plano de mudar radicalmente a face do mundo e salvar a Humanidade da dissolução e da ignorância que pesavam sobre ela como uma dupla lousa esmagadora. Naquele esquecido recanto de Nazaré germinava a semente da regeneração humana, e dali havia de sair a faísca destinada a produzir purificador incêndio universal entre todos os povos da Terra.

            A luz das lâmpadas sagradas que ardiam junto as aras das divindades helênicas, que eram as divindades do colossal império dos Césares romanos, começava a vacilar e empalidecer ante o brilho cada dia mais intenso de outra luz mais poderosa, a do entendimento, a da razão humana que se emancipava aos poucos das brumas espessas do fanatismo e do erro. E, enquanto os ídolos eram em seus gastos pedestais abalados pelo choque da filosofia invasora e o farisaísmo judaico pugnava inutilmente por sustentar-se e prevalecer sobre as ruínas da tradição moisaica, todas as crenças soçobravam nas turbulentas ondas das paixões desordenadas, do utilitarismo, da dissolução e dos vícios da época.

            Fundia-se a civilização antiga, desmoronava a velha sociedade sem estrépito e sem glória, como um edifício arruinado e escorado que cai lentamente, roído pela ação demolidora do século.

            Ermas as consciências, exaustos os corações de virtudes e de fé, a religião não era mais que um conjunto aparatoso de formas artificiais, com que se buscava dissimular a falta pouco menos que absoluta de moral.

            Já cinco séculos antes havia notado esse vazio e entrevisto os meios de cumulá-lo em bem da Humanidade o ilustre Sócrates, filósofo grego de quem receberam essa ideia todas as escolas filosóficas e todos os filósofos moralistas. Ele e seu discípulo Platão, profundos conhecedores dos males do seu tempo, vendo que a religião era, em vez de um tributo de adoração da criatura ao Criador, uma simples máscara hipócrita com que se pretendia encobrir a corrupção e o sensualismo, quiseram espiritualizar as crenças, fazendo da alma humana o princípio e o objeto de toda a filosofia e da Divindade o termo de toda a aspiração humana.

            O terreno, porém, não estava preparado para receber a semente salvadora , A Humanidade tinha ainda de rebolcar-se por largo tempo na lama de suas leviandades, na imundície de seu grosseiros deleites, a fim de que se fizesse mais sensível a necessidade da regeneração, e os povos abrissem os ouvidos à verdade e os olhos à luz. Sócrates foi condenado a beber cicuta, em desagravo das absurdas crenças dominantes, e Platão em vão esperou a aurora do novo dia.  

            À chegada de Jesus-Cristo o mundo não estava em disposição de dar frutos de verdade mas sim de receber a semente. Pelo fato de todas as crenças vacilarem e a confusão religiosa agitar os ânimos inquietos, estes haviam de voltar-se facilmente para o ponto em que se visse nascer um raio de sol, que iluminasse os desertos da consciência.

            A nova ideia ia tropeçar em obstáculos aparentemente insuperáveis, em sua passagem iam suscitar-se tempestades de perseguição e de ira; ia ver-se um dia ou outro obrigada a dar batalhas contra as tradições, contra os costumes, contra os interesses seculares criados à sombra dos antigos princípios; mas como sobre aqueles interesses, costumes e tradições está a necessidade de conservação, e todas as sociedades a sentem, e por ela, providencial ou instintivamente, sacrificam qualquer outra necessidade, afinal havia de chegar o dia em que a nossa ideia, triunfante de todos os seus inimigos, se apoderasse dos entendimentos mais refratários às inovações e ao progresso.

            Não se ocultava à claríssima inteligência de Jesus, descido à Terra em cumprimento das profecias para remir com sua doutrina à Humanidade extraviada, o estado moral das sociedades de seu tempo.

            Do seu obscuro retiro de Nazaré ele seguia o movimento do mundo, e, cheio de amor por seus irmãos, chorava em silêncio as veleidades dos homens; contudo ele não quis aventurar por precipitação ou leviandade o resultado da grande obra, cuja pedra fundamental tinha de assentar com os seus ensinos. Não menos de trinta anos gastou em meditar e preparar-se para a luta, como se quisesse mostrar que tinha necessidade de todas as forças que a idade viril presta ao espírito e ao corpo.

            Soou afinal a hora assinalada nos supremos conselhos para a reabilitação da linhagem dos homens. Sai Jesus de Nazaré, da obscuridade, do silêncio, da meditação, do sossego e dos afetos da lar, para se entregar totalmente ao ministério da palavra, ao ensino público da redentora doutrina, ao desenvolvimento prático do divino plano que há de transformar o mundo, à agitação e perigos que traz consigo a luta franca da verdade contra o erro, ao sacrifício de si próprio nas aras do amor aos outros e da salvação de todos. Cruzará a cena dá vida pública como um meteoro fugaz, desapercebido para a quase totalidade dos homens de seu tempo; alguns dos do povo, poucos em número, adivinhando-lhe a missão, acreditaram-no Profeta e lhe chamaram Messias; os sábios do século e os cépticos o incluíram no número dos loucos e visionários, apenas se dignando conceder-lhe um olhar de humilhante compaixão; os sacerdotes o apelidaram de instrumento de Belzebu, e todos os condenados pela severidade de suas doutrinas o tacharam de impostor, mago, corruptor dos costumes e das antigas crenças e agente sedicioso dos inimigos de César. Não lograra reunir em redor de si, para divulgar a Boa-Nova, mais que a dúzia de filhos do povo, pobres e humildes quanto ele, sem nome, sem instrução, sem influência, e ainda desses mesmos doze o maior e mais crente o negará três vezes, outro o venderá aos sacerdotes, seus mortais inimigos, e todos se dispersarão ao sopro da perseguição, deixando-o abandonado no dia da tormenta. Mas não importa. Nada disso escapa à previsão de Jesus; ele sabe quão ineficazes iam ser de presente a sua abnegação e sacrifícios; que nem mesmo os seus o conhecerão e receberão; que seus  ensinos irão concitar as iras da hipocrisia e do orgulho; que o veleidoso povo há de sauda-lo hoje como a um salvador, para levá-lo amanhã à ignomínia da cruz; mas também não ignora que um é o tempo da semeadura e outro o da colheita, e que para fazer copiosamente fecunda a semente da nova fé era preciso regá-la com sangue.

            Eis aí porque desde a sua saída de Nazaré nem uma só vez um sorriso lhe assomou aos lábios. Seu semblante e suas palavras revelam de contínuo a tristeza que lhe enche o coração. A nuvem de seu rosto só se dissipa, quando seu espírito venturosamente arroubado se desprende da Terra para voar ao Céu, donde, dominando os tempos e apressando o porvir, conta as gerações e os séculos e vê a árvore da vida estendendo a sua grata e salvadora sombra sobre todos os povos, confundidos em um só, pela ado    ração e o amor.

            Nessas horas de inefável e divino êxtase, de doce e amoroso delíquio, em que o sentimento o domina todo, sua alma transpõe rapidamente as distâncias que o separam daquela feliz idade, o remoto de seus presentes desejos, em que não mais somente se adore a Deus na montanha ou em Jerusalém, mas com a verdadeira adoração do espírito, em que reinem entre os homens a fraternidade e a virtude. O que são naqueles momentos para Jesus as amarguras de sua vida? Gloriosas recordações de uma abnegação heroica, harmoniosos ecos de uma existência toda consagrada ao amor, doces memórias de um passado de redenção e sacrifício, plácidos aromas de uma flor, em cujo cálice bebeu a Humanidade delicioso néctar da vida. Mas se durante esses parênteses de arroubamento e profecia se debuxa seu rosto e brilha em seus olhos a felicidade do triunfo, de novo as lágrimas empanam o brilho de seus olhos e a tristeza lhe anuvia a divina face, quando, voltando das esperanças e intuições do porvir à desconsoladora realidade que o rodeia, prevê as dificuldades com que sua doutrina vai lutar, e os muitos séculos e gerações se hão de suceder, antes que chegue a hora da sega e a Humanidade se aposse por seus merecimentos da venturosa terra prometida.

            De modo que a missão reformadora, a que Jesus consagrou todas as forças vivas de seu espírito nos três anos de ensino público do Evangelho, e que foram os últimos de sua vida, procede de um ato de incomparável abnegação, consumado no segredo de sua vontade, no santuário de sua alma, na arca selada de suas concepções celestiais e na puríssima fonte de seus amorosos sentimentos. Porque sabeis que toda a energia de suas palavras e de seus desejos ia quebrar-se de encontro ao ridículo, à hipocrisia, ao cepticismo e à ignorância; que ia ser o alvo da mofa e das iras dos mesmos a quem se propunha regenerar e salvar, e apesar disso arrostar com tudo, ridículo, mofas, perseguição e martírio, para que em tempos remotíssimos frutificasse a semente evangélica e a Humanidade saísse do Egito de sua obcecação e misérias; é abnegação, e tão grande que só pode conceber-se em quem, como Jesus, se esquecia completamente de si para só se lembrar da felicidade dos outros.

            A abnegação é o primeiro princípio da semente cristã; nos parágrafos sucessivos vê-la-emos alimentar-se do amor e criar fundas raízes pela virtude do sacrifício, três palavras que, como os três atributos de Deus, se interpenetram e se explicam, constituindo juntos e em separado a seiva do Cristianismo primitivo, a única que possui a virtualidade necessária para que a árvore eleve majestosamente sua copa sobre o firmamento azulado e guarde, sob sua esplêndida ramagem, todos os povos terrenos.






A Seiva do Cristianismo – Parte 03
por José Amigó y Pellicer
Reformador (FEB) Abril  1955


            Em cumprimento das profecias, para preparar a abolição de uma prática repugnante da lei e predispor os ânimos à aceitação da moral evangélica, apareceu, antes de Jesus, João, filho de Zacarias, batizando na água e pregando o arrependimento ao povo. Tinha de ficar cancelada a lei antiga em todos os seus preceitos nascidos da grosseria e ignorância daqueles tempos, e João para isso aplainava os caminhos, apagando suavemente com a água do Jordão a mancha da circuncisão, que era, se o podemos dizer, o selo da igreja de Moisés.

            O próprio Jesus, fazendo-se batizar, autorizou a nova cerimônia, e desde aquele instante a circuncisão ficou abolida e reconhecido o batismo como o selo próprio da igreja que ia estabelecer-se sobre o alicerce dos ensinos do Cristo.

            Mas o batismo de água do Precursor não era mais que uma figura do batismo de redenção, resumo do Evangelho. "Eu, em verdade, batizo com água, dizia João; mas virá um outro que há de batizar com o Espírito Santo e com o fogo”, isto é, em virtudes e amor (Mateus, III, 11). João, com o batismo do corpo por meio da água, abolia vergonhosa prática; e Jesus, com o batismo espiritual, vinha substituir as exterioridades do culto moisaico pelo verdadeiro culto do coração, pela adoração íntima do espírito, alheia à toda vaidade e hipocrisia. Já era tempo; todos os cultos da Terra propendiam a mistificar a consciência e a moral, a perpetuar a ignorância, a embrutecer a Humanidade, a matar o escasso sentimento religioso, que com lentidão germinava no coração dos povos. Urgia abater as cerimonias e levantar a religião; destruir o fanatismo e dar base firme às crenças; abolir os sinais exteriores, que materializavam a adoração, e ensinar às gentes que não é a ostentação aparatosa a homenagem mais grata ao criador, mas o exercício constante da virtude e da prática do bem. Eis aí porque não veremos Jesus pregando o culto moisaico, nem estabelecendo outro novo; ele não curava das fórmulas externas e, se alguma vez se lembrava delas, era fazer aparecer a sua insuficiência e a necessidade da religião verdadeiramente espiritual.

            Ouçamo-lo no admirável Sermão da Montanha que foi como que o celeiro de todos os seus ensinos posteriores, e acharemos confirmada essa verdade. Nele tudo é espírito, tudo é sentimento, tudo é coração, nada de sacrifícios, nada de oferendas, nada de demonstrações externas. Jesus não exige, para alcançar-se a perfeição cristã, outro sacrifício que o do orgulho e más paixões, outra oferenda além da bondade do sentimento, outra demonstração visível além da justiça das obras. Como se vê irradiar em cada uma de suas palavras a inspiração divina! Quão bela, quão doce, quão espiritual é a religião que brota de seus lábios!

            Ao ler o sermão das Bem-aventuranças, parece-nos ver Jesus no cimo do monte estendendo seus braços, como que desejando abraçar toda a Humanidade regenerada. Dali ele domina com a sua vista profética o presente e o porvir dos povos; mede os tempos, lê a história das gerações, percebe o estridor dos combates, obra da ambição, do fanatismo ou do ódio; penetra nos alcáçares (palácios) dos poderosos, regista as suntuosas basílicas em que o povo esgotou seus tesouros, o gênio seus desejos, e a arte suas belezas e suas formas; vê a grande família humana dividida em raças, em igrejas, em sociedades inimigas umas das outras; e, descendo por último aos indivíduos, observa seus caminhos, descobre suas misérias e suas virtudes, e exclama:

            Bem-aventurados os pobres de espirito; os que não assentam seus sentidos nas riquezas terrenas; os que são pobres com resignação ou ricos com humildade; os que se consideram como administradores, em benefício de seus irmãos, dos bens que em suas mãos depôs a Providência; os que se julgam com severidade e se confessam pobres de virtudes em presença de Deus; porque deles é o reino dos céus.

            Bem-aventurados os mansos; os que não dão entrada em seu ânimo às sugestões da ira; os que sofrem com paciência os golpes da injustiça; os que tratam com doçura e amor, mesmo os seus inimigos; porque eles possuirão a terra dos vivos.

            Bem-aventurados os que choram; os que derramam lágrimas pelas faltas próprias e pelos extravios dos outros, e imploram contritos e humilhados o perdão; porque eles serão consolados.

            Bem-aventurados os que têm fome e sede de justiça; aqueles que buscam com ardor a justificação de seu espírito na reforma de seus costumes e suspiram por ver afastados da Terra o dolo e a iniquidade; porque eles serão fartos.

            Bem-aventurados os misericordiosos; os que, podendo devolver golpe por golpe, injúria por injúria, esquecem as ofensas recebidas, perdoando cordialmente a seus irmãos; aqueles que compartilham a dor e o infortúnio alheios, sentindo-os corno próprios, e procuram aliviá-los na medida de suas forças; porque eles alcançarão de Deus a misericórdia que tiveram para com os homens.

            Bem-aventurados os de coração limpo; aqueles que albergam em sua alma a simplicidade e a pureza de sentimentos da inocente criança, nunca nela dando entrada à dobrez (fingimento) , ao orgulho ou ao egoísmo; porque eles verão a Deus.

            Bem-aventurados os pacíficos; os que procuram, mesmo à custa dos maiores sacrifícios, conservar a paz interior da consciência, pelo escrupuloso cumprimento do dever, e a concórdia entre os seus irmãos por meio do bom conselho; porque serão chamados filhos de Deus.

            Bem-aventurados os que padecem perseguições por causa da justiça; os que são injustamente vexados, caluniados e oprimidos, e sofrem com paciência os insultos e perseguições de que são vítimas por causa da justiça de suas obras; porque deles é o reino dos céus. (Mateus, V.)

            Assim, começa Jesus falando ao povo no incomparável Sermão da Montanha, com aquela eloquência popular, ingênua, cheia de naturalidade e graça, que constitui o caráter de suas prédicas. Suas palavras são o novo ensino religioso, a cuja sombra se podem abrigar todos os homens, todas as nações, todas as igrejas terrenas, que buscam sinceramente a Deus pelo caminho do sentimento, da virtude e do dever. São a seiva regeneradora do mundo, a nova ideia que há de transformar as sociedades; a fórmula do princípio e do sentimento de amor e de justiça, que há de suavizar e purificar as asperezas e manchas da consciência; a linguagem simples da religião e do espírito, que há de substituir os cultos cheios de hipocrisia e soberba; o belíssimo ideal da perfeição, ao qual se devem dirigir, para atingir a felicidade, as aspirações dos homens. Para Jesus toda a religião se estriba na doçura do sentimento, no gosto do bem, nas harmonias da consciência, na prática da justiça e do amor. Seu código religioso é a bondade da alma e a moral em exercício. Não é a adoração exterior o laço místico, a homenagem, a força misteriosa que nos eleva às divinas alturas, mas o culto íntimo da alma sancionado pela virtude das obras. Jesus promete a bem-aventurança, não ao circunciso, apesar de se haver ele submetido a essa prática da lei moisaica, nem ao batizado na água, apesar de haver também recebido o batismo no Jordão, nem ao que queima incenso no altar, nem ao que se prostra de joelhos no templo, nem ao que jejua, nem ao que se abstém de comer certos manjares em dias determinados, nem ao que lega grandes bens à Igreja em sufrágio de sua alma; é aos mansos, a que ele chama bem-aventurados, aos que choram, aos pacíficos, aos misericordiosos, aos limpos de coração, em uma palavra, aos que sentem os estímulos do bem e constantemente o praticam. Ele respeita todas as fórmulas, todas as cerimônias racionais, mas nenhuma prescreve como essencial para a perfeição e o merecimento do espírito. Nessa parte Jesus foi tão explícito que não deixou à ignorância um lugar para a dúvida, nem à malícia espaço para interpretações arbitrárias ou interessadas. Se é certo que à malícia nunca falta pretexto para torcer o sentido dos conceitos que se opõem aos seus propósitos; também não o é menos que basta ler o Evangelho para confundir os que, talvez com fins um tanto mundanos, pretendem mistificar o Cristianismo, fazendo dele uma religião cheia de cerimônias. O Sermão da Montanha será em todos os tempos um testemunho que em vão intentarão desvirtuar ou fazer servir aos seus propósitos. Quereis formas, quereis exterioridades, quereis oferendas? Pois bem, o Evangelho não as condena, e pudestes estabelecê-las sem contrariar os ensinos do Cristo; mas apresentai-as somente como figuras do culto verdadeiramente espiritual e incentivos da adoração íntima, e não como condições essenciais para a salvação das almas porque, neste caso, vos pondes em flagrante contradição com os ensinos do Enviado. Porventura pronuncia o Mestre uma só promessa de recompensa aos que cumprirem as práticas exterior do culto? Lembra-se sequer deles ao chamar justos para a sua direita, isto é, para a felicidade imortal? Porque destes de comer ao faminto e de beber ao sedento; hospedastes o peregrino, vestistes os nus; visitastes o enfermo e encarcerado; vinde, benditos de meu Pai! - disse Jesus (Mateus XXV.)

            Importa em alto grau não olvidar, mas, ao contrário, deve ter-se muito em conta esse caráter especial, de que aparece revestido o Cristianismo em suas origens e que o distingue todas as outras religiões conhecidas, pelo majestoso cunho de universalidade que apresenta. Jesus Cristo levanta uma bandeira, a cuja sombra se podem abrigar todos os homens, mesmo aqueles a quem não chegou a irradiante luz do Evangelho. A seiva da doutrina redentora está destinada a dar vida a todos os ramos da árvore da Humanidade. O Filho do homem não chama bem-aventurado nem coloca à sua direita ao que se intitula católico, judeu, cristão ou gentio, àquele em cujo coração germinou a semente da virtude e em cujas obras resplandecem a justiça e o amor. E não podia ser de outro modo. Seria monstruosa blasfêmia supor que Deus absolva ou condene por motivos puramente acidentais, independentes em tudo da liberdade individual. Será voluntário e livre o ato de nascer neste em outro país, nesta ou em outra igreja? E, não sendo, em que fundamento de justiça se apoiaria o prêmio ou o castigo do judeu ou do maometano, por exemplo, só pelo fato de ser maometano ou judeu? Indubitavelmente em nenhum; e por essa razão ninguém é interrogado no tribunal da justiça infalível por sua filiação religiosa, mas  pela filiação de suas obras e sentimentos. 

            Alguns exclusivistas interessados, infelizmente ainda muitos, pretendem que isso é igualar todas as religiões e rebaixar o Cristianismo ao nível das outras. Que mesquinha é a ideia que formaram do Cristianismo! Ou melhor, como exploram a ignorância de uns, a boa fé de outros e a aquiescência cega ou maliciosa de todos. Seremos nós, os que tomamos e aceitamos o Cristianismo, como Jesus o pregou, que o rebaixamos ao nível das outras religiões, ou aqueles que despojando-o da universalidade, que é o seu caráter ou cunho peculiar, o amesquinham até fazer dele não uma religião, mas um culto, não a Igreja universal, mas um miserável templo de pedra, onde só cabem algumas dúzias de sectários?

            O Catolicismo oficial, o islamismo e o judaísmo são cultos instituídos pelos homens, dentro deles só cabem os católicos, os maometanos ou os judeus; o Cristianismo é a religião eterna, instituída por Deus desde o princípio dos tempos, e nela cabem todos os homens de boa vontade, seja qual for a pátria ou o culto a pertençam por circunstâncias acidentais. Por isso disse Jesus (Mateus, VIII, 11) que muitos viriam do Oriente e do Ocidente, e com Abraão, Isaac e Jacob se assentariam no reino dos céus.


A Seiva do Cristianismo – Parte 04
por José Amigó y Pellicer
Reformador (FEB) Junho 1955


            O Sermão da Montanha está repleto de espírito democrático; é a expressão mais pura da igualdade, derramando-se como um bálsamo consolador sobre todos os deserdados, sobre todos os aflitos e oprimidos, é a condenação mais terminante de todos os privilégios e de todas as tiranias.

            A palingenesia cristã aparece em sua origem, rompendo a cadeia do escravo e devolvendo ao homem, com a sua liberdade, os foros inalienáveis da dignidade humana, conculcados (espezinhados) e escarnecidos desde o nascimento das primeiras sociedades, em prejuízo dos fracos e humildes.

            Os que tinham os olhos cravados na terra de seus suores, de suas penas e de suas lágrimas, erguem-nos ao céu das promessas do Cristo; e os que os tinham postos no céu do seu orgulho, dobram, confusos, a cerviz, e caem ao solo de suas leviandades e misérias.

            Ouviu-se uma voz modulando as esquecidas harmonias do sentimento e despertando as consciências, suave para uns como o doce sopro da brisa, e terrível para outros como o ameaçador sibilo (assovio agudo) do aquilão (vento do norte - poético).

            Jesus não vai buscar a divina inspiração sob a arqueada e majestosa abóbada do templo. Ele só vai ali para confundir os doutores e os sábios ou para daí expulsar os mercadores; mas, para pregar a palavra de Deus e mostrar às gentes os caminhos da vida, o templo de sua escolha é o universo, a abóbada o firmamento, a cátedra, o monte, o altar o coração do povo simples que o escuta absorto e alvorotado. Quanto há que meditar em tudo isso! Que de reflexões, que de comentários, que de inquietações e tristes pressentimentos não surgem na mente e no coração, ao retroceder ao berço do Cristianismo para vir estudá-lo em seus desenvolvimentos posteriores.

            Dezenove séculos de luz e trevas, de virtudes e vícios, de verdades e erros, nos separam de Jesus e do monte da Galileia, onde aquele começou a derramar os tesouros de amor, de sabedoria e de fé, que lhe confiara a paternal solicitude de seu Pai e nosso Pai, de seu Deus e nosso Deus. Se quisermos voltar ao Evangelho, que é o Cristianismo original, será necessário que bebamos as cristalinas pérolas da revelação divina no manancial regenerador dos lábios de Jesus. A quem melhor que ao Cristo podemos recorrer para inquirir da sanção das crenças cristãs?

            Os sagrados ecos de suas prédicas deslizam ainda pelas vertentes do monte da Galileia.

            Depois de mostrar ao povo, nas Bem-aventuranças, o puríssimo ideal da perfeição do espírito, ele continua a instruí-lo nas verdades morais ou religiosas indispensáveis para obter-se a salvação.

            Não basta, disse o Mestre, o preceito que vos foi dado na lei antiga: Não matarás, eu, porém, vos digo que todo aquele que se enoje,  ou zombe de seu irmão, ou que o injurie por palavras, não verá o reino de Deus, até que tenha reparado a falta e devolvido ao seu irmão o sentimento de amor que deve reinar entre os homens. Portanto, se fores oferecer tua oferenda ao altar e te recordares que alguma inimizade te separa de teu próximo, deixa a oferenda e corre a reconciliar-te com ele; pois a melhor das oferendas, na presença do Pai, é o abraço fraterno proveniente do perdão ou da reparação das ofensas. Não demores o perdão ou a reparação das injúrias; pois se desgraçadamente para ti a morte te surpreender nas veredas do ódio ou da má vontade, o teu castigo será terrível e durará tanto quanto o teu iníquo sentimento e suas abomináveis consequências. Aos antigos foi dito por Moisés: Olho por olho e dente por dente; eu, porém, vos digo que isso não é nem a perfeição nem o dever. O dever consiste em apagar do entendimento a memória do agravo, e a perfeição, em amar os nossos inimigos, fazer bem aos que nos aborrecem e orar pelos que nos perseguem e caluniam. Dai ao que vos pedir, e ao que vos quiser tomar emprestado não volteis as costas. Não ponhais os olhos em uma mulher para cobiçá-la, porque todo aquele que a cobiça torpemente, em seu coração cometeu adultério infringiu a lei de caridade atentando com o desejo contra a pureza, que é o mais precioso ornamento do amor. Até hoje vos foi dito: Não perjurarás, mas cumprirás teus juramentos ao Senhor; - eu, porém, vos digo que de nenhum modo jureis, nem pelo Céu, nem pela Terra, nem por qualquer coisa que haja acima ou abaixo; antes vosso falar seja sim, sim, não, não, pois tudo o que disserdes de mais, é princípio de desconfiança ou má fé. Quem infringir ou fizer que infrinjam algum desses mandamentos, muito pequeno será chamado no reino dos céus; e grande será chamado aquele que os cumprir e ensinar. (Mateus V.)

            Assim se ia realizando o que o Batista havia predito sobre Jesus, que batizaria as gentes, não na água, mas em espírito e em fogo, em virtudes e em amor. Suas palavras são o Sol dos entendimentos e o Jordão das almas, iluminam a inteligência e fecundam o coração. Sobre a justiça estéril e egoísta dos antigos, baseada no olho por olho, dente por dente, de Moisés, levanta-se justiça expansiva e generosa da caridade, baseada no perdão das ofensas; e sobre os ritos, exterioridades e as cerimônias dos hebreus, a religião do sentimento e das obras, a humildade, a ingenuidade, a pureza e o amor. Jesus encaminhava todas as suas máximas para fazer da Humanidade uma só família, sem exclusão de povos, de raças ou de cultos, exigindo como únicos títulos necessários, para pertencer a ela, a bondade do sentimento e a moralidade das ações. Por isso o Cristianismo se eleva muito acima de todos os cultos conhecidos, porque é o único culto verdadeiramente do espírito, pelo bem lhe corresponde o título de universal, pois ampara e protege todos os homens de boa vontade; por isso os sacerdotes de todos os tempos rechaçaram ou mistificaram a palavra do Cristo, por conceder ela um lugar muito secundário às oferendas e fazer depender o sacerdócio da palavra e do exemplo.

            Os sacerdotes não perdoaram a Jesus o Sermão da Montanha, que lhes arrebatava o monopólio da adoração, pois que esta deixava de ser cerimônia aparatosa, em que necessariamente eles tivessem de intervir, e se volvia para o solitário altar da consciência. Não lhe perdoaram o haver ele revelado ao povo ignorante a oração mais grata a Deus não é a que se faz à vista das gentes, na praça ou nos templos, como costumam fazer os fariseus e hipócritas (Mateus, VI); mas a que se levanta no segredo do mais retirado aposento do lar, sóbria de palavras e rica de sentimento. Nem lhe perdoaram também o haver ensinado que cada um pode alcançar por si mesmo, sem mediação estranha, as graças espirituais, e que não basta intitular-se profeta ou ministro da palavra para sê-lo realmente. (Mateus VII, 7 a 11, 21 a 23.) Como haviam de perdoar-lhe isso, a que podemos chamar um atrevimento divino, eles, tão ciosos guardas das práticas externas, tão exigentes no cumprimento dos ritos e cerimônias do culto, tão satisfeitos com a sua oficiosa mediação entre a criatura e o Criador, tão enamorados de sua intervenção nos negócios espirituais, origem de sua poderosíssima influência nos negócios do mundo.

            Sublevaram as turbas e com elas pediram a morte do inocente.

            Jesus Cristo despojou o sacerdócio do caráter oficial de que vinha revestido desde os tempos de Moisés e, fazendo-o extensivo a todas as classes sociais, como missão individual, compatível com o exercício de qualquer outro ministro ou profissão, fê-lo não ser mais o monopólio de uma classe privilegiada. Com o tempo, o verdadeiro, o legítimo sacerdote será aquele que difunda a luz do Evangelho com a sua palavra e a prática das virtudes, com o seu exemplo digno de imitação e aplauso, sejam quais forem o seu estado e condições sociais. De que meio o Mestre tomou seus discípulos, seus apóstolos e sacerdotes? Do templo, porventura, onde exerce completa jurisdição o sacerdócio oficial?  Da tribo de Levi? Da lei? Não, por certo; ele prescinde da lei, esquece-se da tribo que Moisés dedicava ao serviço do altar; deixa no templo os sacerdotes oficiais que, segundo disse São Jerônimo, nele exerciam vergonhoso tráfico; e escolhe seus apóstolos do meio do povo, de entre classes mais humildes, de entre os célibes (celibatários) e os pais de família, de entre os desconhecedores da ciência teológica que tanta confusão havia introduzido nas consciências e tanta divisão nos ânimos. Unicamente a prédica e a bondade das obras imprimirão o caráter sacerdotal. Virão dias tristes, dias de confusão e opróbrio, em que o orgulho e os interesses mundanos, com a capa de Cristianismo e prevalecendo-se da ignorância comum, se introduzirão no ensino das máximas salutares do Cristo para adulterá-las e explorá-las. Já o havia profetizado o Messias, no mesmo Sermão da Montanha, ao recomendar ao povo que se guardasse dos falsos profetas, mansas ovelhas na aparência, mas realmente lobos rapaces. (Mateus, VII, 15.) Esses falsos profetas são aqueles a quem Jesus mais adiante (Mateus, XXIII, 27) chama sepulcros branqueados, por fora formosos e por dentro cheios de imundície e corrupção. Virão os tempos e sobre os fundamentos do Cristianismo primitivo se levantará o ultramontanismo, que usurpará o título de cristão, tão grande pelo número de seus adeptos e tão pequeno em suas vistas e egoísmo; mas a solidez da base não salvará da ruína a obra falsamente edificada. A base subsistirá eternamente, mas o resto do edifício virá ao chão com estrondo. Porque desceram as chuvas, cresceram os rios, sopraram os ventos e, batendo com ímpeto nas frágeis obras dos homens, arrastaram-nas em sua corrente e foram apagadas da memória dos séculos.

A Seiva do Cristianismo – Parte 05
por José Amigó y Pellicer
Reformador (FEB) Julho 1955

Precisamos insistir ainda no estudo da instituição do sacerdócio cristão, pela eficaz influência que o sacerdote estava chamado a exercer na direção do feliz movimento iniciado por Jesus. Para que a seiva do Cristianismo, a moral do Evangelho, pudesse circular pelo tronco e chegar até os ramos mais afastados da árvore da Humanidade, tornava-se necessária uma força impulsora constante, um apostolado que, guardador fiel da palavra e do testamento do Mestre, chamasse os homens à luz em toda a sucessão dos tempos, até chegar ao reinado do espírito, ao triunfo completo sobre as más paixões que separam uns dos outros os membros da grande família humana, ao estabelecimento da Igreja universal sobre os escombros das pequenas igrejas estabelecidas na ignorância e no orgulho. Era uma empresa de tal magnitude, que precisava da sucessão de mil gerações para vencer todas as dificuldades amontoadas em seu caminho. Dezenove séculos se passaram desde que o Céu desceu a Boa Nova, e em que estado se acha a redenção da Humanidade terrena? Ainda não saiu, podemos dizê-lo, do primeiro dia de sua gênesis.

            Bom é que os cristãos, emancipando-nos de caducas preocupações e elevando-nos acima da atmosfera do presente, que nos comprime e asfixia, volvamos de vez em quando os olhos e a contemplação ao passado, ao Cristianismo original, que há de ser a sanção do nosso Cristianismo; como o experto navegante que, ao avançar em direção ao austro, dirige para o setentrião frequentes vistas para não desviar-se do meridiano que há de conduzi-lo ao termo de sua viagem.

            Seja o Evangelho a estrela polar do céu de nossas almas, a bússola de nossa fé nos borrascosos mares da vida. Porque o fogo sagrado das crenças cristãs está a ponto de extinguir-se? Porque em todos os corações se erigem altares ao sórdido positivismo sobre as cinzas do sentimento religioso? Ah! Invocamos a Jesus e não conhecemos o seu Evangelho; chamamo-nos povo cristão e são contados os que se dão ao trabalho de estudar os ensinos do Cristo. Por isso nos achamos sem forças para resistir aos assaltos da impiedade. Esquecendo que o trânsito do homem pela Terra é um combate, desprezamos aqueles meios de defesa, sem os quais é inevitável a derrota. A fé cega que recebemos da tradição, sucedem as vacilações da dúvida, à dúvida segue a indiferença, à indiferença o sensualismo e ao sensualismo a negação; e tudo por não termos edificado a nossa fé sobre o fundamento racional e sólido da comparação e do estudo.

            Já vimos que o Mestre não tirou seus discípulos, seus apóstolos e seus sacerdotes nem do templo, nem da lei, nem da tribo consagrada, desde Moisés, ao serviço do Alto; pouca confiança podia merecer-lhe para a prédica das máximas evangélicas, que eram máximas de liberdade, aquele sacerdócio oficial que fanatizava o povo para arrojá-lo, como uma fera sedenta de sangue, sobre o primeiro que ousasse erguer a voz contra a opressão teocrática estabelecida à sombra do antigo Tabernáculo.  

            O fundador da nova Igreja, da grande Igreja que há de ter por templo o universo, não admite sacerdotes escravos da tradição e da letra, egoístas, intransigentes, amantes das exterioridades do culto e propensos à efeminação e ao comodismo; os sacerdotes de sua preferência são os laboriosos filhos do povo, os homens virtuosos e simples que sacrificam seu bem-estar em prol da redenção de todos, os varões justos, bondosos, tolerantes, inimigos da suntuosidade e da hierarquia, que edificam com a unção da palavra a santidade do exemplo. Estes, ele os chama para formar o seu apostolado, convoca-os ao redor de si para enviá-los aos quatro ventos e anunciar a Boa Nova; mas antes de despedi-los, a fim de que não ignorassem as condições e os deveres que o cumprimento da missão sacerdotal traz consigo, lhes fala e instrui nos seguintes termos:

            Ide e pregai, dizendo que o reino dos céus se aproxima; que a salvação vem do Alto e a verdade brilha esplendorosa para todos os entendimentos. Curai os enfermos; vigorizai com a seiva regeneradora do Evangelho esses espíritos que desfalecem e enfermam por causa dos vícios e erros religiosos em que se agitam e asfixiam suas vacilantes crenças. Ressuscitai os mortos; restituí a vida da fé a essas almas que pereceram por falta de alimento, e renegaram seu Pai e seu Deus, porque viram a iniquidade e a falácia onde não deviam ter assento senão a justiça e a verdade. Limpai os leprosos; purificai, circuncidai com a circuncisão da alma as consciências danificadas pela sensualidade e pelo egoísmo; e expeli os demônios, os ídolos da paixão e desenfreamento, em cuja honra erigiu altares a concupiscência humana e cujo culto podereis arrancar dos corações, neles inoculando o puríssimo e vivificante espírito da caridade, da esperança e da fé. Dai graciosamente o que graciosamente recebestes; a vós vieram a graça e a revelação, não para que monopolizeis em utilidade própria esses dons, mas para que os façais frutificar em benefício da Humanidade, filha de Deus, como administradores que sois de uns bens que não ganhastes e dos quais deveis fazer partícipes todos os vossos irmãos. (Mateus, X, 7 e 8.)

            Não possuais ouro, nem prata, nem dinheiro, nem leveis alforjes, nem bastão, nem duas túnicas; porque aquele que tem os seus sentidos postos nas riquezas, nas comodidades e no fausto, dá claros indícios de que não é a salvação dos outros o móvel de seus desejos.

            Sacerdócio é vocação, e não mercancia; abnegação, e não sensualidade; simplicidade, e não preponderância; o sacerdócio termina onde começam a preponderância, a ostentação, a sensualidade e o comércio. Aquele que ama o ouro ou a prata, não é um sacerdote; o que vende os bens da alma pelos temporais, não é um sacerdote; o que não sabe fazer o sacrifício de suas comodidades terrenas, sempre que se ofereçam aos seus olhos a nudez e a fome, ou insulta com a sua abundância a miséria dos filhos do povo, aos quais recomenda o desprendimento das coisas da vida, não é um sacerdote modelado no Evangelho e nutrido com a seiva dos ensinos do Cristo. O trabalhador é digno do seu alimento e bem assim o ministro da palavra; mas esse ministério é de delegação providencial, e se profana, quando aquele que pretende exercê-lo se fia mais na eficácia dos bens terrenos que na maternal solicitude da Providência. (Mateus, X, 9 e l0).

            Não sete vezes mas até setenta vezes sete perdoareis a vossos irmãos. Se eles são devedores, também vós o sois, porque sois homens como os outros. Tendes o dever de perdoar e não o direito de julgar e condenar. Sobre vós e sobre todos os homens um só está estabelecido como juiz; a justiça está nas mãos de Deus, não nas vossas, pecadoras e falíveis. Por isso o reino dos céus é comparado a um rei que quis tomar contas aos seus servos e que, havendo perdoado a um deles uma dívida de dez mil talentos, entregou-o depois ao cárcere e ao tormento, por não se compadecer ele de outro que lhe devia cem dinheiros. Do mesmo modo obrará convosco o Pai celestial, se não perdoardes de coração.  Aquele que pronunciar palavras de maldição, de ira ou de vingança, não é sacerdote, mas o mau servo da parábola, indigno de lhe serem perdoadas as suas dívidas e merecedor do tormento até que pague o último ceitil. (Mateus XVIII, 21 e seguintes)


            Sabeis que os príncipes das gentes avassaladoras seus povos e que os grandes exercem poder e oprimem os fracos e os humildes? Não se dará assim entre vós; entre vós, o que quiser ser maior, faça-se o servo dos outros, e o que pretender ser o primeiro, faça-se o último.

            No sacerdócio não cabem preeminências nem hierarquias; as distinções e privilégios nasceram da soberba e se arraigaram nas repúblicas  ao calor das concupiscências humanas; mas a milícia espiritual, o sacerdócio cristão, há de ser um exemplo perpétuo de igualdade, humildade e abnegação, onde os poderes terrenos aprendam constantemente a reformar e melhorar suas instituições até que elas alcancem a perfeição cristã, que há de ser o triunfo da igualdade e, por conseguinte, a morte das distinções hierárquicas. O Filho do homem não veio estabelecer a hierarquia, mas aboli-la na ordem espiritual e dar a sua vida em redenção e holocausto (Mateus, XX, 25 e seguintes)

            Como o Pai me enviou, assim também vos envio. (João, XX, 19.) Eu recebi do Pai a altíssima investidura do sacerdócio, a divina missão de remir com a prédica e o exemplo das virtudes a pobre Humanidade terrena, que vaga perdida nas sendas da iniquidade e do erro, capaz de empreender, sem despertamentos providenciais, o caminho reto da perfeição e progresso; missão gloriosa e santa, mas eriçada de fadigas; perseguições, ingratidões e perigos. Subo para meu Pai e vosso Pai, para meu e vosso Deus (João, XX, 17); em vós delego continuação do ministério celestial, para cujo estabelecimento desci das moradas da felicidade imortal e tomei corpo entre os homens da Terra. Transmito-vos o meu poder, meu encargo sacerdotal, mas com a condição (João, XX nota do Pe. Scio) de serdes, como eu, o caminho, verdade e a vida das almas. Nisto consiste o sacerdócio, na prédica e no exemplo, na humildade e no amor, na abnegação e no sacrifício. Quem não seguir essas minhas pegadas e apartar de meus caminhos não é, não pode ser sacerdote da Igreja que eu vim estabelecer. Ide, pois, e ensinai a todas as gentes, batizando-as em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo, isto é, ensinando-as a observar todas as coisas que vos mandei. (Mateus, XXVIII,19 E 20) de cuja observação depende o verdadeiro batismo do espírito, o batismo essencial para a purificação e salvação.


            Nestes termos Jesus institui o ministério sacerdotal, o corpo docente chamado a continuar a obra de redenção pelos ensinos evangélicos. O retrato do sacerdote cristão está feito por mão de mestre, pela mão do próprio fundador do Cristianismo. Ponde nesse retrato os olhos do entendimento, estudemos o sacerdócio do nosso século e meditemos. Não terá ainda soado para os cristãos a hora de meditar?

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