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quarta-feira, 16 de março de 2011

E por falar em Judas... Uma coletânea de textos sobre Judas Iscariote - Parte 2




A palavra, agora, é para Humberto de Campos em “Palavras do Infinito”:

            Antes, o trecho bíblico (Mateus)...
         26,14  Então, um dos doze, chamado Judas Iscariotis, foi ter com os sacerdotes e perguntou-lhes: 26,15  Que quereis dar-me e eu vo-Lo entregarei!  Ajustaram com ele trinta moedas de prata 26,16  E, desde aquele instante, procurava uma ocasião favorável  para entregar Jesus.
    
       
Judas Iscariotis


            “Silêncio augusto cai sobre a Cidade Santa. A antiga capital da Judéia parece dormir o seu sono de muitos séculos. Além descansa Getsêmani, onde o Divino Mestre chorou numa longa noite de agonia, acolá está o Gólgota sagrado e em cada coisa silenciosa há um traço da Paixão que as épocas guardarão para sempre. E, em meio de todo o cenário, como um veio cristalino de lágrimas, passa todo o Jordão silencioso, como se as suas águas mudas, buscando o Mar Morto, quisessem esconder das coisas tumultuosas dos homens os segredos insondáveis do Nazareno.
            Foi assim, numa destas noites que vi  Jerusalém, vivendo a sua eternidade de maldições.
            Os espíritos podem vibrar em contato direto com a história. Buscando uma relação íntima com a cidade dos profetas, procurava observar o passado vivo dos Lugares Santos. Parece que as mãos iconoclastas de Tito por ali passaram como executoras de um decreto irrevogável. Por toda a parte ainda persiste um sopro de destruição e desgraça. Legiões de duendes, embuçados nas suas vestimentas antigas, percorrem as ruínas sagradas e no meio das fatalidades que pesam sobre o empório morto dos judeus, não ouvem os gemidos da humanidade invisível.
            Nas margens caladas do Jordão, não longe talvez do lugar sagrado, onde o Precursor batizou Jesus Cristo, divisei um homem sentado sobre uma pedra. De sua expressão fisionômica irradiava-se uma simpatia cativante.
            Sabe quem é este? - murmurou alguém aos meus ouvidos. Este é Judas.
            - Judas!?!
            - Sim. Os espíritos apreciam, às vezes, não obstante o progresso que já alcançaram, volver atrás, visitando os sítios onde se engrandeceram ou prevaricaram, sentindo-se momentaneamente transportados aos tempos idos. Então mergulham o pensamento no passado, regressando ao presente, dispostos ao heroísmo necessário do futuro. Judas costuma vir à Terra, nos dias em que se comemora a Paixão de Nosso Senhor, meditando nos seus atos de antanho...
            Aquela figura de homem magnetizava-me. Eu não estou ainda livre da curiosidade do repórter, mas entre as minhas maldades de pecador e a perfeição de Judas existia um abismo. O meu atrevimento, porém, e a santa humildade do seu coração, ligaram-se para que eu o atravessasse, procurando ouvi-lo.
            - O senhor é, de fato, o ex-filho de Iscariotis? - perguntei.
            - Sim, sou Judas - respondeu aquele homem triste, enxugando uma lágrima nas dobras de sua longa túnica.
            Como o Jeremias, das Lamentações, contemplo às vezes esta  Jerusalém arruinada, meditando no juízo dos homens transitórios...
            - É uma verdade tudo quanto reza o Novo Testamento com respeito à sua personalidade na tragédia da condenação de Jesus?
            Em parte... Os escribas que redigiram os evangelhos não atenderam às circunstâncias e às tricas políticas que acima dos meus atos predominaram na nefanda crucificação. Pôncio Pilatos e o tetrarca da Galiléia, além dos seus interesses individuais na questão, tinham ainda a seu cargo salvaguardar os interesses do Estado romano, empenhado em satisfazer as aspirações religiosas dos anciãos judeus. Sempre a mesma história. O Sinédrio desejava o reino do céu pelejando por Jeová, a ferro e fogo; Roma queria o reino da Terra.  Jesus estava entre essas forças antagônicas com a sua pureza imaculada. Ora, eu era um dos apaixonados pelas idéias socialistas do Mestre, porém o meu excessivo zelo pela doutrina me fez sacrificar o seu fundador. Acima dos corações, eu via a política, única arma com a qual poderia triunfar e  Jesus não obteria nenhuma vitória. Com as suas teorias nunca poderia conquistar as rédeas do poder já que, no seu manto de pobre, se sentia possuído de um santo horror à propriedade. Planejei então uma revolta surda como se projeta hoje em dia na Terra a queda de um chefe de Estado. O Mestre passaria a um plano secundário e eu arranjaria colaboradores para uma obra vasta e enérgica como a que fez mais tarde Constantino I, O Grande, depois de vencer Maxêncio às portas de Roma, o que aliás apenas serviu para desvirtuar o Cristianismo. Entregando, pois, o Mestre, a Caifás, não julguei que as coisas atingissem um fim tão lamentável e, ralado de remorsos, presumi que o suicídio era a única maneira de me redimir aos seus olhos.
            - E chegou a salvar-se pelo arrependimento?
            - Não. Não consegui. O remorso é uma força preliminar para os trabalhos reparadores. Depois da minha morte trágica, submergi-me em séculos de sofrimento expiatório da minha falta. Sofri horrores nas perseguições infligidas em Roma aos adeptos da doutrina de Jesus e as minhas provas culminaram em uma fogueira inquisitorial *, onde, imitando o Mestre, fui traído, vendido e usurpado. Vítima da felonia e da traição deixei na Terra os derradeiros resquícios do meu crime, na Europa do século XV. Desde esse dia, em que me entreguei por amor do Cristo a todos os tormentos e infâmias que me aviltaram, com resignação e piedade pelos meus verdugos, fechei o ciclo das minhas dolorosas reencarnações na Terra, sentindo na fronte o ósculo de perdão da minha própria consciência...
            - E está hoje meditando nos dias que se foram...  pensei com tristeza.  
            - Sim, estou recapitulando os fatos como se passaram. E agora, irmanado com Ele, que se acha no seu luminoso Reino das Alturas que ainda não é deste mundo, sinto nestas estradas o sinal de seus divinos passos. Vejo-O ainda na cruz entregando a Deus o seu Destino...  Sinto a clamorosa injustiça dos companheiros que O abandonaram inteiramente e me vem uma recordação carinhosa das poucas mulheres que O ampararam no doloroso transe...  Em todas as homenagens a Ele prestadas, eu sou sempre a figura repugnante do traidor...  Olho complacentemente os que me acusam sem refletir se podem atirar a primeira pedra...  Sobre o meu nome pesa a maldição milenária, como sobre estes sítios cheios de miséria e de infortúnio. Pessoalmente, porém, estou saciado de justiça, porque já fui absolvido pela minha consciência no tribunal dos suplícios redentores.
            Quanto ao Divino Mestre - continuou Judas com os seus prantos - infinita é a sua misericórdia e não só para comigo, porque se recebi trinta moedas, vendendo-O aos seus algozes, há muitos séculos Ele está sendo criminosamente vendido no mundo a grosso e a retalho, por todos os preços, em todos os padrões do ouro amoedado...
            - É verdade - concluí - e os novos negociadores do Cristo não se enforcam depois de vendê-LO.
            Judas afastou-se tomando a direção do Santo Sepulcro e eu, confundido nas sombras invisíveis para o mundo, vi que no céu brilhavam algumas estrelas sobre as nuvens pardacentas e tristes, enquanto o Jordão rolava na sua quietude como um lençol de águas mortas, procurando um mar morto.        
Humberto de Campos
(Página recebida em Pedro Leopoldo a 19 de Abril de 1935)

* Vale a pena reler ‘Joana D’Arc’, de Léon Denis.

            Mateus segue em sua narrativa, que também reproduzimos:

            A Ceia 26,17  No primeiro dia dos Ázimos, os discípulos   aproximaram-se  de   Jesus   e      perguntaram-Lhe: Onde queres que preparemos a ceia pascal? 26,18  Respondeu-lhes Jesus : “Ide à cidade, à casa de um certo homem, e dizei-lhe: O Mestre manda dizer-te: Meu tempo está próximo. É em tua casa que celebrarei a páscoa com meus discípulos.” 26,19  Os discípulos fizeram o que Jesus tinha ordenado e prepararam a Páscoa.  26,20  Ao declinar da tarde, pôs-se Jesus à mesa com os doze discípulos. 26,21  Durante a ceia, disse: “Em verdade vos digo, um de vós Me há de trair.” 26,22  Com profunda aflição, cada um começou a perguntar: -Porventura sou eu, Senhor? 26,23  Respondeu Ele: “-Aquele que põe comigo a mão no prato, é esse que vai Me trair!” 26,24  O Filho  vai partir. Como, a respeito Dele está escrito nas escrituras “mas infeliz daquele pelo qual o Filho será traído! Para ele, seria melhor nunca ter nascido!” 26,25  Então, Judas, que estava planejando a traição, perguntou, por sua vez: Será que sou eu, Senhor? “-Isso mesmo”, respondeu Jesus. 26,26  Enquanto comiam, Jesus tomou um pão, deu graças a Deus, partiu-o e deu-o aos discípulos, dizendo: “Tomem e comam, isto é o meu corpo!” 26,27  Tomou o cálice e, tendo dado graças o deu aos seus discípulos, dizendo: “-Bebam dele todos...26,28  pois este é o meu sangue, o sangue da nova aliança que é derramado por muitos homens em remissão dos pecados. 26,29  Digo-vos: Doravante não beberei mais deste fruto da vinha até o dia em que beberei de novo convosco no reino de meu Pai.”  
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