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quinta-feira, 28 de fevereiro de 2013

Goethe e o Além




Goethe
e o Além

por  Zêus Wantuil
Reformador (FEB) Dezembro 1949


                        Caras sombras! sois vós? aéreas como em sonhos? - Fausto.


            Os meios literários de todo o mundo comemoram este ano a passagem do bi-centenário do nascimento de João Wolfgang von Goethe, (*) que não é tão somente o maior gênio poético da Alemanha, senão também uma das expressões que, com Shakespeare, Cervantes e Dante, formam o quarteto máximo da Poesia universal.

            (*) 2013 – 1949 = 64 + 200 = 264 anos em 2013 (Do Blog)

            Buscou durante toda a sua existência, refletida em sua obra, o sentido da própria vida. "A finalidade da vida é a própria vida" - dizia ele. "Não procurei aprender nos livros, mas na vida, na troca de ideias, na sociabilidade serena e tranquila."  confessava o poeta. Dessa forma, numerosas foram as suas relações. Sempre quando ia a Zurique, na Suíça, a primeira pessoa com quem se punha em contato era João Gaspar Laváter, gozando de sua hospitalidade e de suas longas e eruditas conversações. Laváter, o teólogo protestante, fisiognomista e filósofo, conhecido no meio espírita por suas cartas dirigidas à imperatriz Maria da Rússia, nas quais trata do "futuro reservado à alma depois da morte", e de belas comunicações obtidas do além--túmulo, era muito admirado por Goethe, que em suas "Memórias" a ele se refere assim: "Fui conduzido, em diversas épocas de minha vida, a meditar sobre esse homem, um dos mais excelentes, e com o qual cheguei a uma intimidade de igual para igual ." "Minhas relações com Laváter - prossegue Goethe - eram muito familiares, amigas, generosas e edificantes."

            O inspirado cantor da "Messiada", Klopstock, poema que exalta as maravilhas das regiões celestes, e no qual "se sente perpassar o sopro do Além" - observa Léon Denis -, foi outro amigo de Goethe, mantendo ambos muitas palestras a sós.

            A poetisa Susana von Klettenbergl amiga íntima da mãe de Goethe, exerceu grande influência místico-religiosa sobre o poeta de Weimar, que fala dela com muito carinho em suas "Memórias". Conheceu "a bela alma", por intermédio de Goethe, a Laváter, e desde então manteve com este último continuas relações epistolares, que deram "nascimento ao livro "Correspondência com Laváter".         


            Além dessas ilustres personagens, de muitos outros amigos rodeou o poeta, quais Schiller, Herder, Zelter, Eckermann, o duque Carlos Augusto, etc.

            A inspiração para a essência do seu imortal poema - "Fausto", sua obra máxima, talvez lhe viesse através da mediunidade, tão habitual entre os gênios. Léon Denis regista esse parecer em sua obra "No Invisível", dizendo: "O Fausto é obra mediúnica e simbólica de primeira ordem". Comprovando esse parecer, Denis cita as seguintes palavras de Goethe, conforme extraídas da "Ocult Review": "Eu corria, às vezes, à minha escrivaninha sem me preocupar de endireitar uma folha de papel que estivesse de través, e escrevia minha peça em versos, de começo ao fim, naquela posição, sem mexer-me. Para isso, tomava de preferência um lápis que melhor se prestava à grafia, porque algumas vezes me havia acontecido ser despertado do meu sonambulismo poético pelo ranger da pena ou pelos salpicos de tinta, e distrair-me e sufocar, em o nascedouro, minha pequena produção (1).

            (1) Wie ein Schafwandler, diz Goethe.

            Flammarion, em "O Desconhecido e os Problemas Psíquicos", assinala que "em Goethe, sutil comunhão com os Espíritos se revela, em certos momentos de paixão, com luminosa clareza".

            Interessantíssimo fato é narrado por Gabriel Delanne em "A Alma é Imortal", transcrito de "Psychische Studien", Março de 1897: "Wolfgang von Goethe, que por uma tarde chuvosa de verão saíra a passeio com seu amigo K ... , voltava com ele do Belveder, em Weimar. De repente, o poeta para, como se estivesse diante de uma aparição, e se dispõe a falar-lhe. K ... de nada se apercebera. Súbito, exclama o poeta: "Meu Deus! se eu não tivesse a certeza de que neste momento o meu amigo Frederico está em Francfurt, juraria que é ele!" Em seguida, solta uma gargalhada: - "Mas, é ele mesmo... o meu amigo Frederico!.. Tu, aqui em Weimar? . .. Por Deus, meu caro, em que trajes te vejo... com o meu chambre... meu boné de dormir... calçando minhas chinelas... aqui em plena rua?.. " K .. , como ficou dito acima, nada absolutamente via de tudo aquilo e se espantou, crente de que o poeta fora atacado de repentina loucura. Goethe, porém, preocupado tão só com a sua visão, exclama, abrindo os braços: "Frederico! onde te meteste?.. Grande Deus! Meu querido K ... não viste onde se meteu a pessoa que acabamos de encontrar?" K ... , estupefato, não respondeu. Então o poeta, depois de dirigir o olhar para todos os lados, diz, em tom de quem divaga: "Ah! sim, compreendo... foi uma visão. .. Qual, no entanto, será a significação de tudo isto?.. Teria o meu amigo morrido repentinamente?.. Seria seu Espírito o que vi?..

            Dentro em pouco Goethe chegava a casa e lá encontrou Frederico... Os cabelos se lhe eriçaram: "Afasta-te, fantasma!" - bradou, recuando, pálido como um cadáver. - "Então, meu caro, é esse o acolhimento que dispensas ao teu mais fiel amigo... ?" "Ah! - exclamou o poeta a rir e a chorar ao mesmo tempo - agora, sim, não é um Espírito, mas um ser de carne e osso." E os dois se abraçaram efusivamente.

            Frederico chegara todo molhado da chuva à casa de Goethe e vestira as roupas do amigo. A seguir, adormecera numa poltrona e sonhara que fora ao encontro do poeta e que este o interpelara assim: "Tu, aqui em Weimar?.. Quê!... com o meu chambre... meu boné de dormir... e minhas chinelas, em plena rua?.. " Desde esse dia, o grande poeta acreditou noutra vida após a terrena.



            Oto Maria Carpeaux declara que o poeta "conheceu curandeiros e astrólogos, adquirindo os vastos conhecimentos do ocultismo que aparecerão, aí e ali, na primeira parte do Fausto". Foi na juventude, quando certa vez esteve seriamente doente, que o poeta adquiriu as primeiras instruções sobre o Ocultismo, e isto através do seu próprio médico, profundo conhecedor das obras ocultistas.



            Não iremos adiante sem primeiro fizermos notar a admiração de Goethe pelo Brasil. Como que sentindo o missionarismo futuro de nossa Pátria, o poeta, em 1822, escrevia a Schultz: "O Brasil, esse continente imenso, desvenda-se cada vez mais à minha inteligência". Conhecia a "História do Brasil" de Southey, mantendo conversações sobre esse novo mundo com diversos homens de ciência. Num estudo - "Goethe e o Brasil" - o Sr. Wolfgang Hoffmann-Harnish declara: "Chegaremos à conclusão de que a nenhum país, situado fora da Europa., dedicou Goethe tanto interesse". Como naturalista, foi genial precursor do evolucionismo de Darwin. Martius, o gigante basilar da "Flora Brasiliensis", foi prendado, no seu livro de recordações, com o notável pensamento de Goethe: "Que significa isto: aprofundar a Natureza? - Encontrar Deus tanto no exterior como no íntimo."

            O Dr. Edm. Dupouy, autor de várias obras médicas, -no seu livro - "L’Au-delà de Ia Vie" -, inclui Goethe entre os poetas intuitivos, fazendo dele e de sua principal obra - "Fausto", um estudo sob o ponto de vista que desejamos. Por isso, encetemos a tradução que vai abaixo (2):

            (2) Baseados em outras traduções de Fausto, além da de Suzanne Paquelin de que se serviu Dupouy, buscámos dar melhor forma a alguns pontos, ampliando outros. - N. do T.

            É com razão que se tem considerado Goethe como um dos maiores escritores da Alemanha. Logo após haver terminado seus estudos de Direito, doutorou-se pela Universidade francesa de Estrasburgo. Estudou em seguida as ciências naturais, mas acabou por aplicar-se totalmente à literatura. É em seu drama "Fausto" que vamos encontrar suas ideias intuitivas dos Espíritos, da vida futura, do eterno devenir do Ocultismo.

            Foi em 1790 que fez aparecer um fragmento da primeira parte de sua obra capital (3).

            (3) Goethe começou a escrever o Fausto pouco depois de 1770 e terminou-o em 1831, um ano antes do seu decesso. - N. do T.


            O Fausto não é aquele que as adaptações francesas nos têm apresentado. É um Fausto real, tendo por origem um taumaturgo célebre do século XV, João Fausto (4), mágico e necromante, que veio a ser legendariamente um herói de aventuras maravilhosas. Goethe fez dessa personagem uma dupla encarnação: de velho sábio na pesquisa da verdade absoluta que sempre pareceu escapar-lhe, deixando estéreis seus esforços, e o homem ávido, mesmo na sua velhice, de todas as voluptuosidades humanas.

            (4) Outros creem que tenha sido outro mágico, por nome Jorge Fausto. - N. do T.

            Por muito tempo houve luta entre o cepticismo doutoral de Fausto e as afirmações de sua consciência; finalmente, contudo, ele cede às seduções e vende sua alma ao tentador infernal (5), que ainda vivia na imaginação dos povos.

            (5) Mefistófeles. - N. do T.

            Em sua obra filosófica, Goethe pode, em certas passagens, manifestar seus sentimentos pessoais, suas desilusões, não sob a forma de uma doutrina panteísta, mas num idealismo ao qual imprimia a realidade da vida.

            Dramatizando a lenda, ele soube dar-lhe existência própria, através de exposições profundas sobre o saber humano, indo até à intuição dos fenômenos psíquicos, inspirado talvez pelo conhecimento dos aforismas de Guilherme Maxwell, o filósofo do século XVII.

            Tratemos, entretanto, da análise de alguns dos principais trechos do poema, principiais sob o nosso ponto de vista:

            A Dedicatória é um belo e radioso voo poético, na qual o poeta manifesta já suas convicções espiritualistas. Rememora os dias passados e fala aos manes dos entes que, aos poucos, se encaminhavam para além da tumba, enquanto procedia ele à feitura da obra:

            Aproximai-vos de novo, formas flutuantes que tanto amei na clara manhã da minha vida."  

            "Poder-vos-ei fixar?.. Tenho inda coração
            "capaz de se render à vossa sedução?
            "Chegam ... que densa turba! Envolvem-me... Não
                                                                                         [posso

            “furtar-me ao seu triunfo. Eis-me, Visões, sou vosso.”

            ......................................................................
            "Caras sombras! sois vós? aéreas como em sonhos,?"
            .......................................................................
            "E um ardor, há muito tempo descorado,
            arrasta-me para este silencioso e grave reino
            dos Espíritos.

            ........................................................................

            "O que foi, torna a ser. O que é, perde existência.
            "O palpável é nada. O nada assume essência."

            Vem a seguir o Prólogo no Teatro: o poeta afirma sua aversão para o vulgar que vive terra-a-terra, com seus apetites materiais, reminiscência do odi profanum vulgus (odeio gente comum) de Horácio, porque deseja permanecer como um aristocrata da inteligência, em razão de seus conhecimentos esotéricos das filosofias.

            Tornamos a encontrar em o Prólogo no Céu a mesma imaginação dirigida para o misticismo, descendo porém, às vezes, do empíreo às regiões onde não mais se, percebe a música celeste nem a música das esferas de Pitágoras...     

            Mefistófeles, que zomba das obras da Criação e da pobre criatura humana, consegue do Senhor permissão para tentar Fausto. Em certo momento, ouve-se o Senhor dizer:

            "O homem cansa depressa; e quando cansa
            "nada mais quer fazer. Em razão disso
            "é que eu houve por bem dar-lhe estes sócios (6)
            "que o despertam, ativam; potestades
           "criadoras até!"

            (6) Sócios, são os Espíritos trevosos como Mefistófeles. - N. do T.

            Dirigindo-se aos eleitos do Céu, diz o Senhor:

            "Alegrai-vos nesta mansão de belezas e perenais delícias, que o Devenir que eternamente age e vive vos enlace com vínculos de amor indissolúveis. "

            O "eterno devenir" salta a cada instante da pena de Goethe, como reflexo da filosofia hegeliana - evolução perpétua de geração e de morte.

            A primeira parte da tragédia - Noite, mostra-nos Fausto entregue a um monólogo, como o fazem os doutos filósofos, quando chega a idade das desilusões.

            Figuremo-lo numa estreita câmara gótica, de ogivas altas, no meio da noite alta, escandindo versos nos quais ele parece resignar-se ao negativismo da vida, deplorando não poder possuir a verdade, a razão última das coisas (7). É o motivo pelo qual ele aí chega a declarar suas tendências para as ciências ocultas:

            (7) Os profundos estudos de 'Filosofia, Direito, Medicina e até de Teologia não lhe trazem a felicidade ansiada - N. do T.

            "Só falta recorrer às artes da magia.
            "No Espírito há poder; na voz cabe energia,
            "que a transforma em comando. Então, consociada
            "a palavra ao querer, talvez lhe seja dada
            "força para arrancar com soberano império
            "à natureza avara o íntimo mistério.
            "Se o chego a conseguir... que júbilo! que dita!"
            .........................................................................
           
            "Ser-me-á fácil dizer o vínculo profundo
            "que uniu partes sem conto, e fez do todo um mundo;
            "ver a força motriz de tanto movimento,
            "e consignar-lhe a causa. Ah! desde esse momento
            "em que o cerrado enigma alfim (afinal, enfim) me for notório,
            "foi-se o torpe chatim (tratante) de estulto palavrório."

            Fausto, voltando os olhos para o céu, fixa Febe imóvel, que banha seus livros e seus papéis, e pronuncia estas palavras, cheias do mais puro lirismo:

                        "Oh! pudesse ao menos errar na tua doce luz, por sobre os cumes apartados, revoar com os Espíritos em torno das grutas das serranias e, ao crepúsculo teu, vagar   nos prados. Quem me dera, liberto enfim das fumaças da ciência, banhar-me sarado em     teu rocio (orvalho)!"

            Que antítese entre essas aspirações e tudo isto que efetivamente o cerca: livros, papéis denegridos, esqueletos, bocais, aparelhos alquímicos, etc.

            Fausto vai saindo, buscando fugir dessa câmara que mais lhe parece um calabouço. Porém, para: retrograda lentamente, confabula consigo mesmo sobre as carquilharias (?) que o rodeiam e do íntimo lhe chega a resposta aos seus anseios:

            "Foge, eia, foge pela vasta terra!
            "E este livro de mistérios cheio,
            "da própria mão de Nostradamus escrito
            "não te será bastante companhia?"

            "Entenderás, então, o curso dos astros, e,
            se mestra te for a Natureza, sentirás desabrochar
            em ti a força da alma, e saberás como um
            Espírito fala a outro Espírito."
            .......................................

            "Espíritos, vós que junto a mim flutuais,
            respondei se me estais ouvindo."

            Fausto abre o livro de Nostradamus; grande alegria invade-lhe a alma. Em certo momento, exclama:

            " ... Agora, agora entendo
            "a sentença do sábio:
            "- "O mundo espiritual
            "a ninguém é vedado. O porquê o julgas tal
            "é por teres o senso obtuso, e o coração
            "defunto. Rompe a inércia! Expulsa a indecisão,
            "discípulo covarde, e engolfa-te brioso
            "no arrebol que entrevês."

            Invoca Fausto o Espírito da Terra e entre eles entabula-se uma conversação, como se fosse numa sessão espírita:

ESPÍRITO
Quem me chama?
FAUSTO
Horrendo aspecto!
ESPÍRITO
Pois me evocaste
da minha esfera,
eis-me ...
ESPÍRITO
Olha-me! Espera!
Já que almejaste
por ver-me e ouvir-me,
pode falar!
Olha-me firme
sem titubear!
Aos teus conjuros
obedeci.
Bem! Que me queres?
 ................................

Mais adiante, o Espírito faz-nos pensar na reencarnação, ao dizer:

Neste mar
neste mar tempestuoso
do viver e do atuar,
subo, desço, não repouso,
vou e venho sem cessar
neste mar.
Morredouras vidas,
mortes renascidas
em fogosas lidas,
sem jamais parar...
................................................

E contudo o fatal desespero volta a apossar-se de Fausto. Na luta consigo mesmo, ele se auto--sugestiona diante de certo licor cinzento, veneno libertador no qual seus olhos vêm fixar.

"Em ti - diz ele à âmbula que encerra o veneno -, conjunto dos divinos sucos do sono,
extrato de todas as forças sutis que dão a morte, em ti honro o espírito e a arte do homem."

            É na taça de puro cristal, herança de seus pais e que outrora se esvaziava girando de conviva a conviva", transbordantes de alegria, que Fausto se prepara para verter o mortal eletuário (Medicamento de consistência mole). Entremostrando o novo mundo que aos seus olhos se depararia, diz com solenidade:

            "Aurora do grão dia!
            "Com este tetro misto alfim te brindarei!"

            Mas, no momento em que ele vai aproximar a taça dos lábios, os sinos soam festivamente anunciando a festa da Ressurreição. Eles acompanham o Coro dos anjos. É então que a lembrança de sua feliz infância vem impressionar poeticamente o seu espírito. Esta cena é esplêndida pela profundeza das ideias e pelo encanto que exerce no coração.

            O quadro seguinte - Diante das portas da cidade - apresenta Fausto, médico, no meio do povo que aclama sua ciência que tantos doentes pobres salvou de terrível epidemia. Ele, porém, recusa todas as provas de reconhecimento que lhe oferecem, porque duvida de sua ciência e porque não pode desprender-se de seu cepticismo.

            Com seu criado Wagner, Fausto passeia, aproveitando aquele belo dia de Sol. Num momento de encantamento, expande os anseios que lhe moram na alma, dizendo:

"Nas sedes do infinito, ó alma, em vão te abrasas:
"prende-te ao solo o corpo, o corpo não tem asas ...
"não tem, não pode ter. Mas todos, por instinto,
"já sentiram por certo o mesmo que em mim sinto:
"cobiças de transpor, anseias de subir."

            A seguir, o doutor, vendo os pássaros que livremente voam, interroga, melancolicamente:

            "quem não tem inveja a sorte àqueles voadores?"

            Torna-se necessário ler ainda a cena admirável em que Fausto aspira à vida futura que ele entrevê cheia de grandezas poéticas.

            As alegrias do estudo, no silêncio do gabinete de trabalho, não lhe dizem mais nada; somente a vida espiritual o preocupa.

            Ai de mim! - exclama ele:

            "Duas almas habitam no meu seio, duas; forcejam ambas por separar-se: uma delas, voluptuosa, num ávido amor pela vida, demora no mundo por seus órgãos agrilhoada; a outra, insofrida, desdenhando este mundo, este pó, quer remontar imperiosamente dos restos mortais em busca das altas moradas em que nossos ancestrais habitam. Oh! se no vasto ar há Espíritos que, vagando entre o céu e a Terra, regem o espaço, eia! descendei presto desse dourado ambiente e conduzi-me numa nova, vária vida."

            Sua crença no mundo do Além é completa e de tal forma absoluta, que ele termina afirmando não trocaria por um manto de rei o manto que o transportasse ao mundo dos Espíritos:

            "Dessem-me uma capa
            "de tal condão, que, em me embarcando nela,
            "me visse por encanto em longes terras...
            "não a trocava por nenhumas galas,
            "nem por manto de rei."

            Fausto volta para casa e, no gabinete de estudo, vai traduzir o Evangelho de João. Logo se lhe depara a palavra logos, ele para e diz:
             
            "No princípio era o verbo", vejo escrito.
            "E aqui já tropeço! Quem me ajuda?
            "Tão alto sublimar não posso o verbo,
            "Devo doutra maneira traduzi-lo.
            "Escrito está, se o Espírito m'inspira,
            "Que no princípio era o Pensamento.
            "Medita bem sobre a primeira linha.,
            "Apressada não seja a pena tua;
            "Anima, cria tudo o pensamento?
            "Devera estar - era ao princípio a Força.
            "No momento porém em que isto escrevo
            "Diz-me uma voz que aqui não pare. Inspira-me
            "afinal o Espírito. Alvitre,
            "solução enfim achei: satisfeito
            "No princípio era a Ação escrever devo."

            Os capítulos no Gabinete de estudo se seguem. Em certas passagens a poesia flui com toda a pujança. Assiste-se agora a uma cena de bruxaria da Idade Medieval. A uma pergunta de Fausto, Mefistófeles responde por uma simples frase que encerra grandes verdades:

            "Quem eu sou? Parte da força,
            "que, empenhada no mal, o bem promove."

            Mais adiante, Mefistófeles formula suas proposições, nestes termos:

            "Eu me consagrarei a teu serviço e, a um sinal teu, agirei sem trégua, sem repouso. Quando nós nos encontrarmos no Além, tu me pagarás por igual."

            Mas, no momento, Fausto não se preocupa com o Além. Sua resolução é tomada. Faz ouvir suas maldições sobre os prazeres terrestres, sobre as satisfações dos sentidos, o amor, o poder, a fortuna, a esperança e a fé. E somente a morte tem para ele o atrativo consolador...

            Em pouco tempo, entretanto, a sedução acabará pela conclusão do pacto infernal. Fausto, libertado da sede do saber, consagrar-se-á exclusivamente ao delírio dos sentidos, às paixões ardentes, a todas as voluptuosidades, se ele puder readquirir a juventude.

            A Cozinha da bruxa - A descrição que, faz Goethe, lembra as ervas, malfazejas de Medeia, as propriedades mágicas dos filtros dos feiticeiros das Esquílias, as caldeiras sabáticas dos demonólatras da Idade Média; e é com ingredientes dessa natureza que será preparada a beberagem que deve transmitir a Fausto a juventude que ele deseja sobre a Terra, mas que fatalmente o conduzirá à Noite de Valpurga (era  celebrada na noite de 30 de Abril para 1 de Maio em toda a Europa medieval como dia das bruxas), e ao Cárcere de Margarida. (Santa Margarida teria sido visitada no cárcere por satanás, em forma de um dragão que a engoliu. s Margarida conseguiu sair do seu ventre, firmando contra ele o crucifixo que trazia nas mãos)

            Fausto, rejuvenescido, mata o irmão de Margarida, sua amada. Por circunstâncias que aqui não interessa expor, Margarida jaz numa prisão, semi-demente...

            O jovem doutor anseia pela ver, mas Mefistófeles o adverte:

            "E o perigo a que te expões? Sabes que naquela cidade cometeste um crime de morte.
Sobre o sepulcro da vítima pairam Espíritos vingadores, que espreitam o regresso do assassino."

            A segunda parte do Fausto continua, plena de belezas e de profundos ensinamentos.

            Pararemos, porém, aqui o, estudo sobre a obra de Goethe. Dissemos o bastante para compreender que o grande poeta da Alemanha fora um sensitivo, um individuo possuidor do dom da mediunidade, como todos os poetas e artistas, tomados de paixão pelo ideal e tocados pela intuição do Além. Se faltasse alguma prova em torno da ficção, ser-nos-ia suficiente lembrar que um dia, passeando com seu amigo Eckermann, nos bosques de Weimar, Goethe citou, à vista do Sol que se punha, a sentença de um antigo filósofo, comentando-a: "Ainda que mesmo ele desapareça, será sempre o mesmo Sol... Quando se tem sessenta e cinco anos, não mais se pode pensar em morte. Este pensamento me deixa em perfeita calma, pois eu tenho a mesma convicção de que nosso Espírito é uma essência de natureza absolutamente indestrutível; ele continua a agir de eternidade a eternidade. É como
o Sol que não desaparece senão para o nosso corpo mortal; em realidade, jamais desaparece, e em sua marcha ilumina sempre." Aqui termina o estudo de Dupouy.

            O Barão M. Henri Blaze realizou uma das mais afamadas traduções de Fausto. Na introdução de sua obra, em que o lúcido tradutor faz extenso estudo sobre a pessoa e a obra de Goethe, à pág. 72 e seguinte da 9ª edição (1861), época em que o Espiritismo alvorecia em terras de França, declarava ele: "O sopro de Goethe nos põe visíveis essas miríades de inteligências etéreas que povoam o infinito, e o olhar se alevanta até ao triângulo misterioso, ao longo de um caminho radioso onde brilham e rutilam, dispostas em ordem e por gradações, todos os topázios, todas as claridades, todos os esplendores da glória de Deus; imaginação sublime, verdadeira teoria dos anjos, inspirada outrora a Filon pelo símbolo da Escada de Jacob, e que Goethe toma à escola de Alexandria. O éter está cheio de habitantes; ainda que os não possamos perceber com os sentidos, estes seres misteriosos, quem os põe em dúvida? Nossa alma, ela também, é invisível. O ar é a fonte de toda a vida: porque então não será ele habitado? Assim como uma cidade imensa é povoada, o espaço tem suas miríades de habitantes; as almas, inumeráveis como as estrelas, são seus hóspedes eternos. Entre estas almas, há aquelas que caem e se deixam enclausurar nos corpos perecíveis: são elas, as que flutuam na vizinhança da Terra e que as seduções da carne atraem. Após haver completado um certo período, elas se separam de seus corpos e remontam à sua pátria primeira.

            Mas, frequentemente sucede que a estada que fizeram no mundo, nelas despertou os desejos ímpios e o gosto dos hábitos terrestres, de forma que essas almas não tardam a cair de novo.

            As outras, ao contrário, penetradas da negação da existência, e sempre se sentindo no seu corpo como numa prisão, num túmulo, deixam-no sem regressar, alçando-se num voo ligeiro pelo éter, e vivem eternamente nas alturas bem-aventuradas. Acima dessas almas, outras há, cada vez mais puras, gloriosas, inspiradas do sopro divino. Formam também estas a milícia do Todo-Poderoso, e são, por assim dizer, os ouvidos do grande Rei, porque tudo veem, tudo ouvem. Os filósofos lhes chamam demônios, e a Escritura, arcanjos."

            Citaremos agora alguns excertos do genial poeta: 

            "Em assuntos religiosos, econômicos e políticos, produzi e sorri, por não me atemorizar ao manifestar francamente os meus sentimentos.

            "Creio em Deus e na Natureza e no triunfo do justo sobre o mau. Porém isto não lhes bastava."

*

            "Nenhum ser pode sair do nada: O Eterno se agita em tudo. Tu és; sê feliz com esta ideia. O ser é eterno porque certas leis conservam os tesouros de vida de que se orna o Universo."

*

            "Conhecemos gânglios, vértebras, e nada sabemos do ser do cérebro; que queremos nós então saber de Deus?"

*

            “Ah! se conhecêssemos nosso cérebro, suas relações com Urano (8), os mil fios que aí se entrecruzam, e sobre os quais o pensamento corre aqui e acolá!"

            (8) Refere-se, certamente, à divindade mitológica, personificação do céu. Se non é vero... - N. do T.

*

            "O homem se julga sempre mais do que ele é, e se valoriza menos do que ele vale."

*

            "Liberdade não é outra coisa senão a possibilidade de, entre muitas circunstâncias, fazermos o que é racional."

*

            "O homem é a primeira relação da natureza com Deus. Não duvido que essa relação deva continuar-se, sobre outro planeta, mais sublime, mais profunda, mais inteligível."

*

            "Ao homem de ação o que interessa é agir bem; se dá certo ou não, não vem ao caso."

*
            "Meninos, amai-vos uns aos outros, mas se isso não for possível, suportai-vos, ao menos, uns aos outros. "

*

            "Continuamos a agir até o momento em que, novamente chamados pelo Espírito do mundo, mais cedo ou mais tarde, volveremos para o éter; possa então o Ser eterno não nos recusar faculdades novas, análogas àqueles de que agora nos utilizamos... "

*

            "O obscurantismo, a bem dizer, não consiste em impedir que se propague o que é verdadeiro, claro e útil, mas no por em circulação o que é falso. "

*

            "Desde que se parta do princípio de que a ciência e a fé não existem para se destruírem, e sim para se completarem, chega-se em toda parte ao conhecimento da verdade."

*

            "Não adianta censurar o mesquinho: permanecerá sempre igual a si mesmo. "

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            Em 1832 fecha Goethe os olhos ao mundo. À porta de entrada do vestíbulo de sua casa são afixados os seguintes versos do poeta de Licht! Mehr Licht!, extraídos de Hermann e Doroteia:

......... ... O quadro impressionante da morte            
Não significa horror para o sábio nem o fim para
[o crente;
Aquele impele a que volte, de novo, à vida,
Animando-o, para que prossiga em suas ocupações.
A este outro, na angústia, revigora a chama da esperança
                        [do bem, numa vida futura.
Para ambos transformarem a morte em motivo de vida ... (9)

- (9) Tradução do Prof. Pedro de Almeida Moura.