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quarta-feira, 30 de setembro de 2020

Credo Filosófico


Credo Filosófico por Emmanuel Darcey

Livraria Clássica Editora de A.M. Teixeira

Lisboa - 1919          Tradução e anotaçõ  : Arantes Pereira F º

 Nascer, morrer, renascer ainda, progredir sempre: tal é a Lei.

             Profissão de Fé

             Aos que me lerem:

            O homem relativo, finito e limitado como é, não pode alcançar tudo.

            Eu creio que os nossos destinos não estão limitados a este plano, átomo da Criação, mas sim que se estendem continuamente pelos páramos infinitos do Universo.

            Creio na evolução integral do ser e da vida no Universo.

            Creio na salvação de tudo que vive e de tudo que respira.

            Creio na pluralidade dos mundos e das existências; na ascensão universal dos seres e no progresso continuo da alma; nas suas arremetidas e nas suas paragens, com as suas crises e com as sanções que daí dimanam.

            Enfim, creio em Deus.

            E como assim creio desejaria também que os outros cressem.

            A leitura destas páginas singelas e sem estilo outro fim não tem que levar a Luz aos lares onde Ela ainda não brilha.

Emmanuel Darcey.

CREDO FILOSÓFICO

             Neste plano em que nos encontramos acidentalmente e a que por convencionalismo chamamos mundo, não nos é possível distinguir a sua forma, o seu fim, o seu início nem a sua posição. Não distinguimos a luz, além do nosso berço, nem além do tumulo. A noite circunda-nos e inunda-nos, infiltrando-se em nós mesmos. A criatura humana encontra-se em um estado de completa ignorância.

             A Terra é um mundo imperfeito, isto é, limitado, no qual não observamos senão os efeitos; as causas, essas encontram-se escondidas, cobertas com o véu de Isis, que o homem, no seu progresso continuo irá erguendo lentamente. É-nos vedado abraçar o Infinito; já nos basta a possibilidade que temos de chegar ao limiar do mistério, deixando-nos antever a claridade brilhante, que reina nesse Plano Harmônico em que se baralham todos os destinos e onde podemos já distinguir que é ali o reino da Justiça e da Verdade Supremas.

 *

             Além da inteligência humana, dos esforços da ciência e da razão; além dos dogmas oficiais e dos cultos estabelecidos, gravitam duas grandes ideias que são o fundo comum da intuição e da consciência: Existência de um ser supremo, príncipe e governador da Vida; perpetuidade da consciência individual, isto é, em palavras explícitas e nítidas, a ressurreição ou continuidade do ser.

             Simples, como tudo quanto é verdadeiro e grande, estas duas verdades fundamentais da vida, que paradoxalmente são elementares e profundas, afirmam-se por si próprias.

 *

             Aqueles que nos dizem que no mundo não existem nem a Verdade, nem Ordem, nem Providência; que o mundo é composto por fenômenos sucessivos, posto em jogo pelo acaso, iludem-se e iludem-nos. Estudam mal e não reparam ou, então, se reparam não põem em jogo senão uma leve observação, meramente automática. Tudo se realiza, porém, ao contrário, segundo leis imperiosas e imutáveis. Na vida e nas pessoas existe uma harmonia indefinível, e a vida é o mais rigoroso dos silogismos para aqueles que Sabem distinguir- as premissas e esperar pacientemente a sua conclusão.

 *

             O Universo não é surdo nem cego. O desenvolvimento da vida está protegido em toda a parte pela Providência inteligente que, tanto concede ao indivíduo a liberdade dos seus movimentos e o mérito dos seus esforços como salvaguarda à Ordem Universal. A vida não é um labirinto emaranhado, confuso, intrincado, um caos informe, nem tão pouco uma dolorosa mistificação. O mundo não tem por Causa o acaso, pois que o acaso sendo cego, como pretendem os materialistas, não tem aptidões necessárias para realizar uma obra tão vasta que confunde a razão humana.

             O seu Autor, foi uma Inteligência Superior; foi Ela que estabeleceu e coordenou todas as leis que nos regem, cujas leis a nossa própria inteligência vai constatando e seguindo na sua execução, passo a passo, e a capacidade constante e relativa da sua realização progressiva. Este sistema tão vasto que a nossa razão reencontra e reconstrói com esforço, é o fruto de uma Razão Poderosa; a concepção das suas leis, cuja simples descoberta coroa de louros e de uma glória imortal aquelas criaturas que nós, no nosso vocabulário chamamos gênios da humanidade, são filhas diletas de um Gênio Superior. E nós, então, na maioria, desconhecemos tamanha e tão fecunda Mentalidade! Os povos selvagens, que desconhecem os argumentos da filosofia e os fatos da ciência, mas que creem em uma Fonte Sobre humana, fazendo o seu juízo crítico das coisas que estão acima do poder humano, são bem mais lógicos e coerentes, bem mais racionais e inteligentes, apesar de selvagens, que os homens que se julgam formados à sua própria custa junto do altar da ciência.

             Que se lhe chame Deus, Jeová, Alá, Brama, conforme as línguas, as épocas e os lugares, pouco importa ao caso, já que nada pode influir na evidência da demonstração de um Criador, de uma Razão primitiva, de uma Causa consciente para todos os efeitos, visto que é essa demonstração uma verdade imutável e que é necessário admitir-se como se admite o infinito do tempo e do espaço. Sem essa crença em Deus é incompreensível este mundo. Negar Deus é o mesmo que negar a existência do Universo e da razão humana; -é negar a sua própria existência. Uma fatalidade cega não podia produzir seres capazes de conceber e de raciocinar. O homem pensa; portanto Deus existe.

 *

             Existe no homem um princípio inteligente, indestrutível, que lhe conserva a sua individualidade depois da morte. É tão impossível destruir a personalidade humana, como aniquilar um átomo da matéria. O nada é uma palavra vã; nada cessa de ser. A morte não é um fim; é apenas uma transformação, uma metamorfose necessária: um renovamento. Somos eternos pela base do nosso ser; temos para sempre a vida. Seremos porque somos.

             O aniquilamento não existe; apenas se sucedem diferentes estados, uns após outros: a eterna transmissão de uma ordem de coisas sucedendo-se a outra; de uma economia a outra; de uma necessidade a outra. Tudo, na sua hora própria, atinge o seu melhoramento e aperfeiçoamento que só consegue pelo seu trabalho próprio e incessante. O túmulo não é o termo da marcha do homem na eternidade. Os mortos voltam; os VIVOS passaram já pela morte. Os que vêm para a vida, assim como os que a deixam, vêm e vão continuar a sua missão, na qual colherão, respectivamente, o que semearam. O nascimento não representa um princípio; nascer não é começar; mas sim mudar de fisionomia. As nossas vidas nada mais são que continuações permanentes e necessárias, isto é, meras consequências para o nosso bem. O nascimento e a morte não são opostos: sono e sonho, morte e nascimento é tudo a mesma coisa: - uma transição semelhante, um acidente previsto.

 *          

            Desaparecemos dos nossos parentes, quando morremos, por um mero efeito de ótica. O homem não é uma sombra, um vapor que se dissipa no ar; a forma humana não é senão uma crisálida do que será. Os nossos mortos não morreram: vivem, estão conosco, ao nosso lado, nos nossos combates, participando das nossas alegrias e dos nossos pesares. O éter não está morto nem estéril. A atmosfera não está vazia; o ar, como o oceano, é habitado. Seres habitam o ar, sem sombras nem silhuetas; escondem-se na luz, escapando aos nossos olhos. E estas almas, sempre vivas e agindo constantemente, que trazem consigo o resultado do seu passado intelectual e moral, o seu céu e o seu inferno, estão submetidas, como nós, aos efeitos das forças inflexíveis da Natureza, aguardando constantemente a hora do seu regresso ou da sua ascensão, que lhe é determinada segundo os seus progressos e méritos.

*

             Existem dois mundos: o ponderável e o imponderável; o mundo dos corpos e o dos espíritos, ou mundo invisível que se estende pelo espaço, entre o qual vivemos sem por ele darmos fé. Os espíritos não são seres abstratos, vagos, indefinidos; mas sim seres concretos, não lhes faltando senão a visibilidade dos humanos, ou melhor, tão transparentes que escapam à grosseria do nosso centro ocular. O seu invólucro fluídico, correlativo ao seu grau de adiantamento e de perfeição, torna-os distintos uns dos outros, como no nosso plano se dá com o nosso corpo. O fluido universal estabelece-lhes uma comunicação constante: é o veículo da transmissão do pensamento, como o ar o é do som.

             A morte não é um aniquilamento, já o dissemos, nem tão pouco é uma transformação que concede à alma toda a perfeição, pondo-a, subitamente, de posse de toda a Verdade; as suas concepções, os seus prejuízos, os seus erros e as suas paixões continuarão existindo, numa constante relação com o grau do seu adiantamento, pois que tudo na natureza, quer visível quer invisível, é relativo. O homem não pode deter-se na sua marcha, repentinamente sem a sua participação em todos os seus efeitos, seja para estacionar, seja para se aperfeiçoar por completo. O progresso do Espírito não se realiza senão com o auxílio do grande fator do tempo, tanto na vida do espaço, como na corporal. É apenas sucessivamente que ele se vai depurando das suas imperfeições, recebendo conhecimentos novos que lhe faltaram. O estado espiritual e o estado corporal são para o Espírito duas espécies de progresso, solidárias uma com a outra. Em toda a parte ele encontra um campo de ação para a sua inteligência e faculdades, para que possa tomar parte, também, na obra continua do Supremo Arquiteto.

             Os “imponderáveis” representam um papel importante no mundo moral e, até certo ponto, no próprio mundo físico. Exercem uma influência sobre nós pelas ideias que nos sugerem e lutam constantemente para se tornarem os mentores da nossa inteligência. As correntes de inspiração; muitas vezes contrárias, que reinam nesta terra, perto dos homens, não têm outra causa, e muitos dos conhecimentos que desviam as nossas previsões, são devidos à influência dos mortos sobre os vivos. Esta ação do mundo invisível sobre o mundo visível, e reciprocamente, encarada como absurda e impossível, é uma lei tão exata e rigorosa, como as leis do movimento e da atração, necessárias à harmonia universal.

 *

             Quando abandonamos esta vida, não nos encontramos logo em um estado definitivo. Não quer Isto dizer que nos seja recusado um bem melhor estado ao que se ocupa neste planeta, enquanto vivo; mas por uma única prova não podemos ser julgados. Nada se conclui neste plano. Nenhuma inteligência criada pode ter aprendido o suficiente para prescindir de aprender mais. Todo o ser tem que chegar ao seu fim no sistema da Natureza. Deus, na Sua infinita Bondade, lançou nos nossos corações uma força motriz para que possamos seguir avante: - a paixão do melhor. A mesma força que nos faz ser, obriga-nos a seguir além. Viver é começar a ser e começar a ser é aspirar. Deus não impôs uma Lei para que deixasse de ser cumprida e, enquanto que um ser humano tenha alguma coisa a cumprir, isto e, a realizar um progresso, alguma coisa lhe falta ainda. Necessário é, portanto, que o realize.

             Não devemos encarar a morte, senão como um transbordo na nossa viagem. A morte é uma encruzilhada de vias que partem em todas as direções do universo e sobre a qual continuamos o cumprimento do nosso destino infinito. A mobilidade é a nossa lei; não existe um repouso definitivo. O ser finito por oposição com o ser infinito, encontra-se perpetuamente submetido a uma lei progressiva. O momento presente resulta do precedente e o seguinte deduzir-se-á do presente. O céu não é uma morada: mas sim um caminho. “O Paraíso é o infinito dos mundos”.

 *

             Tudo morre para renascer; tudo evolui tendendo sempre para um estado superior. Na Natureza tudo obedece à lei da mutação; tudo se transforma e se aperfeiçoa; tudo se prolonga e se renova. O homem avança e progride sempre. Vivos ou mortos, aqui ou além, temos sempre sobre a nossa fronte o dever de nos aperfeiçoarmos. A morte e a vida sucedem-se sempre num turbilhão perpétuo e o homem tem por essencial obrigação atravessar a criação.

             O nosso minúsculo globo não foi escolhido como única residência da vida. A Terra não é o corpo central mais importante do Universo, nem tão pouco a vida presente é o único teatro das nossas lutas e dos nossos progressos. O início da Terra não representa o início do mundo, nem também o seu fim quer dizer que seja o fim de tudo. O Universo não tem lacunas. A solidão e o vácuo não existem em parte alguma. A Humanidade terrestre não passa dum mero povoado do Universo. Neste mundo infinito existem mundos infinitos, e um mundo representa uma ponte de condução a outro: em toda a parte palpita a vida universal. Ao contrário do que se supõe: a criação é eterna e o trabalho de Deus é constante. Constantemente se organizam novos globos, aparecem novos seres, formam-se novas consciência e desabrocham almas novas. Deus, como Deus, não podia estar nunca inativo.

 *

             O homem é uma alma encarnada, e esta uma concepção divina. A alma vem de Deus, mas é necessário ter-se em conta que não é dessa Fonte que ela chega pela ocasião do nascimento. Ela não é criada no mesmo momento que o corpo, visto que ele não suporta mais que uma incorporação. Deus não criou almas selvagens, nem civilizadas; todas elas evoluem da mesma maneira desde a sua base. Por ocasião da criação nada existe em estados superiores: “Todos nós somos lançados na mesma balança e pesados com os mesmos pesos”, Tanto a desigualdade moral como a intelectual não se explicam senão por um rosário, mais ou menos longo de existências anteriores e por uma marcha mais ou menos ativa para a perfectibilidade. Desde o berço é que o ser manifesta os seus bons ou maus instintos, os quais ele conserva ainda desde a sua existência precedente. Tudo quanto de mau se nota no homem, não representa obra da Providencia, mas unicamente dele próprio: eis, portanto, o seu verdadeiro pecado original (1).

             (1) O pecado original não passa de uma figura simbólica, assim como as personalidades de Adão e Eva. As crenças vulgares a tal respeito procedem de se ler estas frases do Velho Testamento apenas segundo a letra; encaradas, porém, segundo a sua essência espiritual, a verdadeira, isto é, como devemos encarar todos os ensinamentos do Velho e Novo Testamentos, vê-se que o pecado original é simplesmente uma figura de todas as misérias morais da humanidade. (Nota do tradutor).

                 Criada simples e ignorante, mas capaz de aprender, apta para progredir e, em virtude do seu livre arbítrio, suscetível de enveredar por um bom ou mau caminho, a alma humana é unicamente o resultado do trabalho da vida.

                Apesar das várias línguas, crenças e costumes, todos os homens são cidadãos da mesma Pátria, membros da mesma Família e ramos da mesma Árvore; todos tem a mesma origem, o mesmo destino e urna aspiração comum; todos iniciaram a ascensão, embora alguns tenham subido mais que outros. Entre eles não existe senão a diferença de progresso, como nas escolas dos nossos países existem as classes e turmas.

             Em absoluto não existe arbitrariedade nem abandono. Anjos e demônios (1), não existem no sentido vulgar; apenas existem espíritos superiores ou inferiores. Não existem também criaturas que tenham sido deserdadas, nem tão pouco que fossem lançadas eternamente ao mal e ao sofrimento. Jamais o clarão divino deixou de iluminar a alma humana. “A alva, esta clareza que se jaz na noite, também se fará na alma do escravo, do negro. Os mais vis tem por lei respeitar os superiores”.

             (1) Estes dois qualificativos empregaram-se nos antigos ramos do espiritualismo para que as inteligências rudimentares mais facilmente pudessem assimilar estas duas categorias de espíritos - os bons e os maus. Hoje, são impróprios do nosso século; só o fanático intolerante os pode admitir. (Nota do tradutor).

 *

             O Ideal não se encontra à primeira tentativa, mas após muito esforço. O homem não é um ser decaído e em vez de começar a sua carreira no vértice da escala donde se pretende que ele tenha saído, ele eleva-se progressivamente, porém submetido por toda a vida às transformações inerentes da sua natureza constitutiva. Se a primeira estação da vida fosse a perfeição, o homem não passaria de uma inexplicável anomalia em contradição evidente com os Leis da Natureza.

             O homem não é o que a sua fraqueza imagina. O homem terrestre não é o mestre da criação, nem tão pouco o último elo da cadeia que une a criatura ao Criador. Entre Deus e nós não existe um vácuo, um deserto. O espaço é povoado de uma hierarquia de seres mais perfeitos e poderosos que nós; o orgulho, porém, cega-nos. Não é em nós que o progresso atingiu o seu apogeu. Depois de Deus não somos nós os primeiros; pelo menos temos na nossa frente mais degraus a percorrer que sob os nossos pés. “A vida existe em toda a parte; a alma em todas as coisas. Todos os corpos escondem um Espírito. Não é só o homem que é seguido por uma sombra: - tudo, o próprio calhau miserável, tem uma sombra atrás e adiante: tudo é alma que vive, viveu e viverá”.

 *

             A harmonia do Universo resume-se em uma única lei: o progresso em tudo e para tudo, tanto para o animal como para o vegetal e mineral. Na natureza tudo está animado e espiritualizado; apenas nesta espiritualidade existem graduações. O ser inferior possui um embrião o que no superior se encontra já evoluído e em ação. Nada se perde nem se sacrifica; todas as tendências se confinam e todas as existências se elevam: tudo segue a mesma rotação, tudo vive da mesma maneira e morre utilmente. É na morte que a Vida possui os seus elementos. Ela justifica-se por uma serie continua de transformações infinitas; parte do infinitamente pequeno ao infinitamente grande. Com isto, Deus não se amesquinha, porque sob a lei universal do progresso, toda a vida manifestada se coordena e se encadeia. O princípio espiritual, que possui existência própria, não pode sofrer nenhum golpe.

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             Tudo quanto vive é encarnação, assim como evolução e transformação. As criaturas tanto progridem pela alma como pelo invólucro. A doutrina do transformismo é verdadeira, mas deve-se notar que essa Verdade se não reflete na reprodução pelos sexos, mas sim pela das reencarnações. Os corpos não subsistem senão por intervalos. Permanente na existência, mas temporária na forma material, a alma encarna-se segundo os limites inerentes ao seu grau de evolução. Os costumes sucessivos que ela assimila quando encarna, não passam de meras etapas na sua rota para o progresso. A alma tende sempre a aperfeiçoar-se, como a enfermidade tende a debelar-se. Tropeçando no mal, fixando-se no bem, caindo, levantando-se e gravitando em volta de formas mais perfeitas, de órgãos mais sutis e mais flexíveis, a alma fortifica-se, retempera-se, alarga as suas ideias, estende as suas faculdades, instrui-se, melhora e vê desenrolar-se ante si a vida em longo rosário de existências. “A cada um dos seus passos no progresso o véu do destino vai-se erguendo, descobrindo ante seus olhos a obra do Criador sob aspectos sempre novos em relação.”

             Existe uma ligação íntima e solidária entre a pluralidade dos mundos, verdade material, e a pluralidade das existências, verdade moral, únicas determinantes que podem explicar os problemas da origem da Vida e das anomalias aparentes que se apresentam na vida deste plano: estas duas verdades caminharam e caminham sempre juntas. A reencarnação, por vezes inadmitida pelo fraco juízo com que é encarada, é uma lei da Natureza, uma necessidade absoluta, uma consequência lógica da lei do progresso. Todo o homem forma um resumo de existências anteriores e compõe-se de numerosas personagens que se fundem, apenas, em uma única.

 *

             O gênero humano está submetido a uma longa e penosa educação. O progresso é lento e a nossa tarefa difícil. Na via competente e justa não podemos caminhar senão a passos lentos, não nos sendo possível nem percorre-la com rapidez nem tão pouco evita-la. Bem distante se encerra o termo da depuração e do aperfeiçoamento, a que o homem tem de atingir, para que o possa distinguir daqui. Nenhuma alma pode assimilar, em uma única existência, todas as qualidades morais e intelectuais que a devem conduzir ao fim (1). Ligam as nossas existências umas ás outras, todas as qualidades adquiridas que lenta e paulatinamente se vão desenvolvendo em nós, as quais representam o papel de fio de união entre elas.

             (1) Nada mais verdadeiro. Assim como uma criança de tenra idade enlouqueceria se se lhe ministrasse ensinamentos de alta anatomia, também o homem enlouqueceria, por certo, se de um golpe pudesse abranger a solução do grandioso problema que se esconde no Universo. Teria, pois, o homem, firmeza suficiente para encarar o brilho da luz que se irradia desse problema? Não nos fere a luz do sol quando tentamos fixa-lo de frente?  (Nota do tradutor),

             Portanto, para resgatar um erro no qual o homem viveu prudentemente, é necessária mais uma vida para adquirir esse resgate, ou seja, urna virtude que se lhe oponha. “É bem mais fácil observar-se os atos exteriores, que deixarmos que a reforma nos atinja moralmente”. Dificilmente nós nos desviamos das más influências; e pouca coisa existe que tanto nos custe como isso e a que sinta tanta relutância a nossa vontade. Nós não somos capazes de sofrer voluntariamente o que nos conduz além da nossa esfera e quantas vezes deixamos de avançar por simples comodismo ou desleixo.

             Só a nós nos parece longo o tempo; aos olhos de Deus ele não existe. Os nossos séculos nada formam na Eternidade. Todos os homens percorreram as fases já atravessadas pelo gênero humano na variedade dos seus caracteres modificáveis e das suas aptidões progressivas, padecendo as consequências das suas quedas ou alegrando-se com o resultado dos seus esforços.

             A vida terrestre não é para nós uma novidade, muito embora disso não tenhamos consciência. Fomos as gerações do passado e seremos as do futuro. Colhemos, seja a título coletivo, seja a título individual, o que semeamos; o que hoje semeamos colheremos quando nos desembaraçarmos das nossas rudezas terrestres, das nossas paixões orgulhosas e dos nossos interesses grosseiros que nos prendem â matéria, e, quando tivermos transposto os estreitos limites da vida deste mundo, ficamos, então, aptos para produzir mais, para mais sabermos e para mais amarmos o que se não comporta na nossa acanhada esfera material. Assim melhorados, embebidos em vibrações ativas voamos, então, para regiões melhores e mais elevadas onde encontraremos a compensação do nosso esforço, compensação essa que em nós se refletirá somente. 

*

             A vida não é um banquete, um jogo, uma ilusão, que se deve passar somente entre as fumaças dos gozos; é antes uma obra laboriosa, grande e santa, um combate permanente, uma luta continua e titânica entre o Bem e o Mal. A verdadeira filosofia não é aquela que multiplica os gozos e as necessidades fictícias. Tudo não é bem estar. O homem não conclui o seu destino na ocasião em que consegue fazer fortuna. A riqueza não é um fim. Os dias prósperos dificilmente são dias de virtudes. A felicidade como é interpretada não pode existir; é necessário que o esforço subsista neste mundo. Não estamos neste planeta para nos saciarmos de todas as satisfações físicas, mas sim para que nos empenhemos na luta, no trabalho e no combate. Para o desenvolvimento do Espírito é indispensável a luta e o fim do homem é atingir a perfectibilidade e esta, por sua parte, é filha dileta do esforço e do labor.

           Para a felicidade do mundo não contribuem as letras, as artes, o luxo, a indústria e a retórica. A civilização é, acima de tudo, um efeito moral; o culto do dever e a religião do coração estão ameaçados de ruína e desabam por completo mais tarde ou mais cedo, segundo o grau da sua relatividade, desde que não os caracterize uma absoluta e proba honestidade. O homem está condenado ao progresso e, por consequência, lógico é que ele caminhe; e o verdadeiro alvo da vida consiste no dever que incumbe a todo o ser humano de avançar sempre, custe o que custar, não se importando com os tojos (tipo de planta) nem com as pedras que, por certo, encontrará pelo caminho do seu percurso. Deve purificar-se, elevar-se de degrau em degrau, na escala espiritual; finalmente, cumpre-lhe submeter a matéria ao espírito e não deixar jamais que os fatores se invertam por um segundo sequer. 

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             Não se justifica o homem pela sua fé nem pela sua crença: nenhum valor tem estes sentimentos eloquentes se não tiverem por berço o coração e por mentor a razão. A Bondade é a base de todas as coisas humanas, e no plano em que ela repousa, nada a pode igualar. Todos os requintes do mundo, todos os talentos da Terra não valem um bom sentimento nem o menor ato de Caridade (1). A verdadeira fé, a fé fecunda, é aquela que abranda a nossa sede de prazeres, enfreiando as nossas concupiscências, arredando-nos, enfim, dos nossos arrebatamentos. A ciência por excelência é aquela que melhor nos pode conduzir, porque a fé também carece de ser científica para não atingir o surdo, quando cega e leiga.

             (1) S. Paulo, o apóstolo dos gentios, legou-nos tudo quanto de melhor existe sobre tão nobre sentimento, na sua magnífica 1ª Epístola dos Coríntios, cap. XIII. Nela demonstrou-nos ele que, sem a Caridade, os melhores dotas da humanidade nada valem e que se esvaem rapidamente como a neblina. (Nota do tradutor).

             A prática do bem é a lei superior e a condição “sine qua non” do nosso futuro. Nada poderemos ter para nós próprios senão com a condição de querermos para todos os nossos semelhantes, também. Aquele que se enrosca, qual serpe, no seu egoísmo, limita esta sua existência e para os outros demarca os limites da sua natureza moral, preparando para si as trevas que o cercarão, infelizmente, nos seus destinos ulteriores.

             Este mundo não é uma rixa em que cada um se digladia como pode, já que nada fazemos impunemente. O homem em evolução é tributário dos seus erros e dos seus maus pensamentos. Ele não deve esperar senão de si próprio o seu bem e o seu mal. No plano em que vigora, por excelência a Vontade Divina, o vício não pode suplantar a Virtude. A felicidade ou a infelicidade dos homens dependem absolutamente da observância e da violação da lei universal que rege a ordem na Natureza. 

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             A lei moral é uma verdade absoluta. A Justiça, a Sabedoria e a Virtude existem na carreira do mundo, assim como a realidade física. Não se pode avançar um grau na iniciação humana sem merecimento e sem trabalho. Todos nós devemos ser experimentados, tanto nas grandes contrariedades, como nos acontecimentos de pouca importância que nos atingem. A felicidade não se conquista sem percorrermos todos os nossos erros, sem vermos e conhecermos tudo; sem sofrermos tudo e sem que tenhamos experimentado toda a espécie de Vida sempre em relação, é claro, com os respectivos progressos.

             As riquezas, as grandezas e a força, que tão cobiçadas são por nós, infelizmente, são-nos prejudiciais enquanto nos conservamos nas trevas, isto é, sem que saibamos utiliza-las como devemos; a pobreza, a humildade e a fraqueza, podem ser uns auxiliares nossos para adquirirmos as luzes necessárias do complemento do nosso destino. Desde que as saibamos aproveitar todas as condições de vida, desde a mais elevada à mais humilde, constituem a prova e encerram ensinamentos fecundos que se tornarão vias para a nossa ascensão progressiva.

             O homem tem de chegar só à Verdade; é, pois, forçoso que ele alimente a sua fé, para merecer a sua felicidade. A felicidade, que é a lei igualitária do Universo, para valer todo o seu preço deve ser adquirida e não outorgada. O alvo a atingir é tão elevado que não poderemos atingi-lo senão à custa de muitos esforços e sacrifícios. 

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             A lei moral é uma lei de vontades livres, sendo, por isso, de relativa possibilidade viola-la, embora o não devamos fazer por nenhum princípio; mas se a violamos, resulta só da nossa inteira responsabilidade esse ato de violação. A Providência combina-se com a liberdade do homem. A Justiça Divina diz ao livre-arbítrio: “Faze o que desejares; com certeza, porém, que tudo está de tal forma organizado que, ou te punirás a ti próprio, ou te recompensarás”. N'esta síntese congrega-se a vontade de Deus com a do homem. Na realidade os homens fazem o que a sua vontade individual lhes dita; o que não podem, porém, é desmantelar nem derrogar os planos gerais em que essa vontade se movimenta.

             As penas e os castigos, são as reações da Natureza, ultrajada nos seus princípios eternos. A dor é nossa obra; ela indica-nos claramente que avançamos para além dos limites que fixam a consciência, a moral e a Lei.

             Todo o vício e degradação são sofrimentos. Aquele a quem o orgulho dirige os apetites materiais, que abusa das coisas, dos homens, da vida e de Deus, viola as leis constitutivas do Universo, afasta-se da harmonia geral e sofre com este atentado de violação, como sofreria uma azagaia (tipo de lança) inteligente e sensível se algo viesse destruir a igualdade dos seus raios.

             Não é Deus que nos castiga, mas sim somos nós que nos punimos. Deus não pune nem recompensa; basta-Lhe ter estabelecido as suas leis de tal maneira que a Justiça tem um reinado absoluto e imutável. 

*

             Existem um Inferno e um Paraíso filosóficos, isto é, um sistema natural que liga estreitamente os efeitos às causas aquém e além do Tempo. Uma espécie de necessidade encadeia o homem às suas obras. Nelas, quer sejam boas ou más, há qualquer coisa que se incorpora à Vida futura. Sucedemo-nos, sempre, a nós mesmos. Pelo caminho que trilhamos no presente, podemos já determinar o que no futuro seguiremos (1).

             (1) Consequência lógica e concludente da máxima do Cristo – “A cada um segundo as suas obras, que o povo, o eterno filósofo, traduziu no adagio popular – “Quem melhor fizer a cama, melhor nela se deita.” (Nota do tradutor).

             A vida é o efeito das obras de cada um, e por isso, julgam-na um contra senso. Todos nós temos no nosso íntimo o gérmen da nossa felicidade ou da nossa infelicidade. O homem é o juiz de si próprio; recompensa-se e pune-se a si próprio; colhe o que semear e alimenta-se do que colhe, fortificando-se ou debilitando-se, segundo os alimentos que ele próprio produz e prepara. Em toda a parte onde se encontrar a alma, ela leva consigo o seu próprio castigo e a responsabilidade direta dos seus atos, na proporção da sua liberdade, isto é, da sua inteligência e da razão. O inferno não é um lugar, mas sim uma condição de ser, um estado de alma e só a nós próprios pudemos imputar a nossa saída dele, assim como unicamente de nós depende o nosso estacionamento nele. 

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             Toda a lei carece de sanção. E particularmente ela se torna indispensável à lei moral, não só porque a Virtude obtém a sua recompensa, uma felicidade prevista, mas também porque a Justiça é o verdadeiro complemento, ficando a chave de ouro na mão da Razão. É necessário que a lei moral, que exige a reforma de cada um, seja sancionada pelos sofrimentos. Se o homem nada receasse, nenhuma precisão o conduziria na busca do melhor, nem tão pouco nada o obrigaria a melhorar-se; entorpeceria na inação e não progrediria - tornava-se apático.

             Cada homem tem em si o seu destino e o que se lhe apresentar no futuro, será o fruto do que ele merecer. Nenhum desvio do verdadeiro caminho ficará impune: quem dele se afastar, sofrendo uma pressão misteriosa, a ele será conduzido de novo, fatalmente. A boa ou má sorte, a boa ou má estrela não passam de meras criações poéticas que o homem criou, talvez, para se desculpar dos seus desatinos; o que existe, porém, são forças e leis a que nada consegue escapar, porque o progresso é a lei soberana que a tudo assiste e a que nada escapa. Não há nenhum defeito, nenhuma imperfeição moral ou nenhuma ação condenável que não tenha o seu oposto e as suas consequências naturais. Nenhuma ação meritória, nenhum ato louvável fica sem a sua justa recompensa, assim como também nenhuma falta se cristaliza sem a sua reparação, igualmente justa. A nenhum ato nos podemos eximir; ninguém pode negar as suas faltas nem emendar as suas virtudes. O homem jamais se encontra só: não podemos por isso esconder as nossas ações e os nossos pensamentos. 

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           Neste Universo, obra de uma infinita Sabedoria, nada falta nem nada se faz sem um fim inteligente e sem uma soberana justiça. Tudo tem a sua razão de ser, o seu destino e o seu fim. Tudo quanto nos consome e aflige não é obra do acaso. Por vezes, onde vemos desordem e deslocação, um vidente saberia concluir os efeitos das causas e apenas veria um acontecimento normal, sujeito à sua lei respectiva ou à lei básica e genérica: - tudo está adaptado a um fim. O acaso não existe; é outra invenção poética dos lunáticos e visionários; nós, que possuímos uma inteligência e uma clarividência limitada, é que o formamos.

             No mundo, todas as coisas estão ligadas entre si por estreitos laços de afinidade: nada se encontra isolado, desamparado. O mundo material é solidário com o espiritual e ambos se confundem reciprocamente. As misérias do homem e das nações têm um sentido, o mal moral é o princípio do físico. Toda a perturbação física corresponde a uma outra moral equivalente. Entre as leis da harmonia cósmica e as leis morais existe uma correlação intima. Os cataclismos que amedrontam os povos e que parecem desencadear-se cega e irresistivelmente, enfim todas as violências de uma natureza em delírio, não são senão o reflexo da nossa mentalidade egoísta e orgulhosa. Tudo faz parte de um Todo, tudo se congrega e se relaciona; tudo se encadeia e se liga ao moral e ao físico, mutuamente. No campo dos fatos, desde o mais rudimentar ao mais complexo, tudo obedece ao regulamento da lei respectiva. 

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             O erro e a injustiça não existem no Universo; mas sim a Justiça infalível do Criador que refletindo-se no já realizado e no realizável; no eterno encadeamento do passado, do presente e do futuro, conduz as suas paragens pela própria lógica das coisas, deixando ao Tempo o cuidado de desligar os efeitos das suas causas. A esta justiça, lógica e absolutamente justa nada consegue subtrair-se.

             A Providencia pune, ou antes as suas leis punem, como um tribunal humano; porém não tem necessidade de exercer a sua punição no tempo para justificar o seu modus-operandi, já que constantemente estamos sob a sua alçada pelo efeito das suas leis. Os homens exercem-na em face dos relatórios tirados da sua vida atual e do seu estado: o presente; Deus, porém, exerce-a em relação às nossas existências sucessivas e à universalidade das nossas vidas.

             No invisível nada existe que não tenha a sua configuração material, visível. A vontade humana faz em pequena escala o que Deus faz no absoluto, muito embora a Justiça Divina não seja nada semelhante a humana. Esta não pode atingir as ações que a consciência reprova. Aquela tem o castigo fixo nas leis da Natureza para todos os vícios que contaminam a alma. 

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             A lei da justiça, que não passa do funcionamento normal da ordem moral do Universo, quer que toda a vida culpável seja reparada. Todo o mal e toda a falta que cometemos representa uma dívida onerosa que contraímos e que tem de ser paga, quer de um momento para o outro, quer em uma existência, quer ainda em várias, até que se encontre definitivamente saldada. O arrependimento é o primeiro passo para o melhoramento; porém ele não basta. É necessária a expiação, a reparação. O sofrimento como grande educador que é, é o único elemento que nos pode reabilitar. “O futuro existe virtualmente no passado, determinado aí por causas que o conduzirão”. As coisas futuras existem sempre. O que será espelha-se sempre no que é. E no futuro, a despeito das nossas filosofias, das nossas negativas e das nossas crenças e, ainda, além do que nós poderemos fazer para lhe escapar, o destino virá bater-nos à porta com a sua memória à mão, tal qual um credor implacável, um agiota impertinente. 

             Nenhuma lógica é mais cerrada nem mais inflexível que a da vida humana. A fatalidade aparente que espalha pela vereda da nossa vida os males que nos atingem mais ou menos, não passa de uma consequência do nosso passado. O efeito remonta sempre à causa, isto é inegável. As nossas vidas seguem-se sem semelhança, mas encadeados umas às outras por uma dependência continua. A vida terrena é conjuntamente uma reparação e uma preparação. Nenhum de nós é o que deve ser, nem para si próprio nem para o seu semelhante; mas é indispensável que a Razão se cumpra, que a Justiça se faça e que o Bem predomine em todas as suas expressões.

             Estas leis imutáveis, de todos os tempos e países, regem o indivíduo e aplicam-se à família, à nação, às raças, individualidades coletivas, dominadas pelo orgulho e ambição, e fazem em conjunto o que um indivíduo faz isoladamente à família que enriquece à custa doutra, ao povo que subjuga outro, à raça que deseja amesquinhar outra. E nós não devemos dizer que os males gerais atingem o culpado e o inocente, pois há sempre uma íntima correlação entre a pena e a falta. O inocente de hoje pode ser o culpado de ontem. A Justiça Divina nunca se reflete em falso e desde, que um sofrimento não é um produto da vida presente, devemos em seguida procurar a causa em uma vida anterior.

             É por um efeito seguro e justiceiro que se expiam as injustiças e crueldades perpetradas em uma vida precedente. É por repercussões sucessivas que se desenrolam, de geração em gerarão, esta série de castigos que atingem os culpados. Nos nossos sofrimentos encontramos a reparação do que nós, por nossa parte, já fizemos, passar. Todo o efeito tem uma causa, e cada causa realiza um efeito idêntico a ela própria. Por toda a parte sempre se ergue a pena de Talião, tanto nos indivíduos, como nas nações, como nas raças, como nos povos. 

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             Se, por vezes, julgamos que a Terra é um calvário, um purgatório ou um inferno a ninguém podemos lançar as culpas senão a nós próprios, porque somos nós que assim a fazemos ser. Somos nós que criamos os nossos sofrimentos pelos nossos vícios e pelos nossos excessos em uma infinidade de coisas. As múltiplas misérias que, por vezes, nos afligem; as calamidades públicas, as mortandades, os latrocínios, as ruínas nascem da natureza humana, da sua inferioridade moral - prova irrecusável da sua origem. O mal está em nós e não fora de nós; portanto nós é que devemos mudar e não o que nos rodeia.

             A adversidade é a nossa melhor escola, o principal fator da nossa elevação progressiva; ela instrui-nos melhor que os livros sobre as regras do dever e da moralidade dos nossos atos. Os preceitos sem prova são vãos. O sofrimento é a Lei necessária da vida; isto é, da formação. A aflição só dá a inteligência das coisas reais; a dor é necessária ao aperfeiçoamento moral: é o aguilhão que faz o homem avançar na via do progresso, impossibilitando-o de estacionar no estado presente; o despertador infalível que o avisa logo quando trilha um mau caminho, obrigando-o, em seguida, a seguir o bom caminho, o justo, o devido. É assim que a Lei natural utiliza os nossos erros e os nossos sofrimentos, de que somos a causa, para nos obrigar a progredir, abandonando nós assim uma situação penosa. Do que nós chamamos mal, tira essa Lei igualitária todo o bem é eis aí, então, o que chamamos expiação.

             A dor absorve o mal. As penas porque passamos são purificadoras e não constituem, como muita gente crê, uma vingança irremediável. A verdadeira justiça não é a que pune, simplesmente por punir; mas sim aquela que pune para que dessa punição resulte um progresso, algo de melhor - tal é a justiça de Deus.

            Deus, que sabe todas as coisas, que nos conhece antes e depois, que fez a alma imortal e o mundo infinito. Deus, dizíamos, não criou os homens para os perder após rápidos instantes passados sobre este globo. O Ser Supremo que é o Pai dos pais não é contra as suas criaturas, de quem conhece a sua fraqueza, porque se assim fosse, porventura, seria anatematiza-las, lançar lhes uma sentença fatal, irremediável, o que jamais nenhum coração paternal da Terra ousaria pronunciar, sequer. 

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        Cada existência é, ao mesmo tempo, a consequência e o início de uma outra. A forma como cada um coloca o pé na Terra, no momento em que aí chega não mais que a continuação da forma como andava precedentemente no universo. Ninguém ocupa as mesmas condições de existência em comparação com as de uma outra; e as condições de existência que nos são atribuidas, por mais penosas que elas sejam aparentemente, são, no fundo, as mais honrosas possíveis. Elas constituem, de fato, o melhor regime a que podemos ser submetidos no interesse único do nosso aperfeiçoamento moral.

             A vida presente e o seu cortejo de mal-estares, físicos e morais, assegura a cada um as condições que lhe convém e que estão em harmonia com as suas culpabilidades passadas. Se os acontecimentos vulgares da vida privada não são mais que a consequência natural e imediata do caráter e da maneira de agir de cada um, as vicissitudes da vida terrestre têm a sua causa fora desta existência.

             Cada um é o que foi no seu ser anterior; foi o próprio que preparou o seu berço. O homem nasce onde coloca a sua alma. O jogo da vida, coloca-nos em presença dos seres e das coisas com quem temos de tratar pessoalmente. Um homem não nasce em tal meio ou tal família sem que fenômenos antecedentes tenham determinado o parentesco ao qual deveria pertencer; sem que estados vários colocados em um “nascimento prévio”, mais ou menos distantes, tenham sido o ponto de partida dos seus declives, das suas predisposições mentais ou fisiológicas.

            Quem sofre muito na Terra, pode dizer que tinha muito a expiar.” As anomalias corporais, as enfermidades crônicas e cruéis, as mortes trágicas, a curta existência de seres queridos, as ideias inatas, os encontros fortuitos, os acontecimentos inexplicáveis que modificam a nossa existência em absoluto, as calamidades que atingem um indivíduo ou um núcleo humano e que à primeira análise parecem ser um capricho da sorte, não são mais que a execução da Lei, as sanções de cada vida para aquela que lhe seguirá.

             Os renascimentos em órgãos incompletos, formas hediondas que causam piedade, outra coisa não são que os efeitos da justiça das leis de Deus. As misérias físicas apagam as taras morais. Almas deserdadas desde o seu nascimento neste mundo, expiam, em corpos disformes e sofredores, os efeitos passados, e, como tudo se encadeia desde as coisas mais insignificantes às de maior vulto, a Providência serve-se do punido para punir outros e as crianças são os instrumentos de expiação para os pais que lhe deram nascimento.

             Sem a crença nas existências anteriores nada se explica, nem as diversidades das condições humanas, quer no individuo, quer mesmo nos povos, nem a razão dos males, nem a utilidade das penas, quando elas não são o resultado de nenhum ato do presente, têm uma explicação concreta e lógica. Se não fosse a Lei das reencarnações a justiça de Deus desapareceria no monstruoso fantasma do acaso. 

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             Os homens não se resolveram ainda a procurar neles próprios a causa inicial dos seus males. Crer que não se pode reformar a sua própria natureza e que é possível esquivar-se aos seus delitos pela fraqueza da sua posição ou pelo atavismo individual, não é. mais que um fogo-fátuo para se escapar à responsabilidade. Todas as virtudes e todos os vícios são inerentes ao espírito. Nosso bem e nosso mal não dependem senão da nossa vontade. A carne, que não tem pensamento nem vontade, não prevalece senão pelo espirito, que é o ser pensante e voluntario. Os corpos obedecem quando as almas são resolutas. É o espírito que dá à carne qualidades correspondentes aos seus instintos. A carne só é fraca quando o espírito é fraco. O temperamento é um efeito e não uma causa.

          O Espírito não procede do Espírito: O pai não é senão o transmissor da vida às crianças; não é o autor, não cria: - procria. Os nossos pais, de quem temos, por vezes, os traços distintivos do rosto e disposições determinadas a certas afecções físicas, não nos podem transmitir as suas faculdades intelectuais e morais. Quando nos parecemos moralmente com os nossos pais, é porque já nos parecíamos com eles em antes de nascer. Os germens espirituais da humanidade psíquica estão fora da geração material. A transmissão hereditária é impotente para explicar as oposições de caráter e de moralidade nos filhos de mesmos pais. A Lei da hereditariedade não é fatal no homem; o que é fatal é que cada um de nós deve sujeitar-se às leis de concordância e dependência, anexadas à reprodução da sua natureza. Não é outra coisa a hereditariedade. 

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             Quando chegamos a este mundo, não somos iguais; há tantas diversidades entre as almas, como entre os corpos. Na Terra, entre os homens, encontra-se uma variedade infinita de talentos e inclinações. No mundo não existem dois seres que professem uma harmonia perfeita de ideias e sentimentos. As almas não desabrocham neste planeta com o mesmo grau de força e no mesmo ponto da iniciação. Cada criança traz ao nascer faculdades diferentes, predisposições especiais, conhecimentos inatos que se não explicam senão pela conclusão de trabalhos anteriormente encetados. Cada existência é um novo ponto de partida onde o homem é o que se fez. O homem renasce com o seu dever e haver; nada perde do que adquiriu: só esquece, porém, a forma como realizou essa aquisição.

              O esquecimento periódico do passado em cada passagem por um meio novo é a condição indispensável de toda a prova e de todo o progresso. Para que o esforço não perca nada do seu valor é necessário que seja inteiramente livre e voluntário, ao abrigo, porém, das influências do passado. O homem deve tornar-se bom por si próprio, pelo amor que dedicar à virtude, sem ter porém uma esperança para o futuro nem tão pouco deve cismar no que sofreu já.

            Em vez de o auxiliarem, o conhecimento do passado e das sanções inevitáveis do futuro, embaraçariam mais o homem; ele negligenciaria no presente, dominado pelo pensamento das coisas futuras, a visão de uma infelicidade certa, persegui-lo-ia todos os dias que a precedessem. E se o véu do esquecimento nos não escondesse uns dos outros, as inimizades perpetuavam-se, as rivalidades, os ódios e as discórdias reviveriam de vidas para vidas, de séculos para séculos. Assim estaria constantemente transtornada a ordem na Terra.

             Ainda se não encontram suficientemente elevadas as almas que veem à Terra

para que lhes possa ser útil o conhecimento dos seus estados anteriores. Esta recordação, comprimida, escondida sob a nossa forma material, fica conservada na íntegra na substância essencial da alma para reaparecer, após a morte, à medida que o ser vai progredindo. A memória integral do passado é uma vista superior que se não deve revelar senão a muita Luz, isto é, quando a alma tiver atingido a completa maturação da razão e a plenitude do raciocínio. 

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             É certo e positivo que cada um de nós expia, na sua existência, que julga inicial, pelo sofrimento e miséria não somente as faltas atuais, como também as faltas do passado que ainda restam por ser reparadas; de tal sorte que por muito infeliz que se seja não nos devemos lamentar senão de nós próprios. O homem está ligado ao homem neste e no outro mundo; todos os homens são criados para cada homem e cada homem para todos; logo, portanto, ninguém se pode considerar estranho aos seus semelhantes. As felicidades ou infelicidades do homem formam parte integrante da felicidade ou infelicidade dos seus semelhantes. Somos solidários como as células de um mesmo órgão e se toda a infelicidade esconde uma falta não nos pertence a nós julgá-la, mas sim é nosso dever aliviar o infeliz, aquele que é o atingido.

             A caridade é uma obrigação íntima que está fora de qualquer recusa. Se todo o sofrimento corresponde a um fim divino, a Lei da solidariedade é o nosso estrito dever, unicamente no nosso interesse próprio e pela ação dessa Lei cumpre-nos auxiliarmo-nos mutuamente, socorrermo-nos uns aos outros sem pensarmos, sequer, em contrariar e entravar a marcha e a execução da justiça divina. Todo o auxílio que prestarmos aos outros formam parte do seu e do nosso destino. Aquele que consola uma dor é, na sua humilde esfera, um obreiro ao progresso humano. 

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           A esperança do homem não é um logro. O futuro encobre nas suas profundezas a felicidade que em vão procuramos ao redor de nós. O bem é a lei do Universo e o mal um estado transitório, sempre reparável; uma das fases inferiores da evolução dos seres para o bem. O mal, como a sombra, não tem existência real, é um efeito de contraste; esvai-se logo que o bem apareça.

             Deus não é o autor do mal. Criou Ele o homem livre e na sua liberdade é que está a possibilidade do mal. A alma não foi criada em um estado de absoluta perfeição, mas sim com susceptibilidade de a vir a ter, a fim de que, pelas suas obras e esforços, a possa merecer e usufruir condignamente. Se Deus nos tivesse criado absolutamente perfeitos, se fossemos onipotentes, onde então ficaria o esforço e, por consequência, o mérito e qual seria o fim da criação? Dando ao homem o seu livre arbítrio, o Criador quis que ele chegasse, pela sua própria experiência, a distinguir o bem do mal e que a prática daquele fosse o resultado dos seus esforços e da sua boa vontade para se afastar do exercício nefasto deste.

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         Deus mostra-nos o que quer e esconde o resto”. O plano providencial da educação da humanidade apropria-se ao estado dos espíritos e manifesta-se segundo as idades de cada um dos períodos da sua história. O Criador dá às humanidades nascentes, para lhes mostrar o caminho, vislumbres da verdade que a liberdade humana usa, em seguida, como deseja; mas estes vislumbres não passam os limites do que o homem pode conceber no degrau em que se encontra. Deus criou vários mundos, e cada um tem o seu limite que nenhum povo ou indivíduo pode transpor. Tal qual como o ensino, que é facultado à razão do desenvolvimento do aluno: - não se ensina na infância o que ensinamos na idade madura. A Verdade não se nos mostra senão por fragmentos. A revelação é progressiva e proporcionada às forças o espírito.

             É preciso que os altos destinos se conservem incertos aqui. Se a existência de Deus, a imortalidade da alma e as sanções necessárias se demonstrassem como verdades geométricas, constrangeriam a razão e não nos deixariam inteira liberdade; elas, se assim não fossem, seriam uma consequência inevitável e absurda do cumprimento do dever; o bem não seria, então, um derivado da boa vontade, mas sim de instrução e inteligência. As esperanças certas e infalíveis seriam um obstáculo ao esforço porque produziriam na humanidade uma apatia funesta, inspirando-lhe uma confiança firme de mais. E se os homens estivessem seguramente convencidos de uma outra vida que não fosse pior que esta lhes é, os mais infelizes teriam pressa de sair deste mundo e então, em vez de temerem a morte pedi-la-iam ou tomavam a por suas próprias mãos, o que de todos os modos seriam contrariar a vontade Divina. Portanto é indispensável que eles prossigam nesta vida com as condições que hoje possuem até que tenham concluído a tarefa de moralizarem a sua personalidade e que tenham conseguido subir mais um degrau na escada do progresso para auferirem novas regalias que hoje, na condição atual do homem, só lhe seriam embaraçosas e prejudiciais.

             A soma quantitativa e qualitativa dos progressos de um mundo, está na razão direta da sua natureza. A ideia que tivéssemos do nosso mundo, por mais elevada que fosse, levava-nos a reclamar da sorte benefícios que se encontram proporcionalmente além do nosso estado moral e físico. Devemos ocupar, portanto, uma situação modesta. A terra, berço da nossa infância tão querida ao nosso coração não é, nem por sombras, o melhor dos mundos, e ela não poderá ser melhor sem cessar de ser o que hoje é. Haverá sempre males em qualquer parte deste mundo e erros sempre se cometerão. Ele receberá eternamente novos recrutas que perturbarão a sua harmonia.

             As defeituosidades do nosso invólucro e da nossa natureza têm a sua razão e a sua necessidade perante o plano geral do universo. A terra fez-se para os homens e estes para ela - estamos sempre em harmonia com o meio em que vivemos. Inferiores na ordem da evolução, somos a aurora da vida consciente do amanhã, e todos nós, todo o gênero humano, prossegue sempre, em uma solidariedade universal pelas cadeias das vidas sucessivas, para um aperfeiçoamento infinito.

             Não fomos criados unicamente para colonizarmos esta terra. Existe uma relação manifesta entre a imensidade e nós próprios. Há outros planos onde a razão e o bem predominam, onde as almas se interpenetram, onde os nossos dias, as nossas violências e os nossos sofrimentos são desconhecidos, onde, enfim, a vida é melhor para o homem evoluído. 

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             Aqui, neste plano, cremos mais nas abstrações que na vida.

             A lei é simples: - tudo foi criado para um bem final. Se toda a criatura geme, toda a criatura será consolada. A Sabedoria Suprema não fez uma obra, neste ponto, imperfeita, onde o mal não pudesse ser reparado. A alma pode erguer-se de todas as suas quedas, porque sobre nós não pesa o irremediável. Não existe a condenação definitiva nem os castigos sem fim. A dor é libertadora e ninguém sofre muito tempo senão por erro e culpa sua. O maior dos nossos erros é o desespero e, por sinal, ele é inútil; ele - desespero - é um vento agreste que aumenta a chama devoradora, um turbilhão caótico que nos arrasta aos mais profundos abismos. O pessimismo não tem lógica alguma e a tristeza é um desfalecimento. No Universo tudo se acalma e se regulariza; tudo tende para a paz, para a certeza, para a tranquilidade. O que a mão ou o cérebro do homem semeia nunca se perde nem estiola; é apenas uma questão de estação que retarda o seu nascimento, porque tudo nasce sempre nas ocasiões próprias. As aspirações dos que lutam pelo triunfo da justiça e da razão, dos que amam, dos que choram e dos que pedem jamais ficam sem a competente realização e o sacrifício; seja qual for, tarde ou cedo, receberá a sua recompensa justa e igual.

             Na natureza não existe nenhuma contradição e quando alguma se nos depara no curso das meditações que tivermos feito ou façamos, fiquemos certos que ela não vai além de uma deficiência pronunciada de penetração. O nosso mundo, que nós nas nossas exclamações apodamos de maravilhoso, não é mais que uma parte infinitesimal do conjunto das coisas, um mísero ponto do mundo universal. Para concluirmos a razão de qualquer acidente que nos atinge é necessário refletir-se no destino da terra e na natureza dos seus habitantes, é necessário reintegrar o fragmento no Todo a que pertence e do qual é uma parte complementar. O nosso fim aqui não é mais que um fim de esperança. Os nossos desejos não se realizarão senão em um desses mundos que gravitam sobre as nossas cabeças. Admitir-se a existência do progresso indefinido na Terra não passa de uma vã pretensão utópica. O grau de aperfeiçoamento que o homem aqui pode atingir está em relação direta com os meios que lhe são dados de conhecer e agir e jamais conceberemos, se não repararmos previamente nas condições materiais do corpo humano, a possibilidade de possuirmos livremente o verdadeiro, o belo e o bem. Mas é necessário à grandiosa obra do Universo o esforço e o concurso de todos. Ninguém pode ficar indiferente ao que se faz e ao que se prepara; é pois necessário que os homens se proponham e se determinem um ponto de perfeição para além do seu alcance. Jamais o ser se abalançaria a caminho se julgasse que não chegava onde efetivamente chegará. 

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             Nós devemos morrer uns após outros; que os que partem e os que ficam não se aflijam, pois. Morrendo primeiro não saímos da humanidade e não fazemos senão preceder os que ficam ainda.

             A última palavra da vida não se resume na morte; o túmulo não é o nosso epílogo. A morte não é o magual (?) (mangual = instrumento para debulhar cereais) da criação nem a pena capital; não é mais que um instante impossível de medir porque tudo continua. A morte não entrava a vida porque nada pode contra ela. Não há vida sem uma seguinte - a vida apenas muda de forma. Nenhum risco corremos se nos vemos desligados para sempre dos seres queridos. Separações eternas não existem. O féretro não se fecha sobre as nossas afeições como sobre os nossos corpos; aquelas estão ligadas à nossa individualidade no percurso das nossas vidas efêmeras e às nossas personalidades mutáveis. Nenhum laço espiritual periga. A morte não arruína nem dilacera nenhuma afeição pessoal nem tão pouco extermina as nossas afinidades eletivas, as nossas amizades enlaçam-se para a Eternidade, o que não podemos, porém, eternizar é a forma sob que elas se manifestam.

             O presente nada mais é que uma simples etapa na grande peregrinação humana. A humanidade como as estrelas do firmamento perde-se no infinito. “Outros mundos habitados, em número incalculável, aplainam, na imensidade do espaço, para as almas, um campo inesgotável”. Nós, os seres humanos, nos encontraremos todos um dia com a recordação dos nossos estados anteriores e com a consciência dos nossos progressos. Com os olhos fixos no mesmo futuro, assistiremos, então, ao reencontro feliz dos nossos confrades, dos nossos seres queridos. 

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             Não podemos, por mais que se tente, conceber toda a grandeza do problema da imensidade do caminho a percorrer - é um abismo insondável que a sonda não atinge e a que ninguém conseguiu ainda tocar o fundo.

             O que nós sabemos, porém, é que o “infinito do universo corresponde, na criação material, à eternidade das nossas inteligências na criação espiritual”; que somos conduzidos pelo caminho da vida moral para destinos superiores; que vimos de baixo e que vamos para cima; que vimos de Deus e que para Ele vamos. Eis o que nos basta saber, por agora, para nos esclarecer sobre o caminho da nossa perfeição.

             Uma lei rege a criatura; esta é a lei da liberdade de bem-fazer ou de mal fazer que o Criador Eterno nos legou. O exercício desta liberdade é regulada por um princípio soberano com o qual é necessário conformarmo-nos se desejamos melhorar a nossa posição futura – “Condenemos em nós o que condenamos nos outros”, e “Não façamos aos outros o que não desejamos que se nos faça; mas façamos-lhes, porém, todo o bem que estimaríamos nos fosse feito”.

             Toda a sabedoria, toda a ciência, toda a filosofia e toda a religião condensam-se nessas simples mas grandiosas máximas.

 *

             A doutrina das vidas sucessivas e da evolução progressiva da alma, sem a qual tudo se engloba aqui em uma desordem, não é uma verdade nova.

             Afirmada pelos maiores pensadores de todos os séculos e países, a lei da preexistência que muito tempo esteve envolvida nos domínios da metempsicose, é tão antiga como a noção da existência de Deus na consciência humana; tão divino como o sentimento da imortalidade e da responsabilidade do nosso ser, sentimento este que ela corrobora e afirma.

             Apoiando-se no estudo da natureza e da consciência, na observação dos fatos, nos princípios da razão e baseada num inabalável otimismo, esta crença traz aos homens um consolo imediato, um refúgio seguro. Não há alma sofredora e de boa-vontade que nela não encontre um refrigério, uma direção e um apoio. Uma fé assim que se enraizasse em todos os corações dos homens desta humanidade renovaria, por completo, a face do mundo!.. Mas é indispensável que esperemos da Terra apenas o que ela nos pode dar! ...

             Sejamos pacientes já que somos imortais!

 

FIM

 


terça-feira, 29 de setembro de 2020

A obra da salvação e obra da perdição


 Obra de salvação e obra de perdição

A Redação Reformador (FEB) Março 1943

             Quando já se aproximava o termo da sua missão, dirigindo-se para Jerusalém, onde se entregaria em holocausto pela redenção dos homens, mandou o divino Mestre que dois de seus discípulos se adiantassem, a fim de lhe prepararem uma pousada, distantes que ainda se achavam das portas da cidade santa. Esses discípulos, segundo refere Marcos, passando por uma aldeia, procuraram aí a pousada de que iam em busca. A aldeia, porém, era de Samaritanos e estes, percebendo tratar-se de gente que demandava Jerusalém, negaram-lhes agasalho. Voltando, indignados, a ter com Jesus, perguntaram-lhe aqueles discípulos: “Senhor, queres digamos que o fogo desça do céu e os consuma?" - Repreendendo-os, respondeu-lhes o Mestre: "Não sabeis de que espírito sois? O filho do homem não veio para perder os homens e sim para salvar os homens.”

             Porque não quiseram os Samaritanos dar acolhida ao filho do homem e à sua comitiva? Tão só por motivo da divergência que existia entre eles e os Judeus, no tocante às ordenações de Moisés. No interpretarem as Escrituras, dissentiam aqueles das ideias destes últimos e não admitiam que o templo de Jerusalém tivesse o prestígio que os Judeus lhe atribuíam. Por outro lado, foram esses mesmos dissídios que inspiraram aos discípulos a lembrança de obterem que os Samaritanos da aldeia em questão fossem destruídos, aniquilados por fogo vindo do céu.

             Temos assim divergências de ordem secundária colocando em presença um do outro, em atitude de séria e grave hostilidade, fazendo-os pensar até numa reciproca destruição, dois grupos de criaturas que, entretanto, se encontravam submetidas a uma mesma corrente religiosa que derivava da legislação mosaica; que adotavam o mesmo código de moral - o Decálogo.

             Transpostos dois milênios, já depois do advento do Consolador prometido pelo Cristo, dentro das fileiras dos adeptos da doutrina que esse Consolador baixou a restaurar no seu primitivo esplendor, a dentro, pois, não mais da doutrina resultante de uma legislação dura e violenta, que consagrava o olho por olho e dente por dente, porém de uma doutrina que se resume no preceito único do “amai-vos uns aos outros”, eis que muitos dos novos Samaritanos, já desejosos de integrar-se nesse preceito para poderem imitar o Samaritano da parábola, defrontam com outros israelitas belicosos, a quererem reduzi-las a cinzas pelo fogo de palavras candentes, embora lhes não ajam os primeiros negado lugar ao sol do Evangelho, saneador de almas, purificador de corações.

             E porque de novo se passam assim os fatos, reproduzindo, de certo modo, o episódio que recordamos acima? Ainda por simples divergências de opiniões em torno de questões somenos, de discordâncias na maneira de ver e compreender pontos mais ou menos insignificantes da doutrina ou da revelação acerca de cujos princípios ou postulados essenciais todos se acham ou se dizem inteiramente concordes.

             A primeira vista, parecerá de difícil explicação semelhante estado de coisas, que aberra desses mesmos princípios e postulados e, mais que tudo, daquele preceito em que o Cristo de Deus sintetizou os seus ensinamentos, para todos quantos se dispusessem a abraça-las, a fim de o seguirem, aspirando a participar da sua glória. Todavia, assim não é. A explicação e a lição corretiva lá estão nas palavras com que Ele retrucou à sugestão que lhe apresentaram João e Tiago: “Não sabeis de que espírito sois?” Preferindo para a sua resposta imediata a forma interrogativa, fê-lo naturalmente porque a afirmativa implicaria a declaração peremptória de que eles ainda ignoravam completamente “de que espírito eram.”, apesar de lhe viveram na companhia desde longo tempo, enquanto que o emprego da outra forma dava a perceber que apenas haviam esquecido momentaneamente “de que espírito eram”.

             Com efeito, esse esquecimento passageiro se produziu neles por influxo das ideias nacionalistas de que os dois ainda se não tinham emancipado integralmente, ideias que os induziam a supor, como depois ocorreu e ainda agora ocorre com respeito às questões que apaixonam os homens, que a ruína daquela aldeia e de seus habitantes encheria de espanto a toda gente e, pelo terror que inspirasse, aumentada o prestígio do Mestre, Este, no entanto, que não cogitava de conquistar prestigio e glória segundo a maneira de entender dos homens, que cuidava exclusivamente de glorificar ao Pai que o enviara, logo retificou o pensamento errôneo e falso dos dois discípulos, dando-lhes um ensinamento que, como os demais que espalhou seria para todos os tempos, para os dias de hoje como para os do futuro, até que não reste por cumprir-se, um til sequer da lei de que Ele se fez, no seio da humanidade, o mais eminente e glorioso arauto, a do amor a Deus e ao próximo.

             Lembrou-lhes então de que espírito era preciso fossem eles inteiramente, dizendo: “O Filho do Homem não veio para perder, mas para salvar os homens”. Com essas palavras, claramente significou que aquele espírito era o da doutrina que Ele personificava e em que os instruía, doutrina que, de puro amor, era e será sempre exclusivamente construtiva, de edificação moral, de união, portanto, de confraternização, de alçamento de todas as virtudes que nascem da virtude excelsa, a da humildade, por Ele exemplificada ininterruptamente, a partir do momento em que apareceu na Terra, até ao que a deixou, ascendendo aos páramos celestiais de onde, em comunhão com o Pai, governa o planeta terreno e dirige a humanidade que o habita.

             Incompatível, pois, com o espírito dessa doutrina é tudo o que tenda a demolir e destruir, a separar os homens, a os inimizar ou desunir, a impedir que eles se demonstrem verdadeiros seguidores do Evangelho e revelem o sinal por que serão reconhecidos como legítimos discípulos d'Aquele que é, e somente Ele o é, caminho, verdade e vida, visto que tudo isso conduz o homem à perdição, porque o induz a pecar e a reincidir no pecado, transgredindo a lei das leis, a lei do amor.

             Dar-se-á que os neo-cristãos, ou que como tais se qualificam pelo haverem, nos modernos tempos, abraçado o Cristianismo em espírito e verdade, isto é, à luz da Terceira Revelação, possam ser de outro espírito, que não daquele de que já deviam mostrar-se possuídos os discípulos a quem Jesus repreendeu pela animosidade que manifestavam para com os Samaritanos da aldeia em que penetraram? Conquanto a resposta a esta pergunta só à consciência de cada um caiba dar com segurança, não se nos afigura ousadia opinarmos que apenas pela negativa pode ela formular-se, tanto mais que, do ponto de vista da inteligência humana, lícito talvez lhes pareça considerar-se em grau mais avançado de desenvolvimento, baseando-se porventura, em haver Jesus dito, aos que lhe pediam explicasse a parábola do semeador: “Pois que! Vós outros não entendeis esta parábola? Como podereis entender todas as parábolas?” ou, seja, todos os meus ensinos?

             Mas, neste caso, como no outro acima, como nos demais em que o divino Mestre estranhou a incompreensão dos discípulos, tratar-se-ia de pouquidade (pequenez) intelectual? Cremos que não, pois, se assim fora, não houvera Ele rendido graças ao Pai por ter ocultado aos doutos e prudentes as verdades de que era portador ao mundo, ao passo que facultava o entendimento delas aos pequeninos e humildes. Menos, portanto, se tratava de compreender através da inteligência, por fruto de raciocínio, pelo emprego da razão, do que de sentir com o coração, mediante as vibrações que neste produzissem as palavras divinas que lhe eram dirigidas, partindo da fonte de todas as vibrações dos mais puros sentimentos.

             Assim, quer quando os discípulos mostravam incompreensão daquela parábola, quer quando revelavam não saber de que espírito eram, os reparos do Senhor tinham a fundamenta-los a deficiência de sentimentos em suas almas, o não se acharem ainda penetrados da essência dos ensinos que lhes Ele tão copiosamente prodigalizava, o não as apresentarem dominadas pela quintessência doe exemplos em que lhes propiciava as múltiplas maneiras de aplicarem aqueles ensinos. Estes, com efeito, e, conseguintemente, a doutrina que Ele pregava, resumindo-se num único mandamento, o do amor, o sentimento do amor constituía, como constitui e constituirá sempre, o espírito daquela doutrina e só a posse desse sentimento, embora dentro da relatividade, maior ou menor, de tudo o que diz respeito ao homem, lhe permite afirmar em consciência que pertence ao espirito a que aludia Jesus: ao espírito do puro Cristianismo, do Cristianismo ora reflorescente na doutrina do Consolador, que outra coisa não faz senão restituir-lhe o esplendor magnífico que lhe imprimiu a palavra do Espírito excelso e sublime que, por delegação do Pai, o trouxe aos que morreram no pecado, a fim de lhes tornar possível a ressurreição para a vida eterna.

             Ora, se, por se denunciarem algo carecidos do sentimento que forma o alicerce da doutrina que o Salvador lhes pregava e exemplificava a todos os instantes, é que os discípulos mostravam não saber de que espírito eram, desde que se atenda à complexidade daquele sentimento, dado que o entramam as virtudes ou dotes morais que impulsionam para o bem a criatura, quais, por somente citar alguns, os da benignidade, da benevolência, da equanimidade, da tolerância, do perdão, da magnanimidade, da bondade, em suma, pode-se deduzir que onde não existam, predominantes, ou em escala apreciável essas características do sentimento do amor, não há o espírito do Cristianismo do Cristo, não há, pois, cristão. Iludem-se funestamente a si próprios os que tais se suponham ou se considerem, pretendendo demonstra-lo apenas por meio de palavras e atitudes que julguem glorificadoras do Filho de Deus, ou exaltadora da sua posição espiritual, olvidados de que uma só glorificação lhe é admissível e grata, segundo Ele mesmo o disse, a que se expressa pelo fazerem os Espíritos que lhe estão confiados a vontade do Pai celestial. E essa vontade é que todos reciprocamente se amem, não fazendo nenhum aos outros o que não queira que lhe façam e procedendo para com os outros como, por amor de si próprio, deseja que para consigo procedam os demais.

             Enfim, havendo rematado sua observação aos discípulos com o declarar que não viera para perder mas para salvar os homens, ou, então, que outro objetivo, diverso do da salvação dos homens, não colimava a doutrina que Ele personificava; que, sem a posse do espírito dessa doutrina, não se realiza obra de salvação e sim de perdição, não há como fugir há conclusão de que, sem esse espírito, ou, o que vem a dar no mesmo, sem o sentimento do amor a traduzir-se pela exteriorização das virtudes ou sentimentos outros que atrás enumeramos, também não há obra ou labor espirita uma vez que Espiritismo é Cristianismo e que idêntica a deste é a finalidade da obra atribuída àquele, na atualidade.

             Mas, onde não haja obra de salvação, conforme a definiu o Cristo de Deus, isto é, de aproximação, de união, de confraternização, de unificação de vontades, de identificação de objetivos elevados, de entrelaçamento de espíritos, de amor afinal, somente haverá obra de perdição, que outra não pode ser a que tenda a desunir, a separar, a inimizar as criaturas, como o é a que se assinala pela intolerância, pela injustiça, pela animadversão, pela violência de qualquer espécie; a que, em lugar do amor, exalça e preconiza o desamor. Obra anticristã esta, porque contrária ao espírito do Cristianismo, é igualmente antiespírita, não sendo lícito, portanto, aos que a empreendam ou executem, esperar que Jesus, o meigo Pastor, que de todos os modos a profligou sempre, os confesse perante o Pai, pois que não o confessam perante os homens os que a levam a efeito.

             Desde que sem caridade não há salvação, toda obra que se não ateste obra de amor, por manifesto cunho de caridade moral, é obra de perdição, porque carente daquele espírito cuja ausência o divino Mestre, que a estranhava em seus discípulos de então, certamente não relevará aos que hoje por seus discípulos se têm.

             Praza ao Senhor que, para remediarem à carência, em seus corações, do espírito de que todos devem ser, estes ultimas cada vez mais cuidadosamente atentem no que dos seus seguidores reclama o Consolador e na finalidade real e verdadeira da obra essencialmente construtiva para que ele foi vindo ao mundo, obra essa inconciliável, sob todos os aspectos, com qualquer outra que vise a destruir seja o que for, a demolir, a constranger, a violar, debaixo de qualquer pretexto, a lei de liberdade sobre que repousa toda a estrutura do Cristianismo espírita ou Espiritismo-cristão, porquanto obra de destruição, de demolição, ou de constrangimento da consciência é obra de perdição, perdição dos que a ela se entregam e dos que por ela se deixam empolgar.