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quinta-feira, 30 de agosto de 2018

Dez maneiras de ajudar com segurança




Dez maneiras de ajudar com segurança
André Luiz por Chico Xavier
Reformador (FEB) Novembro 1951


Não discuta.

Se você é aprendiz do Evangelho, não ignora que o Divino Mestre permanece atento, na redenção do mundo, e que devemos estar vigilantes na execução do serviço que nos compete.

*

Não critique.

Observemos o setor de nossas obrigações e realizemos o melhor na obra geral, usando as possibilidades ao nosso alcance.

*

Não reclame.

Contentarmo-nos com o ato de servir é simples dever e quem centraliza a mente na tarefa que lhe é própria não dispõe de tempo para formular queixas inoportunas.

*

Não condene.

Reparemos a parte aproveitável nas situações difíceis e esqueçamos todo mal.

*

Não exija.

Coopera sem rogar a colaboração alheia, de vez que a responsabilidade pertence a todos e cada um de nós será examinado de acordo com as próprias obras.

*
Não fuja.

Jamais olvide que o problema é a lição da vida. O aluno que teme o ensinamento descerá naturalmente à retaguarda.

*

Não se precipite.

Usemos a serenidade. O trabalhador sabe aproveitar os minutos e respeitá-las nunca sofre os castigos do tempo.

*

Não tema.

Quando fixamos o cérebro e o coração em Cristo, somos simples agentes d'Ele e quem cumpre a Vontade do Mestre não deve nem pode recear coisa alguma.

*

Não se engane.

Ninguém precisa aplicar os raios candentes da verdade, a propósito dos mínimos acontecimentos da vida, desfigurando a alegria que deve imperar nos domínios da sementeira e da esperança, mas não perca de vista o que é essencial ao seu progresso, à sua felicidade e à sua redenção para o grande caminho.

*

Não se entristeça.

Lembre-se que o Nosso Mestre é o Salvador pela Ressurreição. Sofrimento, amargura e morte são sombras. A cruz do Amigo Divino era degrau para a Glória Celeste. Seja esse pensamento uma luz permanente em nossa alma que jamais deve abrir-se ao desânimo. A certeza de que somos os seguidores felizes do Cristo Imortal é para nós motivo de soberana resistência e de eterno júbilo.

O óleo e o candieiro



O óleo e o candeeiro
José Brígido (Indalício Mendes)
Reformador (FEB) Setembro 1951

Thuran Nassam odiava seus semelhantes. Perdera todo sentimento de caridade e nem mesmo as crianças lhe inspiravam compaixão. Morava só. Como vivia, entretanto, ninguém o sabia. De quando em quando fazia excursões demoradas, afastando-se noite escura da cabana que construíra no alto de uma colina circundada por espessa vegetação.

A seu respeito muito se comentava, porque seu nome se envolvera em impenetrável mistério. Não cultivava a terra, não tinha amizades, afugentava quem quer que tentasse aproximar-se da sua tosca morada. Era, em suma, um homem estranho e temido.

Certa vez, Thuran Nassam, munido de uma faca de caça, saiu, alta madrugada, na esperança de trazer algo que lhe mitigasse a fome. Não se sabe quando Nussam voltou. A verdade é que, ao abrir a porta, encontrou sentado em sua imunda cama um velho de longas barbas brancas, cujo alforje descansava no chão frio.

Thuran Nassam ficou tão surpreendido que, durante alguns instantes, não pode balbuciar palavra. Foi o velho que falou primeiro:

- Também te perdeste nestas paragens?

- Não! - retrucou Nassam com má vontade. Esta cabana é minha e não quero ninguém mais aqui! Podes ir saindo por onde entraste, antes que eu te faça correr, velho imbecil!

O velho não se alterou. Continuou sentado e não demonstrou nenhum temor pela faca que Tburan Nassam trazia à cintura. Calmo, imperturbável, voltou a falar:

- Não te agastes comigo. Foi Alá que aqui me trouxe. Perdido na estrada, meti-me na mata e, sem o esperar, vim sair defronte à tua cabana. Quem és tu, que tão descaridosamente se dirige a um velho cansado como eu?

- Não te interessa quem sou. Volta por onde vieste, some da minha presença, antes que eu me inflame de cólera!

- Está bem - tomou o velho com voz serena. És, porventura, Ali Bemaram, que foi
cameleiro do mercador Omar?

Ante essa pergunta. Thuran Nassam empalideceu e retirou a faca da cinta. Ali Bemaram era acusado de haver assassinado o mercador e como ninguém conhecia seu paradeiro, o velho supusera estar diante do homicida. Nassam, ensandecido pela raiva, encostou a ponta da arma. no pescoço do ancião, intimando-o:

- Cão miserável! Se não me conheces, como ousas admitir seja eu o assassino de Omar? Saiba que eu sou Thuran Nassam, apenas Thuran Nassam! Nunca matei ninguém, mas é grande a minha vontade de começar por ti, velho intrometido!

O ancião fixou os olhos em Nassam e disse com voz impressionantemente firme:

- Então; mata! Mata, porque ficarás sendo pior que Ali Bemaram. Mata! Bemaraam. trocou a vida de Omar por um saco de cequins. (Pequeno disco de metal amarelado e utilizado como enfeite nas vestes de ciganas.)

E tu, Thuran Nassam, que troca farás? Trocarás a vida de um desconhecido, que nenhum mal te fez, pelo ódio que te inunda a alma?

Podes fazê-lo! Alá, quando me guiou os passos até aqui, tinha um propósito que ignoro. Vivi muito e a vida não me seduz nem me assusta a morte. Sabes porquê? Porque aprendi que a morte nada mais é que a nossa restituição à verdadeira vida. Se a tua sede de ódio só pode ser mitigada com o sangue de um velho inocente, mata-me! Vamos! Onde a tua coragem?! Basta um empurrãozinho para que a tua faca, que já me roça a pele enrugada, faça jorrar meu sangue!

Thuran Nassam perdeu a cor e tremeu! A faca, que seus dedos crispados mantinham firme, vacilou. A mão quase homicida se abriu numa convulsão nervosa e a arma caiu de ponta, ficando espetada no chão! Jamais Thuran Nassam se vira em situação igual. O velho readquiriu sua atitude calma e sua voz se tornou mais suave.

- Fizeste bem. Eu sabia que a tua maldade não chegaria a tal ponto. Agora, sei quem és tu. Já ouvi falar, na aldeia mais próxima, do teu nome. És um misantropo, odeias teus semelhantes, esquecido de que só a ti é que tal ódio prejudica. Porque guardas no coração a fera dos maus instintos?

Thuran Nassam estava abatido. Não sentia ânimo para encarar o velho. Só depois de algum tempo respondeu:

- Tenho sofrido muito. Meu pai me deixou uma faixa de terra que me foi roubada pelos ricaços de Bludel-Azam, perto de Ar-Bharai. Queixei-me ao grão-vizir Aldiel e fui castigado. Procurei auxilio para recomeçar a minha vida e fui tratado como um criminoso. Aqueles que me podiam dar a mão, pois haviam sido ajudados por meu pai, davam de ombro às minhas pretensões. Outros, que se diziam anteriormente meus amigos, desconversavam e se afastavam de mim. Eram meus amigos enquanto eu lhas era útil, mas desde que era preciso que me socorressem, ficavam silenciosos, demonstravam não compreender o que eu lhes dizia e me deixavam ao desamparo, entregue ao meu desespero. Foi por isto que me afastei de todos e hoje não confio em ninguém...  

O velho, que ouvira atentamente suas palavras, perguntou-lhe:

- Algum dia alegraste teus olhos nas páginas do livro sagrado?

- Não sei de que livro falas.

O Evangelho, amigo. Trago-o sempre em minha companhia. Tenho-o no alforje que aí vês.

E se curvou sobre o saco, de lá retirando o livro santo.

- Sinto que não és tão mau quanto queres parece, Nassam. E somente tens ódio porque estás divorciado do Pai Supremo. Saibas, entretanto, que o ódio é irmão do amor. Se na Escritura encontramos Caim e Abel, na vida também podemos encontrar o ódio e o amor. Ambos são fonte prodigiosa de energia espiritual, sendo que o amor é a energia bem aproveitada, e energia que ilumina e engrandece, o ódio é a energia mal empregada, que em vez de luz gera a escuridão da alma. O maior trabalho do homem está justamente em transformar essa escuridão em luz, em disciplinar essa energia mal orientada e aproveitá-la, transformando-a em amor. A propósito, tens ali, sobre a mesa, um candeeiro. Quero ler alguns versículos do Evangelho para que sejam ouvidos mais pelo teu Espírito do que pela matéria que ele anima. Podes acendê-lo?

Thuran Nassam resmungou:

- Não tenho lume...

- Tenho-o eu - retrucou o velho.

Nassam, no entanto, atalhou:

- O candeeiro está vazio, sem óleo...

Então, o velho, sempre sereno e complacente, esclareceu:

- Tanto melhor...

- Tanto melhor? - indagou Nassem, instintivamente.

- Sim, tanto melhor. É por isto que tua cabana tem estado imersa na treva?

- É - respondeu secamente Nassam.

- Sabes que Alá dispõe as coisas sempre com acerto? Tu és também um candeeiro sem luz. Antes de partir deixarei em tuas mãos o óleo de que necessitas para a iluminação do Espírito. Toma este Evangelho. Inunda com ele a tua alma, o teu candeeiro. Enche-o bem, o mais que puderes com a leitura, com o estudo do livro sagrado. Lembra-te, contudo, de que isso não será suficiente. Para acender o candeeiro é preciso lume. Sabes como obtê-lo? Pela caridade, trocando o ódio pelo amor, dando sempre amor, mesmo quando seu preço seja o sofrimento. A dor não deixa de ser uma advertência do Alto. Se soubermos aproveitá-la para melhorar o nosso íntimo, teremos ouvido o sinal de "sentido!" celestial. Todos te temem. Terás, portanto, de realizar um esforço sobre humano para vencer. Começa, porém, vencendo-te a ti mesmo. Trava luta séria com os teus preconceitos, e. embora sejam muitas as tuas queixas justificadas, procura esquecê-las. Perdeste muito tempo, Nassam. Levaste muitos anos com o candeeiro vazio e a alma às escuras. Mas todo tempo é tempo para se tentar a retificação do caminho.

Surpreendentemente, daqueles olhos que antes chispavam ódio, rolavam lágrimas. O velho vencera a luta desigual. Thuran Nassam não se dominava mais. Chorava. Alguma coisa diferente lhe tocara o coração.  

E o velho prosseguiu:

- Cuida primeiro de ti. Procura triunfar sobre as tuas dúvidas. Domina teus rancores e elimina-os do coração. A vitória maior será a que conquistares contra os teus defeitos. Alá escreve direito por linhas tortas. Não foi sem motivo que eu me perdi na estrada. Não foi sem razão que me embrenhei na mata e aqui vim dar. Fui guiado pela mão do Todo-Poderoso! Bendito seja Seu nome!

Nesse interim, Thuran Nassam sentiu curiosidade pelo Evangelho. Ía abri-lo, quando o velho ponderou:

- Este é o óleo de que precisa o teu candeeiro. Guarda-o com carinho, porque é inesgotável. Se souberes cultivá-la nunca mais ficaram vazio o candeeiro...             

Thuram Nassam, refeito das emoções que o haviam assaltado, encorajou-se a perguntar:

- Que farei com ele sem lume?

- Tens razão. A verdade é que somente poderás acender o óleo com o lume da exemplificação. Assim como não basta ter o candeeiro cheio se não há fogo para queimar o óleo assim também não basta ler o Evangelho, não é suficiente saber de cor todos os versículos e propagá-los a outrem. O indispensável é dar, sempre que se oferecer uma oportunidade, o exemplo de que o Evangelho está no coração e não apenas nos lábios. Ter o Evangelho no coração é aprender a ser caridoso, é perdoar, é esquecer as ofensas, é retribuir com o bem o mal que nos fazem. O mundo está cheio de ingratidões, mas precisamos compreender que o mal existe por culpa do homem que está distanciado de Alá. Pelo bem, havemos de conquistar o mal. As dores serão muitas, os desenganos nos espreitam a cada passo, de modo que precisamos estar alerta, iluminando a estrada da nossa vida com o óleo santo do Evangelho.

Thuran Nassam estava outro homem.

Nunca ninguém lhe havia dito coisas tão elas e tão úteis. Num repente, baixou-se, arrancou a faca que se achava fincada no chão e disse ao velho:

- Quero que me perdoes, desconhecido. Vou quebrar esta faca e lançar longe dos meus olhos os seus pedaços!

E ia fazê-lo, quando o ancião lhe segurou o braço:

- Não deves desfazer-te dessa arma, Nassam. Guarda-a com carinho porque ela deve ser para ti um símbolo. Talvez marque o início da tua libertação espiritual. Guarda-a.

E sem mais palavra, pôs sobre os ombros o alforje, abriu a porta e partiu, desaparecendo na mata espessa ...


terça-feira, 28 de agosto de 2018

Acordar e erguer-se



Acordar e erguer-se
Emmanuel por Chico Xavier
Reformador (FEB) Dezembro 1951

"Desperta tu que dormes!
Levanta-te dentre os mortos e Cristo te iluminará."
- Paulo. Efésios, 5: 14

Há milhares de companheiros nossos que dormem, indefinidamente, enquanto se alonga debalde para eles o glorioso dia de experiência sobre a Terra.
Percebem vagamente a produção incessante da Natureza, mas não se recordam da obrigação de algo fazer a benefício do progresso coletivo.
Diante da árvore que se cobre de frutos ou da abelha que tece o favo de mel, não se lembram do comezinho dever de contribuir para a prosperidade comum.
De maneira geral, assemelham-se a mortos preciosamente adornados.
Chega, porém, um dia em que acordam e começam a louvar o Senhor, em êxtase admirável...
Isso, no entanto, é insuficiente.
Há muitos irmãos de olhos abertos, guardando, porém, a alma na posição horizontal de ociosidade. É preciso que os corações despertos se ergam para a vida, se levantem para trabalhar na sementeira e na seara do bem a fim de que o Mestre os ilumine.
Esforcemo-nos por alertar os nossos companheiros adormecidos, mas não olvidemos a necessidade de auxiliá-los no soerguimento.
Imprescindível saibamos improvisar os recursos indispensáveis em auxilio dos nossos afeiçoados ou não que precisam levantar-se para as bênçãos de Jesus.
Não basta recomendar.
Quem receita serviço e virtude ao próximo, sem antes prepara-lhe o entendimento através do espírito de fraternidade, identifica-se com o instrutor exigente que reclama do aluno integral conhecimento acerca de determinado e valioso livro, sem antes ensiná-lo a ler.
Disse Paulo - "Desperta tu que dormes! levanta-te dentre os mortos e Cristo te Iluminará." E nós repetiremos: - "Acordemos para a vida superior e levantemo-nos na execução das boas obras e o Senhor nos ajudará, para que possamos ajudar os outros."

domingo, 26 de agosto de 2018

O Espiritismo não é arte adivinhatória



O Espiritismo não é arte adivinhatória
por Indalício Mendes
Reformador (FEB) Dezembro 1951

Em artigos anteriores, dissemos da posição que o médium deve adotar em face da Mediunidade. Demonstramos que a profissionalização do serviço mediúnico representa um desrespeito à misericórdia divina, e que nada mais é, do ponto de vista moral, do que a simonia (compra e venda de coisas espirituais como indulgências e sacramentos ou mesmo benefícios eclesiásticos) que se observa em certas religiões. Quem se vale do trabalho mediúnico para ganhar dinheiro ou obter qualquer outra vantagem de ordem material, trai a Jesus, reeditando o episódio de Judas Iscariotes, que trocou a desgraça por trinta dinheiros.

O médium deve lutar com todas as suas forças contra essa tentação. Não deve esquecer-se de que Jesus expulsou do templo os vendilhões, e tão reprovável considerou o atrevimento deles que empregou meios e palavras enérgicas, conforme refere João (2:14 a 17): "não façais da casa do meu Pai uma casa de negócio". Muito pior, sem dúvida, é o ato daqueles que mercantilizam o dom mediúnico, o qual constitui crime contra a majestade de Deus, vilipêndio à personalidade amorosa de Jesus.

A vaidade é outro dos grandes perigos que rodeiam os médiuns. Porque deve o médium envaidecer-se, uma vez que o "seu trabalho" não é rigorosamente trabalho seu, sendo ele apenas instrumento para que se realize o trabalho de um mensageiro espiritual? Porque ter vaidade e orgulho, se a qualidade que mais enobrece o médium é a humildade esclarecida. São palavras do Mestre amado: " ...todo aquele que se exalta será humilhado; mas todo aquele que se humilha será exaltado". Ser humilde não é senão ser modesto, nunca servil. Jesus traçou o itinerário moral que pode levar o homem ao bem-estar espiritual, ensinando-lhe a olhar para a frente e para o alto, sem orgulho, sem vaidade, mas com firmeza e, fé, com modéstia e serenidade. A humildade esclarecida é uma força: a altivez arrogante, uma fraqueza.

Eis porque nos entristecemos quando vemos um médium ensoberbecido, cheio de si, falastrão, egocêntrico, com ares de superioridade, quando, a rigor, não é mais do que um fonógrafo... Só fala quando lhe põem um "disco"... Há dias chegou-nos às mãos curioso cartão de visita, de um médium pouco esclarecido. Diz assim: "Fulano de Tal - médium formado pelo Centro X"!!! No caso, a maior responsabilidade é dos dirigentes dessa agremiação "soi-disant” (que se faz passar por)  espírita, pois que a eles cabe o dever de encaminhar corretamente aqueles que por lá apareçam, desejosos de receber ensinamentos, luzes e caridade, ou que o frequentam para desenvolver suas qualidades mediúnicas. Já têm sido feitas tentativas para "doutorar" médiuns. Ora, qualquer pessoa pode "doutorar-se" em Espiritismo sem precisar de diplomas ou atestados a anéis de grau. Basta que estude diariamente o Evangelho de Jesus e procure exemplificar as lições do Mestre, porque só Ele tem real autoridade para laurear seus discípulos. Esses lauréis, no entanto, não têm preço material, porque sua cotação se faz espiritualmente. Quanto menos apegado for o homem às coisas inferiores da Terra, mais alto se colocará no julgamento divino.

A insinceridade é outra nódoa que enfeia a aura de muitos médiuns. Na ânsia de parecerem em condições de dar o que não podem, recorrem à simulação ou permitem, pelas facilidades que oferecem, manifestações puramente anímicas. Num caso, enganam o próximo; noutro, à si mesmos e a outrem. Os médiuns que traem sua nobre missão, acabam tristemente. Mas há também os que, não sendo médiuns, se imiscuem no ambiente espírita para explorar a credulidade dos simples. São os falsos profetas de que nos fala Jesus no Evangelho: Guardai-vos dos falsos profetas, que vêm a vós com vestes de ovelhas, mas por dentro são lobos vorazes". O Espiritismo nada tem que ver com a cartomancia, a quiromancia, a astromancia, a horoscopia, etc., pois para exercê-las não é imprescindível o trabalho mediúnico, embora, possa um cartomante, quiromante, astromante, ou horoscopista possuir, concomitantemente, qualidades mediúnicas, de vez que estas independem da natureza física e moral do indivíduo, da sua profissão, do seu grau de instrução, das suas tendências ou preferências. O próprio Allan Kardec afirmou: "Assim como a Astronomia destronou os astrólogos, o Espiritismo veio destronar os adivinhos, os feiticeiros e os que liam a buena dicha" (sorte boa ou má de uma pessoa, supostamente revelada por algum procedimento ocultista como a leitura de cartas, linhas das mães) . O Espiritismo, portanto, não tem por fim lançar-se a remígios adivinhatórios, ou a prognósticos ocultos do destino pois sua função na Terra é bem mais elevada e importante, visto como se destina a reformar o caráter humano, condicionando-o às necessidades evangélicas. Seu objetivo é grandioso, de vez que já representa o restabelecimento do verdadeiro Cristianismo entre os homens, pela pureza da sua Doutrina, pela conjunção de vista entre as grandes entidades espirituais que encabeçam as legiões de trabalhadores de Jesus e os mentores das organizações espíritas cristãs, fiéis aos programas estabelecidos para a sua rota terrena. É o "Irmão X" na obra mediúnica Lázaro Redivivo, quem nos completa o pensamento ao declarar: "Se o Espiritismo tivesse por advogados tão somente os magos do revelacionismo barato, a grande doutrina jamais passaria de movimento anedótico, em que o palpite e o boato se encarregariam de interceptar a luz divina".

São inúmeros os casos de médiuns que predisseram o futuro, mas em caráter excepcional e obedecendo a fins superiores, como, por exemplo, Swedenborg e Nostradamus, para mencionar apenas dois. O leitor poderá surpreender-se e perguntar "Nostradamus?" Sim, Nostradamus. Ele próprio confessou, na famosa carta ao rei Henrique II, de 14 de Março de 1547, que as suas profecias foram "compostas sobretudo por uma natural intuição". Médium intuitivo de grande poder, Nostradamus foi também médium vidente, conforme revelou nestas palavras constantes da carta referida: "...confesso firmemente que todas as minhas fontes de inspiração vêm de Deus, a quem eu rendo graças, honra e louvores imortais; que não lhes misturei nenhuma adivinhação proveniente do Acaso, mas que elas são da natureza de Deus; que apontei tudo em relação com o curso dos astros, como se percebesse um espelho de fogo e através de uma visão nebulosa, os grandes acontecimentos tristes ou prodigiosos, assim como os calamitosos casos que se aproximam", etc.

Feita esta ligeira digressão em torno de Miguel de Nostradamus, desejamos salientar que, hoje, os tempos são outros. Em Sua época, Nostradamus talvez não pudesse ter dito como se punha em comunicação com o Desconhecido. Por muito menos outros "profetas" foram lançados à fogueira como feiticeiros. Os fenômenos espíritas já existiam, pois se presume que existam desde que o homem habita a Terra. O Velho Testamento nos dá numerosos exemplos de manifestações mediúnicas, de ocorrências tipicamente espíritas. Antes, iremos encontrar vestígios impressionantes do mediunismo na vida de antigos povos orientais, pois "há, para todas as coisas, um tempo determinado por Deus" consoante o "Eclesiastes".

Emprestar-se ao Espiritismo função adivinhatória, será deturpar sua real finalidade amesquinhá-lo e comprometê-lo. A nossa Doutrina é de Jesus, caracteriza-se por sua simplicidade e elevação de propósitos, de modo que só pode ser confundida por quem não possua olhos de ver. Espiritismo é somente, e exclusivamente, Espiritismo. Não é, como bem disse o Codificador, uma arte de adivinhar e especular.
             

Da responsabilidade dos espíritas




Da responsabilidade dos espíritas
por Demetri Abrão Nami
Reformador (FEB) Novembro 1951

A imprensa espírita vem publicando, com frequência, notícias auspiciosas para o Espiritismo, ou sejam, a criação de Escolas Evangélicas nos Centros e Mocidades Espíritas.

Vem sendo maior, ultimamente, o interesse dos espíritas pelo Evangelho, fato que nos leva a arrazoar o conceito do iluminado Espírito de Humberto de Campos, quando dissera que o Brasil é Pátria do Evangelho, Coração do Mundo.

Não há dúvida de que para aqui foi transplantada a árvore do Cristianismo, pois, sem favor, é no Brasil que se pratica e se estuda mais o Evangelho na sua primitiva pureza.

É deste recanto do Globo, assinalado pelo Cruzeiro do Sul, que se irradiarão as luzes benditas do vero Cristianismo, que norteará a Humanidade para mais felizes destinos.

Os espíritas, capacitados desta feliz circunstância, através das repetidas revelações do Alto, vêm-se empenhando ativamente na difusão e prática evangélicas, buscando, cada qual, dar o que pode neste sentido.

Espíritas ricos ou pobres, cultos ou iletrados, todos podem fazer alguma coisa neste terreno, quer através da pena ou da tribuna, quer através dos exemplos ou das obras.

Por isso, é com a maior alegria que aplaudimos as atividades dos nossos companheiros de crença espírita no setor evangélico.

Os aspectos científico e filosófico eram o que mais interesse despertavam, em prejuízo do aspecto religioso. Agora, felizmente, todos eles vêm merecendo igual atenção.

Os espíritas compreendem, perfeitamente, que a força de uma doutrina está nos benefícios morais que oferece a todos os que nela se abeberam. Pois bem, não sabemos de nenhuma outra que ultrapasse ao doutrina espírita.

Cabe, portanto, aos espíritas a responsabilidade, perante o Alto, de viverem o mais possível os seus ensinamentos, como detentores que são das verdades eternas. Com os seus bons exemplos e o devotamento sincero à doutrina esposada, contribuirão poderosamente para a moralização dos costumes. Proporcionarão, ainda, abrigo aos abandonados, resignação aos enfermos, esperança aos desesperados, vigor aos desanimados, implantando, desta forma, o Reino de Deus na Terra.

É grande a tarefa do Espiritismo.

E os espíritas sabem que ele é, de fato, o Consolador prometido pelo Nazareno, fadado a estabelecer, na Terra, o Reino do Criador.
Compete-nos cooperar nessa divina realização, através da nossa perseverança no bem e dos nossos ensinamentos e obras edificantes.

Ferremo-nos de tudo quanto possa obstar o nosso trabalho na Seara do Mestre; estejamos sempre a postos ao toque do Alto, envidando o que de melhor possuímos para a concretização do ideal do Cristo.

quinta-feira, 23 de agosto de 2018

Comunicações Espíritas




Comunicações Espíritas
Reformador (FEB) Novembro 1951

Das causas seguintes podem derivar as contradições que se notam nas comunicações espíritas: da ignorância de certos Espíritos; do embuste dos Espíritos inferiores que, por malícia ou maldade, dizem o contrário do que disse algures o Espírito cujo nome eles usurpam; da vontade do próprio Espírito, que fala segundo os tempos, os lugares e as pessoas que pode julgar conveniente não dizer tudo a toda gente; da insuficiência da linguagem humana, para exprimir as coisas do mundo incorpóreo; da insuficiência dos meios de comunicação, que nem sempre permitem ao Espírito expressar todo o seu pensamento; enfim, de interpretação que cada um pode dar a uma palavra ou a uma explicação, segundo suas ideias, seus preconceitos, ou o ponto de vista donde considere o assunto. Só o estudo, a observação, a experiência e a isenção de todo sentimento de amor próximo podem ensinar a distinguir estes diversos matizes.

segunda-feira, 20 de agosto de 2018

Significação da palavra morte



Significação da palavra morte
Indalício Mendes
Reformador (FEB) Novembro 1951
 
And Life, still wreathing flowers for Death to wear. - Rossetti

Seja lá o que for a vida, é para nós uma abstração: porque essa palavra constitui um termo geral indicativo duma coisa comum a todos os animais e plantas, mas não existente de modo direto no mundo inorgânico. Para compreendermos a vida temos de estudar as coisas vivas e ver o que há nelas de comum. Um organismo é vivo quando afeiçoa a matéria duma forma especial e utiliza-se da energia para os seus fins próprios - sobretudo o crescimento e a reprodução. Um organismo vivo, enquanto permanece vivo, defende a sua complicada estrutura contra a deterioração e a desagregação.

Morte significa a cessação dessa influência controladora exercida sobre a matéria e a energia, de modo que a ação física e química retomam o seu curso. Morte não é apenas ausência de vida; tal palavra significa a partida ou a separação da vida - o ato de esse princípio abstrato a que chamamos vida separar-se do resíduo concreto. E a palavra morte só se aplica às coisas que vivem.

A morte, pois, pode ser considerada uma dissociação, uma dissolução, uma separação entre a entidade controladora e a substância físico-química dum organismo; uma separação entre a alma e o corpo.

Morte não quer dizer extinção. Nem a alma nem o corpo se extinguem, isto é, deixam de existir. O corpo morto pesa tanto como pesava em vivo; no momento da morte só perde as suas propriedades potenciais. Assim, também, tudo quanto podemos afirmar do princípio vital que o animava e que já não anima aquele organismo material: se esse princípio vital conserva a sua atitude ou não, só estudos ulteriores no-lo poderão informar.

A forma visível do corpo não era acidente; correspondia a uma realidade, porque causada pela presença da força vivificante; e a afeição inevitavelmente enlaça não só a verdadeira personalidade do morto como também o que constituiu o seu veículo material - signo e símbolo de tanta beleza e amor. Os símbolos falam ao coração humano e qualquer coisa querida e honrada torna-se algo de valor intrínseco, que não pode ser olhado com indiferença. As velhas bandeiras dum regimento ao qual os homens fizeram o sacrifício de suas vidas - embora trocadas por novas - não se recolhem sem dor de coração. E as pessoas de sensibilidade que contemplam tais relíquias sentem algum eco do passado e desejam conhecer-lhes a história.

Quando dum corpo dizemos que está morto, podemos estar falando acertadamente. Mas quando dizemos que uma pessoa está morta, já a nossa expressão se torna ambígua, porque a referência poderá ser apenas ao corpo dessa pessoa e só nesse caso estaremos certos. Mas se há também referência à personalidade, ao caráter, ao que realmente constituía essa pessoa, nesse caso a expressão "está morto" sofre restrições. A pessoa foi-se, passou; passou pelo corpo e foi-se", como diz Browning no "Alt Vogler" - mas não está morta no sentido que aplicamos a palavra morte ao corpo. É justamente esse ausentar-se da personalidade que permite ao corpo morrer, dissolver-se; a personalidade em si não está sujeita à dissolução. Ao contrário, emancipou-se do corpo; libertou-se do peso da matéria, embora com o destacar-se da carne haja perdido as potencialidades terrestres que
o mecanismo corporal lhe conferia; e se essa personalidade ainda pode agir na Terra será com dificuldade e mediante a cooperação das que ainda não se separaram do corpo, Às vezes tal personalidade pode pôr em ação adequados mecanismos energéticos; mas o mecanismo que em tempo foi o seu, esse está perdido: continua a existir, mas fora de ação - morto.

O costume é chamarmos mortos aos que perderam o corpo material. Não mais os consideramos como vivos - porque na linguagem comum vivos só são os que ainda se conservam associados ao corpo material. É nesse sentido que coletivamente falamos dessas personalidades como "os mortos".

Não devemos ter medo da palavra, nem hesitar em seu emprego, quando os que nos ouvem a recebem neste sentido limitado. Se as ideias associadas à palavra "morte" fossem sempre judiciosas e sãs, razão nenhuma teríamos para falar de morte compungidamente. Mas o povo e também os sacerdotes sempre a usaram tão mal, associando-a apenas aos fatos físicos do corpo abandonado pela personalidade, que isso tornou admissível, por um tempo, a sua substituição por outras expressões menos ambíguas, como "transição" ou "passamento". A mudança ainda vale, hoje, como protesto contra a política de ater-nos a vermes, túmulos e epitáfios, ou à ideia duma geral Ressurreição com o retorno à vida de todos os corpos enterrados. Em antagonismo a essas superstições surge a afirmativa de que "a morte não existe".

Claro que familiarmente falando a morte existe, e nada adiantaria negar um fato. Mas ninguém pretende negar fatos; os que afirmam não haver morte apenas querem desviar o pensamento dum aspecto já muito insistido para pô-la no outro lado - o que diz respeito à personalidade. O que a expressão "não há morte" significa é que não há extinção. O processo da morte não passa de mera separação entre a alma e o corpo - e com isso a alma liberada do corpo mais ganha do que perde. Só o corpo morre e desagrega-se mas nem para ele há extinção: há mudança. Já para a outra parte, a personalidade, dificilmente admitiremos mudança - exceto no que diz respeito ao ambiente, ao meio. Muito improvável que o caráter e a personalidade estejam sujeitos a súbitas revoluções ou mutações. Potencialmente poderão diferir em virtude das diferenças de oportunidades, mas no momento atual conservam-se os mesmos. Como uma curva; a curvatura muda mas sem descontinuidade.

Morte não é palavra de temer, como não é de temer a palavra nascimento. Nós mudamos de estado ao nascer, penetrando num mundo de ar e sensações e de inúmeras existências. Na morte também mudamos de estado, penetrando num mundo de ... de quê? De Éter, penso, onde teremos a sensação de ainda mais numerosas existências. Penetramos numa zona onde a comunhão entre os seres deve recordar isso a que chamamos telepatia. e onde o intercurso dos seres não é ao modo do nosso físico; zona em que a beleza e o conhecimento são mais vividos do que aqui; região em que o progresso é possível e em que há mais “admiração, esperança e amor” do que aqui. E neste sentido podemos dizer, com Tennyson: "Os mortos não estão mortos, sim mais vivos".

A vida é contínua e as condições da existência em conjunto permanecem as mesmas de antes. As circunstâncias mudam para o indivíduo que merece, mas só no sentido de torná-lo capaz de acesso a um diferente grupo de fatos. A mudança do meio ambiente é subjetiva. Esses fatos diferentes sempre existiram, ao modo das estrelas que estão no céu em pleno dia, mas fora da nossa percepção. Com a "passagem", esses fatos novos entram para a nossa percepção - e os fatos velhos perdem-se em nossa memória.

O Universo é um, não dois. Literalmente, não existe o "outro mundo". A não ser no sentido restrito em que damos o nome de mundo a outros planetas, não existe outro mundo. O Universo é uma unidade. Nele existimos continuamente, por todo o tempo: às vezes, conscientes de um certo modo; outras vezes, conscientes de outro modo. Durante algum tempo, conscientes dum grupo de fatos; depois, conscientes de outro grupo de fatos - os fatos do "outro lado". Mas essa divisão em "lados" é meramente subjetiva. Permaneceremos a mesma família, enquanto os liames da afeição persistirem. E para os que dão valor à prece, cessar de orar pelo bem de nossos amigos só porque com a morte
eles se tornaram materialmente inacessíveis – embora, talvez, se tenham tornado espiritualmente mais acessíveis - é sucumbir ao peso residual de velhas abusões (enganos, ilusões) eclesiásticas e perder o ensejo de um bom serviço.

                      (Cap. XXI do livro "Raymond", de Oliver Lodge, ed. da Soc. Metapsíquica de S. Paulo.)

domingo, 19 de agosto de 2018

Renova-te sempre



Renova-te sempre
Emmanuel por Chico Xavier
Reformador (FEB) Março 1953

"Ainda que o nosso homem exterior se corrompa, o interior, 
contudo, se renova, dia a dia." – Paulo. II Coríntios 4: 16

Cada dia tem a sua lição.
Cada experiência deixa o valor que lhe corresponde.
Cada problema obedece a determinado objetivo.
Há criaturas que, torturadas por temores contraproducentes, proclamam a inconformação que as possui, à frente da enfermidade ou da pobreza, da desilusão ou da velhice.
Não faltam, no quadro da luta cotidiana, os que fogem espetacularmente dos deveres que lhes cabem, procurando, na desistência do bom combate e no gradual acordo com a morte, a paz que não podem encontrar.
Lembra-te de que as civilizações se sucedem no mundo, há milhares de anos, e que os homens, por mais felizes e por mais poderosos, foram constrangidos à perda do veículo de carne para o acerto de contas morais com a eternidade.
Ainda que a prova te pareça invencível ou que a dor se te afigure insuperável, não te retires da posição de lidador, em que a Providência Divina te colocou.
Recorda que amanhã o dia voltará ao teu campo de trabalho.
Permanece firme, no teu setor de trabalho, educando o pensamento na aceitação da Vontade de Deus.
A moléstia pode ser uma intimação transitória e salutar da Justiça Celeste.
A escassez de recursos terrestres é sempre um obstáculo educativo.
O desapontamento recebido com fervorosa coragem é trabalho de seleção do Senhor em nosso benefício.
A senectude do corpo físico é fixação da sabedoria para a felicidade eterna.
Sê otimista e diligente no bem, entre a confiança e a alegria, porque, enquanto o envoltório de carne se corrompe, pouco a pouco, a alma imperecível se renova, de momento a momento, para a vida imortal.
           

O homem que não se irritava



O homem que não se Irritava
Irmão X por Chico Xavier
Reformador (FEB) Novembro 1951

            Existiu um rei, amigo da sabedoria, que, depois de grande trabalho para subjugar a natureza interior, convidou um filósofo para socorrê-lo no aperfeiçoamento da palavra. Conseguira indiscutível progresso na arte de sublimar-se. Fizera-se portador de primorosa cultura e, tanto no ministério público, quanto na vida privada, caracterizava-se por largos gestos de bondade e inteligência. Fazia quanto lhe era possível para exercer a justiça, segundo os padrões da reta consciência, e demonstrava inexcedível carinho na defesa e proteção do povo, através de reiteradas distribuições de lã e trigo, a fim de que as pessoas menos favorecidas pela fortuna não sofressem frio ou fome. Não sabia acumular tesouros exclusivamente para si e, em razão disso obedecendo às virtudes sociais de que se fizera o exemplo vivo, instituíra escolas e abrigos e incentivara a indústria e a lavoura, desejando que todos os súditos, ainda os mais humildes, encontrassem acesso à educação e à prosperidade.

No círculo das manifestações pessoais, contudo, o valoroso monarca se sentia atrasado e hesitante. Não sabia disfarçar a cólera, não continha a franqueza rude e nem sopitava o mau humor. Admirado e querido pelas qualidades sublimes que pudera fixar na personalidade, sofria, no entanto, a mágoa e a desconfiança de muitos que passaram a temer-lhe a frase contundente.

Interessado, porém, na própria melhoria, solicitou ao filósofo que lhe acompanhasse a lide cotidiana.

Quando se descontrolava, caindo nas amargas consequências do verbo impensado, o orientador observava, com humildade:

- Poderoso senhor, tenha paciência e continue trabalhando no aprimoramento das próprias manifestações. A expressão serena e sábia revela grandeza interior que reclama tempo para ser devidamente consolidada. Quem alcança a ciência de falar pode conviver com os anjos, porque a palavra é, sem dúvida, a continuação de nós mesmos.

O monarca não se conformava e, em desespero passivo, confiava-se a rigoroso silêncio, que prejudicava consideravelmente os negócios do reino.

De semelhante posição vinha rouba-lo o filósofo, advertindo, respeitoso:

- Amado soberano, a extrema quietude pode traduzir traição aos nossos deveres. A pretexto de nos reformarmos espiritualmente, não será lícito desprezar os nossos compromissos com o progresso comum. Fale sempre e não desdenhe agir! O verbo é a projeção do pensamento criador.

O rei voltava a conversar, beneficiando o extenso domínio que lhe cabia dirigir, mas lá chegava outro momento em que se perdia na indignação excessiva, humilhando e ferindo ministros e vassalos que desejaria ajudar sinceramente.

Lamentando-se, aflito, vinha o filósofo conselheiral, afirmando, prestimoso:

- Grande soberano, tenha paciência consigo mesmo. O reajustamento da alma não é obra para um dia. Prossiga, esforçando-se. Toda realização pede o concurso abençoado das horas... O rio deixaria de existir sem a congregação das gotas... Guarde calma, muita calma. e não se desanime...

O monarca, no entanto, desacoroçoado, depois de regular experimentação com o filósofo, exonerou-o das funções que ocupava e expediu dois emissários às suas províncias extensas para que lhe trouxessem a palácio algum homem incapaz de se irritar. Pretendia entrar em contato com o espírito mais equilibrado de suas terras, a fim de melhor orientar-se no auto-burilamento.

Os mensageiros iniciaram as investigações, mas Impacientavam-se desiludidos. O homem que observavam ponderado na via pública era colérico no lar. Quem se revelava gentil em casa, costumava irar-se na rua. Alguns se mostravam distintos e agradáveis junto da família consanguínea, todavia, eram azedos no trato social. Diversos exibiam formosa máscara de serenidade com os estranhos, no entanto, dirigiam-se aos domésticos com deplorável aspereza.

Depois de trinta dias de porfiada pesquisa, descobriram, jubilosos, o homem que nunca se exasperava.

Seguiram-no, cuidadosamente, em toda parte. Nunca falava alto e mantinha silêncio comovedor, no domicílio que lhe era próprio e fora dele.

Durante quatro semanas foi examinado sob atenção vigilante, não perdendo um til na conduta irrepreensível.

Trabalhava, movimentava-se, alimentava-se e atendia aos menores deveres; imperturbavelmente.

Apressaram-se os mensageiros em levar a boa nova ao monarca e o rei, satisfeito, convocou assessores e áulicos de sua casa para receber a personagem admirável, com a dignidade que lhe era devida.

O vassalo venturoso foi trazido à real presença, entretanto, quando o soberano lhe dirigiu a palavra, esperando encontrar um anjo num corpo de carne, verificou, sob Indefinível assombro, que o homem incapaz de irritar-se era mudo.

Sob o respeito manifesto de todos, o rei sorriu, desapontado, e mandou buscar novamente o filósofo resignando-se a ter paciência consigo mesmo, a fim de aprender a conquistar-se pouco a pouco.