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quarta-feira, 15 de agosto de 2018

Família Kardecista?



Família Kardecista
Partes  1 e 2     (1)
Romeu A. Camargo
Reformador (FEB) Janeiro 1942

(1) Embora o estimado confrade e distinto amigo, autor destes artigos, os tenha enviado para o Reformador ao mesmo tempo que para outros periódicos espíritas, só muito depois que estes os divulgaram a nossa revista os insere, pela razão de ser mensal a sua publicação, ao passo que a daqueles periódicos é quinzenal ou semanal. Pomos aqui esta nota para assinalar que não se trata de transcrição ou reprodução, que teriam outro significado.

Com bastante desprazer venho escrever estas linhas, dada a natureza do assunto. Faço-o, todavia, porque a isso me sinto impelido. Sim, uma obrigação moral manda-me sair do silêncio em que venho vivendo há três anos. E obrigação moral é bem um sinônimo de "dever". Julgo-me, portanto, no indeclinável dever de traçar este artigo, e espero fazê-lo de modo a deixar sem sombra a intenção que me conduz a estas colunas.

Antes de esflorar a assunto anunciado ou denunciado no título destas linhas, quero dizer duas palavras, à guisa de introdução, para justificar não somente o meu reaparecimento, como principalmente a minha atitude.

O Protestantismo é credor de minha eterna gratidão. Foi no seio da Igreja Presbiteriana que aprendi a ler e meditar o Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo. Guardo a data em que recebi essa benção da misericórdia de Deus: 21 de Junho de 1901, sábado. Quarenta anos e seis meses feitos.

Em Outubro de 1923, neófito no Espiritismo, senti dobrado interesse pela leitura e meditação do volume por todos os títulos sagrado. O Evangelho é, para mim, o espelho refletor de toda a ciência espiritual, porque é a palavra do Senhor e Mestre único, e por isso mesma é o Código Moral da Vida (com V maiúsculo, significando a existência em sua plenitude, na Tempo e no Espaço, e não somente durante a passagem neste mundo físico ou planeta (Espaço); ou seja a existência não limitada pela idade (Tempo); Vida ligada à infinidade do Tempo ou Imortalidade).

Sem laivo ou mostras de vanglória ou de vaidade, quero confessar que, durante os 22 anos de saudoso convívio com os zelosos irmãos protestantes, procurei sempre auxiliá-los em sua multíplice atividade evangelizadora (no púlpito, na imprensa, na escola dominical, nas visitas domiciliares, etc.) O desejo de um era o da comunidade: repartir com os de fora da Igreja as lições que o Mestre e Senhor dá a todos os pecadores, nas páginas do Evangelho, a fim de que se orientem e se conduzam como verdadeiros cristãos. Por mais de duzentas vezes, tive o prazer de ocupar o púlpito de quase todas as comunidades evangélicas da Capital e o de muitas do interior. Sinto-me altamente honrado em dizer que trabalhei ao lado do meu grande amigo, o saudosíssimo pastor Eduardo Carlos Pereira, o maior teólogo, o maior tribuno da Igreja Evangélica no Brasil; de todos os tempos. Seu nome é bastante conhecido, como o maior gramático dos tempos modernos.

*

Essas reminiscências de minha vida no Protestantismo vieram para estas linhas, não para que seja posto em destaque o nome da minha Ilustre obscuridade, mas para dizer que falo com pleno conhecimento de causa, por experiência própria, nesse longo convívio com irmãos filiados a ramos diversos do Protestantismo. Nesse particular, falo com alguma autoridade. É sabido que, só nos Estados Unidos, o Protestantismo apresenta mais de 200 seitas todas, porém, dentro da Bíblia, e no Brasil existem mais de 30 denominações com suas igrejas organizadas. Tratei disto, documentadamente nesse livrinho há pouco publicado ("Salvação pela fé ou pelas obras” pág. 16.)

Como é fácil de prever, diferenças e antagonismos existem entre essas numerosas denominações, seja na forma governativa ou eclesiástica, seja na parte doutrinária ou exegética (explicativa, interpretativa). Não fora a impropriedade do momento e apontaria casos interessantes e mesmo curiosos. Contudo, citarei isto: um crente da Igreja Batista sabe que não deve batizar seus filhinhos porque o texto normativo do seu credo diz expressamente: "O que crer e for batizado, será salvo", (Marcos, 16: 16). Ora, uma criança não pode crer; logo, não deve ser batizada. E a Igreja Batista não batiza crianças. E essa Igreja vai mais longe; acredita que só é valido o batismo por imersão, de modo que o batizando seja completamente mergulhado (imerso), ou no rio, ou na piscina da Igreja (batistério). Para os batistas, não vale o batismo por aspersão (aspergir ou derramar água na cabeça), como se faz na Igreja Romana, na Presbiteriana, na Metodista e na maioria das demais. Estribado em outros textos do Novo Testamento, o presbiteriano não obedece a essa restrição e batiza os pequeninos, fazendo o mesmo os crentes de outras Igrejas. Os imersionistas se firmam na autoridade do texto evangélico (Mat. 3: 16), do mesmo modo que os aspergistas também se escudam no livro sagrado. Baseado na Bíblia, o presbiteriano admite o dogma da predestinação divina; apoiado no mesmo fundamento (a Bíblia), o metodista não aceita esse ensino, estabelecido por Calvino, fundador do presbiterianismo ou calvinismo.

Mas, com essas e com outras discrepâncias, os protestantes se entendem perfeitamente, visto que todas as denominações, todas as Igrejas Evangélicas formam "unidade" em torno dos princípios fundamentais da Fé: existência de Deus e seus
atributos; Santíssima Trindade; Deus Uno e Trino; Céu e Inferno; eficácia expiatória do sacrifício do Calvário; imortalidade da alma, etc.

Examinei a teologia metodista ou wesleyana, em confronto com a presbiteriana ou calvinista, flutuei equidistantemente entre as duas escolas, amparadas e dirigidas por eminentes autoridades nos vastos domínios da ciência escriturística, a começar de João Wesley (inglês) e João Calvino (francês), fundadores dessas duas escolas teológicas (Igreja Metodista e Igreja Presbiteriana}. Observei e admirei sempre, a "unidade" doutrinal nos pontos capitais do credo evangélico (estou escrevendo quarenta anos depois).

Corroborando tudo quanto vai nessas linhas, tenho a acrescentar: o Protestantismo não me autoriza a dizer o contrário, hoje. Continuando ligado, como estou, por laços de amizade a elementos da Igreja Evangélica - e até mesmo na própria família - sei que o edifício espiritual da Reforma, levantado pelo ilustre frade alemão Martinho Lutero é o mesmo, e também o mesmo é o vigamento, cujas linhas mestras solidificam a estrutura orgânica das igrejas de todas as categorias denominacionais (grupos de cristãos não ligados a nenhuma igreja).

Fiel e zeloso pela conservação do seu ponto de vista - ainda que firmado mais na "letra" que no "espírito" que vivifica os textos bíblicos - o protestante aí vai realizando a sua destinação na Terra, na estrada do Evolucionismo. Seja como for: "Iiteralista" ou liberalista, ele se atém aos princípios basilares da sua Confissão de Fé, procura viver como cristão, pautando seu caráter pelas normas morais do Evangelho, que lhe exigem toda vigilância, a fim de se livrar da "tentação da carne, do mundo e de Satanás", essa tríplice modalidade da "concupiscência da carne, da concupiscência dos olhos e da soberba da vida".

Literalista ou não, mas obediente à voz de seu e nosso Mestre, o crente evangélico tem como norma inflexível de vida o "Sim, sim, não, não; porque tudo o que daqui passa procede do mal" (Mat. 5: 37). É o império da verdade, do qual o protestante súdito leal e intransigente, até à morte. É mesmo o traço característico dos evangélicos, de modo a não fugirem à advertência apostólica: "Mas santificai ao Cristo, Senhor nosso, em vossos corações, aparelhados sempre para responder a todo o que vos pedir razão daquela esperança que há em vós", (I Pedro, 3: 15.)

Todo este palavreado, que o leitor está suportando, visa a um fim: mostrar que os antagonismos, as divergências ou discrepâncias, do ponto de vista doutrinal, entre as igrejas evangélicas, não foram ao ponto de fazer surgir um novo credo ou uma nova seita dentro do Protestantismo, porque são questões "secundárias".

O presbiteriano, com o Evangelho nas mãos, "prova" que as crianças devem ser batizadas; o batista, com o mesmo Evangelho nas mãos, "prova" que as crianças não devem ser batizadas. E é bom lembrar que o batismo é coisa sagrada, é "sacramento", em todas as igrejas evangélicas (sacramento, segundo Sto. Agostinho, bispo de Hipona, na Africa, é "um sinal visível de uma graça invisível"; no batismo, o "sinal visível" é a água; a "graça invisível" é a regeneração moral e espiritual, que vem do Alto; o batismo simboliza, pois, regeneração, renovação moral.)

Nenhuma igreja evangélica pretendeu determinar a cor da barba do apóstolo Pedro, nem me consta que a Teologia Dogmática de algum ramo do Protestantismo haja explicado o "modo" do desaparecimento do corpo de Jesus, do sepulcro.

Os protestantes afirmam, unânimes, que o corpo do Mestre foi sepultado; a sepultura foi selada, e muito bem guardada por soldados romanos. E o corpo desapareceu.

Param aí os teólogos, de vez que Jesus subiu ao Céu com o seu corpo. E eu também vou parar, porque este artigo já ultrapassou os limites do razoável. Antes de o fazer, quero confessar que é com profundo pesar que estou vendo o trabalho sorrateiro - verdadeira obra de submarino - no campo do Espiritismo, no Brasil, com um só fim: dividir a família espiritista em dois grupos antagônicos, divergentes, adversários primeiramente, para se tornarem inimigos, depois.

Parte II

Convidado a ir ouvir uma conferência evangélica a ser feita pelo pastor Eduardo Carlos Pereira, numa série de conferencias que se realizaram no vasto salão do Skating Palace, nesta Capital, respondeu o moço: "Não vou ouvir besteiras."

- Mas, meu amigo, já ouviu alguma vez esse orador? - retrucou o convidante, proprietário de uma confeitaria, à cuja porta palestravam.

- Não - respondeu o jovem.

- Então acredita você que Eduardo Carlos Pereira, o maior gramático brasileiro, diga besteiras em suas conferencias? E continuou, atrelando esta outra pergunta: sabe você qual a diferença entre um católico e um protestante?

- Não; não sei.

- Pois eu lhe digo: o católico toca de ouvido, e o protestante toca por música.
O jovem caiu em si, como que medindo e pesando a sua leviandade, e procurou sair pela tangente, mudando de assunto.

*

Essa anedota é do ano de 1913, nascida na porta da casa comercial então pertencente a meu tio, o piracicabano Bento do Amaral, ainda proprietário na Penha, subúrbio da Capital paulista.

Retalhos de literatura leve e ligeira, como esse aí, não faltam no baú velho de minha vida religiosa.

No artigo anterior, relatei umas tantas reminiscências do "meu" Protestantismo, para provar, senão a minha autoridade, pelo menos a minha experiência no venerável capítulo do evangelismo.

Referi-me a antagonismos entre igrejas evangélicas, em assunto de interpretação de textos bíblicos, mas divergências que não determinam o nascimento de novas escolas ou novas denominações (seitas). Jamais o protestante se incomodou com subtilezas teológicas ou filosóficas, como, por exemplo, em indagar sobre a natureza do corpo de Jesus, depois da ressurreição. Limita-se o crente ao que está ali no Evangelho, bastando-lhe o relato dos redatores do volume sagrado, sem se preocupar com o "porque" e o "como" do desaparecimento do corpo do Mestre, de uma sepultura selada e bem guardada por soldados romanos.

Mas, o motivo principal do silêncio do protestante, nesse ponto, não é a deficiência de dados informativos ou de provas. Sabe o crente evangélico quais são os seus deveres para viver como discípulo do Cristo; sabe muito bem o cap. 25 do Evangelho segundo Mateus, e ali, naquele quadro impressionante acerca do Juízo Final, não se vê Jesus tratando de exterioridades, nem prometendo o reino das bem aventuranças aos que houverem crido que Ele veio ao planeta Terra com um corpo material ou semi-material. O crente no Evangelho não esquece jamais o ensino substancial de seu Mestre, e esse ensino é para todos os crentes de todos os tempos: "O meu preceito é este, que vos ameis uns aos outros, como eu vos amei. Vós sois meus amigos, se fizerdes o que eu vos mando. Se permanecerdes na minha palavra, sereis verdadeiramente meus discípulos; e conhecereis a verdade, e a verdade vos livrará" (da cegueira espiritual e moral). (Evangelho segundo João, cap. 15, vv. 12 e 14, e cap. 8, vv. 31 e 32.)

Essas passagens, como as demais do Livro Divino, refletem, sem ambiguidade nem reticências, mas com absoluta cristalinidade, o pensamento didático do Mestre, isto é, pensamento para "ensinar" e "esclarecer", a fim de "conduzir".

O crente em Jesus não pode errar (seja católico, protestante ou espiritista), uma vez que recebeu do Mestre, não uma mas “a” diretriz para a sua vida. Ou, em termos mais claros: sabe que Jesus reconhece como discípulos, não verbalistas e rezadores (como os fariseus), mas os exemplificadores (como o bom samaritano). Sim, o crente não deve nem pode errar quanto à sua qualidade de discípulo por não ignorar que Jesus faz a classificação de seus amigos, não pela profissão de palavras deles, mas pelo amor que revelam a seus semelhantes (lição na parábola do bom samaritano, em Luc. Cap. 10.)

Perguntou um doutor da lei: "Mestre, qual é o grande mandamento da lei?" - Jesus lhe disse: Amarás ao Senhor teu Deus de todo o teu coração, e de toda a tua alma, e de todo o teu entendimento. Este é o máximo e o primeiro mandamento. E o segundo (que tu não perguntaste), semelhante a este, é: Amarás a teu próximo como a ti mesmo. Destes dois mandamentos dependem toda a lei e os profetas. (Mat., 22, v. 35-4.0.)

O amor é um só e Jesus diz que o amor que os homens dizem ter a Deus só se torna manifesto no amor que revelam a seus semelhantes. É a lição dada aquele outro doutor que conhecia muito bem esses dois mandamentos, mas não sabia quem era o seu próximo (Lucas., 10, v. 25 a 37.)

Esse ensino não deixa dúvida alguma, e aquele discípulo que era o mais íntimo do Mestre (João, 13, v. 23 a 25) confirma esse ensino, com estas palavras de profundo senso pedagógico: "Se alguém disser, pois: Eu amo a Deus, e aborrecer a seu irmão, é um mentiroso. Porque aquele que não ama a seu irmão, a quem vê, como pode amar a Deus, a quem não vê?" (I Epist. de João, cap. 4, v. 20.)

Todo este palavreado meu, toda esta dissertação ou espraiamento de considerações, tem um só objetivo: pôr em relevo a singeleza encantadora da doutrina do Senhor e Mestre, já tão sabiamente compendiada naqueles três capítulos do maravilhoso Sermão da Montanha, a mais linda joia de toda a literatura religiosa e o mais belo, o mais perfeito Código de Moral que já existiu em toda a História (Mat., cap., 5 a 7.)

A construção moral que Jesus oferece aos homens está condicionada a um requisito apenas: amor! - Ei-lo, desdobrado:

a) O meu preceito é este, que vos ameis uns aos outros, como eu vos amei (até ao sacrifício, sem vingança, mas perdoando sempre, até aos maiores inimigos);

b) vós sois meus amigos, se fizerdes o que eu vos mando (imitar o meu exemplo, amar como eu amo, com o mesmo espírito de humildade e de renúncia, em prol de meus semelhantes);

c) se permanecerdes na minha palavra (de Mestre amigo, do adjetivo "amigo", em latim, clamoroso", que ama) sereis verdadeiramente meus discípulos, e conhecereis a verdade e a verdade vos livrará (sim: sabendo amar então vossa vista espiritual, já sem as escamas de toda milícia que é hipocrisia, e do "egoísmo" que é a mais perniciosa de toda idolatria, se livrará da velha miopia, e assim fareis por vossos semelhantes o que, vertidos os papéis, desejaríeis que eles vos fizessem). Esta é a lei e os profetas, disse o Mestre, no Sermão da Montanha (cap. 7, v 12.)       

Sei que o leitor está concordando comigo, porque tenho certeza de estar interpretando com fidelidade a palavra do Evangelho. Diante do que estou vendo, ouvindo, lendo e observando, tenho meus receios de que haja no campo do Espiritismo, no Brasil, grande número de músicos que só sabem tocar de ouvido. Talvez deva dizer positivamente que isso é real.

Quero caminhar devagar para chegar logo ao termo desta jornada. Preliminarmente, devo dizer que, toda vez que me refiro ao nosso querido Brasil, não me esqueço de que tenho olhos de educador de mestre-escola, com 39 anos de observação, nesses olhos estão sempre voltados para esse quadro bastante triste: analfabetismo.  A ser verdadeira a estatística da “The Modern Encyclopedia", em cada dez mil filhos do nosso País, mais de sete mil não sabem ler. Calculada a população do Brasil em 45 milhões de almas, desse total apenas 11 milhões são letrados, E destes, quantos serão realmente espíritas ou espiritistas?

Dos 90 ou 95 por cento dos espíritas que tocavam de ouvido no Romanismo, talvez mais de 60 não tocam por música. Sim, não posso admitir Espiritismo sem o Evangelho como base fundamental, como pedra angular ou de esquina do edifício da Espiritualidade (para usar da própria linguagem bíblica; Atos dos Apost., cap. 4, v. 11; Isaias, cap. 28 V. 16. etc.) E o Evangelho é a voz de Jesus "chamando os homens para uma vida nova", como fala abertamente, hoje, o grande Humberto de Campos ("Boa Nova", cap. XX.)

Segundo o cálculo divulgado pelos competentes, há no Brasil 10 milhões de espíritas, e "mais de três mil centros". Dado que haja 10 por cento de espiritas naqueles 11 milhões que sabem ler - ou seja um milhão e cem mil, eis que cerca de nove milhões de espíritas não sabem ler. O Espiritismo Evangélico para ser compreendido, sentido e praticado, não exige cérebros cheios de letras mas corações que saibam sentir e amar. Bem judiciosa esta advertência do espírito de Kardec, dada em abril de 1874, ou cinco anos após haver deixado a Terra: "Nenhum homem é condenado por não saber, mas sim por deixar de sentir; porque, o livro da sabedoria é um livro geralmente fechado, mas o livro do sentimento é um livro universalmente aberto." ("Roma e o Evangelho" parte II comunicação nº 30.) ,

Peço ao leitor que fixe bem esses algarismos estatísticos na memória visto que vou entrar na apreciação de um ponto bastante sério, porque bastante delicado, e que, de um simples ponto hipotético, poderia converter-se num capítulo volumoso e concreto. É este: ao lado ou dentro da família espírita, existirá uma família kardecista? Duas famílias ou uma só família com dois nomes, designando a mesma ideia?

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Família Kardecista?
Parte  3    
Romeu A. Camargo
Reformador (FEB) Fevereiro 1942

  
O sol derrete a cera e endurece o barro. O foco de calor é o mesmo; os recipientes é que variam.

Recordo-me dessas expressões figurativas por mim usadas no púlpito protestante, quando procurava explicar a razão por que, num auditório, o indivíduo A recebia de boamente a palavra do Evangelho, na primeira vez que a escutava, ao passo que os indivíduos B, X e Z. na segunda ou na quinta vez, não só não aderiam ao ensino evangélico, como, ao contrário, sentiam-se mais grudados ao seu rotinismo, aos seus preconceitos religiosos e sociais. O primeiro, na simpleza de sua curiosidade indagadora, olhava por cima dos preconceitos e das demais mentiras sociais, e alcançava o que satisfazia ao seu espírito e ao seu coração; os outros, não querendo ter olhos de ver nem ouvidos de ouvir, continuavam barrificados no “seu" ponto de vista religioso, isto é, no comodismo dos desejos aprovados por seus corações, mas desaprovados pela moral do Evangelho. Um, com fome e sede de saber, a fim de libertar sua alma dos apetites da terra, aceitava gostosamente a mensagem do Céu, na esperança de conseguir a sua iluminação interna, condição essencial para chegar às claridades espirituais; outros, abrasando-se na concupiscência da carne - vaidade, luxuria, egoísmo, - não podiam dar ouvidos à voz do Céu, que condena essas baixezas da Terra.

- Essas duas categorias não deixarão de existir, senão após o decurso de milhões de milênios.

Nesse quadro alegórico ou emblemático, tentei imitar, ainda que apagadamente, uma parte do ensino encerrado nas parábolas do Semeador e da Cizânia, registradas pelo evangelista Mateus, no cap. 13.

Pequena foi a área onde o Semeador viu lançada com proveito a boa semente, no vasto campo de toda a semeadura. Assim o resultado da atividade semeadora no campo das verdades morais. Aqui, como ali surge a cizânia (ou joio) semeada pelo inimigo, protegido pela escuridão da noite, enquanto repousa o trabalhador.

As trevas simbolizam "atraso" e "ignorância", característicos do "meio" em que vivem os espíritos inferiores. Conquanto agraciada com as luzes da Revelação Divina, a Terra ainda é escola de doloroso aprendizado, de penosos padecimentos expiatórios. Continua sujeita às influências dos agentes do atraso e da ignorância. Haja vista essa terrificante catástrofe que anuncia o desmoronamento total de uma civilização vinte vezes secular, iniciada sob o influxo da ideia cristã. Aí estão envolvidos, na liquidação final, efetivamente, militarmente, em terra, no mar e no ar, os moradores dos cinco apartamentos terráqueos denominados: Europa, Ásia, África, América e Oceania. Sem exclusão de uma só criatura, eis que o manto da inquietação, da dor e do desespero estende-se à raça humana inteira. É o toque de reunir. Ouve-se o sonido da sexta trombeta apocalítica (cap. 9) anunciando o fim do mundo moral, feito pelos homens à sua imagem e semelhança. Dois mil milhões ou dois bilhões... 
(2.000.000.000) de testemunhas na Terra, da bondade e da misericórdia do Pai das criaturas, que dá a livre-agência, o livre-arbítrio, a liberdade de ação, ao homem, a fim de que possa ele realizar a sua destinação planetária, colhendo aqui o fruto de toda semente que plantou (Mat. 26:52; Gálatas 6: 7,8; Apoc. 13:10)

*

É neste momento tempestuoso que a pena deste pigmeu vem esflorar questiúnculas que jamais deviam existir no campo do Espiritismo, onde frondeja a árvore da liberdade, a cuja sombra se prega a liberdade de consciência, "condição e fonte de todas as liberdades", na frase feliz de Júlio Simon, notável escritor, filósofo e político francês.

Theophilo Siqueira, espírito culto e observador sumamente perspicaz, escreveu magnífico artigo no “Reformador" de novembro pp., sob o sugestivo título "Práticas Religiosas". Merece leitura atenta o seu escrito, vasado em estilo claríssimo, sem rendilhas nem rebuços. O assunto é oportuno, sobre certas inovações que se vão verificando na seara espírita.

Também eu venho observando acentuada tendência para uma indisfarçada romanização do Espiritismo, aí pelos Centros onde os "passes" e a "água fluida" não deixam tempo para a leitura e explicação dos princípios basilares da Nova Revelação.

Pecado paralelo e de muito maior gravidade é esse que ai vai pompeando nos lábios de poucos, pouquíssimos confrades, felizmente: o de se querer criar, à viva força, seitas religiosas na família espírita. Isto, sim, deve merecer maior atenção e maior cautela da parte dos que se interessam pela doutrina. O primeiro cuidado a ser observado é este: se é certo que há no Brasil dez milhões de espíritas, também certo, certíssimo é que, em cada dez, um apenas sabe ler e nove não podem estudar as obras fundamentais da sua crença. Têm de tocar de ouvido, isto é, conhecerão a doutrina através da palavra ouvida da boca de terceiro; se não houver trabalho bem organizado, bem distribuído, com aquele critério recomendado nas epístolas apostólicas - e as epístolas encerram o Evangelho diluído em explicações pormenorizadas - então o aprendizado dos crentes será um enigma.

Em outro artigo citei dados estatísticos, pelos quais se vê o seguinte: dos 45 milhões de habitantes do Brasil, apenas 11 milhões sabem ler. E destes, quantos serão espiritas? Se houver ali 10 por cento, então será um milhão e cem mil. Quase 9 milhões de espíritas não saberão ler, nem a cartilha do abc, nem, muito menos, as obras de Kardec.

Chamo a particular atenção do leitor para isto: a romanização e a fragmentação da família espírita representam atividades, não de confrades analfabetos, mas dos que se presumem de olhos bem abertos e que falam a auditórios constituídos de letrados e analfabetos. Imaginemos, nós que escrevemos e que falamos ao público, qual seria o resultado de uma investigação acerca da natureza do corpo de Jesus, entre os espiritas espalhados pelo vasto território brasileiro! Uma calamidade! Um verdadeiro desastre! Mais do que isso: seríamos, nós, os supostos investigadores, legítimos abusadores da boa fé, da simplicidade, da sinceridade dos nossos irmãos analfabetos. Almas simples e cheias de lealdade, responderiam: “Não podemos entrar nesse exame, porque não sabemos ler o Evangelho; mas, contentamo-nos em saber o que o Senhor Jesus exige de nós, para que o imitemos em nossa vida, carregando a nossa cruz." Diriam outros: "Não nos importa saber isso mas, sim, que o Senhor e Mestre quer que nós nos tornemos novas criaturas, sabendo amar os nossos semelhantes e fazendo por eles o que quereríamos que nos fizessem.”

Estarei errado com esse raciocínio? Pois foi assim, como estes últimos, que me respondi, a mim próprio, quando, em 1924, pela primeira vez, ouvi um ilustre confrade abordar tal questão. Sigo o Evangelho desde 1901, e, de 1923 para cá, continuo no mesmo traçado, dando graças a Deus por haver ingressado nos domínios do Espiritismo, pela mão de AlIan Kardec, "o bom senso encarnado", na profética expressão do sábio Camille Flammarion.

Dotado de Incrível honestidade mental, jamais pretendeu Allan Kardec fundar ou chefiar qualquer corrente de pensamento pessoal, muito menos escola sectária de caráter religioso dentro do Evangelho.

Missionário escolhido e guiado pelo Alto, realizou a parte que lhe fora confiada, ficando o resto para os seus continuadores, como aconteceu com os apóstolos, que tiveram também quem lhes seguisse as pegadas.

Kardec deixou organizada, ou em começo de organização, uma entidade coletiva destinada a continuar a sua obra, que é a do Cristo. E essa entidade é já bastante conhecida no mundo. Chama-se: família espírita.

Falará, a respeito, o ilustre missionário.

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