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segunda-feira, 20 de agosto de 2018

Significação da palavra morte



Significação da palavra morte
Indalício Mendes
Reformador (FEB) Novembro 1951
 
And Life, still wreathing flowers for Death to wear. - Rossetti

Seja lá o que for a vida, é para nós uma abstração: porque essa palavra constitui um termo geral indicativo duma coisa comum a todos os animais e plantas, mas não existente de modo direto no mundo inorgânico. Para compreendermos a vida temos de estudar as coisas vivas e ver o que há nelas de comum. Um organismo é vivo quando afeiçoa a matéria duma forma especial e utiliza-se da energia para os seus fins próprios - sobretudo o crescimento e a reprodução. Um organismo vivo, enquanto permanece vivo, defende a sua complicada estrutura contra a deterioração e a desagregação.

Morte significa a cessação dessa influência controladora exercida sobre a matéria e a energia, de modo que a ação física e química retomam o seu curso. Morte não é apenas ausência de vida; tal palavra significa a partida ou a separação da vida - o ato de esse princípio abstrato a que chamamos vida separar-se do resíduo concreto. E a palavra morte só se aplica às coisas que vivem.

A morte, pois, pode ser considerada uma dissociação, uma dissolução, uma separação entre a entidade controladora e a substância físico-química dum organismo; uma separação entre a alma e o corpo.

Morte não quer dizer extinção. Nem a alma nem o corpo se extinguem, isto é, deixam de existir. O corpo morto pesa tanto como pesava em vivo; no momento da morte só perde as suas propriedades potenciais. Assim, também, tudo quanto podemos afirmar do princípio vital que o animava e que já não anima aquele organismo material: se esse princípio vital conserva a sua atitude ou não, só estudos ulteriores no-lo poderão informar.

A forma visível do corpo não era acidente; correspondia a uma realidade, porque causada pela presença da força vivificante; e a afeição inevitavelmente enlaça não só a verdadeira personalidade do morto como também o que constituiu o seu veículo material - signo e símbolo de tanta beleza e amor. Os símbolos falam ao coração humano e qualquer coisa querida e honrada torna-se algo de valor intrínseco, que não pode ser olhado com indiferença. As velhas bandeiras dum regimento ao qual os homens fizeram o sacrifício de suas vidas - embora trocadas por novas - não se recolhem sem dor de coração. E as pessoas de sensibilidade que contemplam tais relíquias sentem algum eco do passado e desejam conhecer-lhes a história.

Quando dum corpo dizemos que está morto, podemos estar falando acertadamente. Mas quando dizemos que uma pessoa está morta, já a nossa expressão se torna ambígua, porque a referência poderá ser apenas ao corpo dessa pessoa e só nesse caso estaremos certos. Mas se há também referência à personalidade, ao caráter, ao que realmente constituía essa pessoa, nesse caso a expressão "está morto" sofre restrições. A pessoa foi-se, passou; passou pelo corpo e foi-se", como diz Browning no "Alt Vogler" - mas não está morta no sentido que aplicamos a palavra morte ao corpo. É justamente esse ausentar-se da personalidade que permite ao corpo morrer, dissolver-se; a personalidade em si não está sujeita à dissolução. Ao contrário, emancipou-se do corpo; libertou-se do peso da matéria, embora com o destacar-se da carne haja perdido as potencialidades terrestres que
o mecanismo corporal lhe conferia; e se essa personalidade ainda pode agir na Terra será com dificuldade e mediante a cooperação das que ainda não se separaram do corpo, Às vezes tal personalidade pode pôr em ação adequados mecanismos energéticos; mas o mecanismo que em tempo foi o seu, esse está perdido: continua a existir, mas fora de ação - morto.

O costume é chamarmos mortos aos que perderam o corpo material. Não mais os consideramos como vivos - porque na linguagem comum vivos só são os que ainda se conservam associados ao corpo material. É nesse sentido que coletivamente falamos dessas personalidades como "os mortos".

Não devemos ter medo da palavra, nem hesitar em seu emprego, quando os que nos ouvem a recebem neste sentido limitado. Se as ideias associadas à palavra "morte" fossem sempre judiciosas e sãs, razão nenhuma teríamos para falar de morte compungidamente. Mas o povo e também os sacerdotes sempre a usaram tão mal, associando-a apenas aos fatos físicos do corpo abandonado pela personalidade, que isso tornou admissível, por um tempo, a sua substituição por outras expressões menos ambíguas, como "transição" ou "passamento". A mudança ainda vale, hoje, como protesto contra a política de ater-nos a vermes, túmulos e epitáfios, ou à ideia duma geral Ressurreição com o retorno à vida de todos os corpos enterrados. Em antagonismo a essas superstições surge a afirmativa de que "a morte não existe".

Claro que familiarmente falando a morte existe, e nada adiantaria negar um fato. Mas ninguém pretende negar fatos; os que afirmam não haver morte apenas querem desviar o pensamento dum aspecto já muito insistido para pô-la no outro lado - o que diz respeito à personalidade. O que a expressão "não há morte" significa é que não há extinção. O processo da morte não passa de mera separação entre a alma e o corpo - e com isso a alma liberada do corpo mais ganha do que perde. Só o corpo morre e desagrega-se mas nem para ele há extinção: há mudança. Já para a outra parte, a personalidade, dificilmente admitiremos mudança - exceto no que diz respeito ao ambiente, ao meio. Muito improvável que o caráter e a personalidade estejam sujeitos a súbitas revoluções ou mutações. Potencialmente poderão diferir em virtude das diferenças de oportunidades, mas no momento atual conservam-se os mesmos. Como uma curva; a curvatura muda mas sem descontinuidade.

Morte não é palavra de temer, como não é de temer a palavra nascimento. Nós mudamos de estado ao nascer, penetrando num mundo de ar e sensações e de inúmeras existências. Na morte também mudamos de estado, penetrando num mundo de ... de quê? De Éter, penso, onde teremos a sensação de ainda mais numerosas existências. Penetramos numa zona onde a comunhão entre os seres deve recordar isso a que chamamos telepatia. e onde o intercurso dos seres não é ao modo do nosso físico; zona em que a beleza e o conhecimento são mais vividos do que aqui; região em que o progresso é possível e em que há mais “admiração, esperança e amor” do que aqui. E neste sentido podemos dizer, com Tennyson: "Os mortos não estão mortos, sim mais vivos".

A vida é contínua e as condições da existência em conjunto permanecem as mesmas de antes. As circunstâncias mudam para o indivíduo que merece, mas só no sentido de torná-lo capaz de acesso a um diferente grupo de fatos. A mudança do meio ambiente é subjetiva. Esses fatos diferentes sempre existiram, ao modo das estrelas que estão no céu em pleno dia, mas fora da nossa percepção. Com a "passagem", esses fatos novos entram para a nossa percepção - e os fatos velhos perdem-se em nossa memória.

O Universo é um, não dois. Literalmente, não existe o "outro mundo". A não ser no sentido restrito em que damos o nome de mundo a outros planetas, não existe outro mundo. O Universo é uma unidade. Nele existimos continuamente, por todo o tempo: às vezes, conscientes de um certo modo; outras vezes, conscientes de outro modo. Durante algum tempo, conscientes dum grupo de fatos; depois, conscientes de outro grupo de fatos - os fatos do "outro lado". Mas essa divisão em "lados" é meramente subjetiva. Permaneceremos a mesma família, enquanto os liames da afeição persistirem. E para os que dão valor à prece, cessar de orar pelo bem de nossos amigos só porque com a morte
eles se tornaram materialmente inacessíveis – embora, talvez, se tenham tornado espiritualmente mais acessíveis - é sucumbir ao peso residual de velhas abusões (enganos, ilusões) eclesiásticas e perder o ensejo de um bom serviço.

                      (Cap. XXI do livro "Raymond", de Oliver Lodge, ed. da Soc. Metapsíquica de S. Paulo.)

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