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sexta-feira, 8 de fevereiro de 2013

80. 'Doutrina e Prática do Espiritismo'




80



            Tão longe quanto possamos penetrar nas manifestações iniciais da vida, como de resto já o tentamos em anterior capitulo, vamos encontrar o princípio inteligente, ou esboço rudimentar do espirito, aprisionado na matéria e aí exercitando as suas faculdades latentes sob as excitações do meio cósmico, às quais responde mediante reações, ao começo débeis e, depois, cada vez mais vivas e acentuadas, á medida que com a indefinida repetição de idênticas ou variadas ações externas se lhe vai despertando e desenvolvendo a sensibilidade, Da variedade dessas excitações, agradáveis umas, desagradáveis outras, resulta para o ser, que ao seu contato se elabora, a aptidão delas distinguir por seus efeitos e, portanto, uma primeira rudimentar educação de suas faculdades. Mas, como a sensação agradável conduz ao repouso, isto é, à inércia, que é morte, para que o ser se não exponha ao risco de nela perpetuamente se imobilizar, é necessário que o estimulante oposto o obrigue ao esforço de se lhe subtrair, desagradável que é, e aí temos conseguintemente o sofrimento como o primeiro propulsor de atividade, tanto vale dizer, de vida para o ser que nela se inicia.

            Subamos rapidamente a escala dos seres organizados, ou antes, lancemos sobre ela um golpe de vista de conjunto, e em todos os seus graus veremos o princípio espiritual, que vai sucessivamente passando de uma a outra forma, cada vez mais aperfeiçoada, efetuar o trabalho de sua individualização, ora sob as mesmas variadas excitações do meio exterior em que se move, ora a impulsos de necessidades e solicitações interiores, sob esse duplo estimulante fazendo o seu aprendizado de experiências, quase sempre dolorosas. E quanto mais se apura e desenvolve a sensibilidade, mais intensa, é, por igual, a repercussão do
sofrimento.

            Se, por exemplo, nos demoramos nas séries superiores da animalidade e tomamos como clássico exemplar o mais nobre dentre todos, isto é, o cão, a que altitudes não vamos encontrar desenvolvida a capacidade de amar e, portanto, de sofrer! Que o amor e o sofrimento que o engrandece e exalta dir-se-ia associados por um laço misterioso e indissolúvel. Não é assim que se tem tantas vezes referido a história de cães que, não se podendo resignar à definitiva separação pela morte de seus donos, se têm deixado morrer sobre o seu túmulo? E que magnifico ensinamento é o que encerra esse fato - observemos de passagem - no sentido de demonstrar, a não ser que se esteja obcecado por um absurdo e injustificável preconceito, que nos animais algo de espiritual existe, e tão elevado, as vezes, que em si próprio encontra as energias capazes de suplantar mesmo os mais vivazes e imperiosos instintos, como o de conservação, sobre o qual triunfa aquele sentimento máximo, que já no CÂNTICO DOS CÂNTICOS é celebrado "forte como a morte!"

            Ao considerar a nossa espécie, vemos o sofrimento, originado em causas diferentes, adquirir amplitude e aspectos cada vez mais diversificados: primeiro é o que decorre das responsabilidades contraídas por espíritos culpados, traduzido no que se chama propriamente expiação, e cujos efeitos só mediante o profundo arrependimento e as reparações, que se lhe seguem, virão a cessar; em seguida, quando não simultaneamente, há que assinalar as "provações," diferentes da expiação em que não exprimem consequências diretas de culpas individuais cometidas na atual ou em anteriores existências, mas representam, de um modo geral, condições de agressividade peculiares ao meio terrestre, nas quais se retempera e fortalece o espírito; por último, em se tratando de seres eminentemente evoluídos, veremos o sofrimento não já suportado com repugnância ou amargura, mas voluntariamente aceito por amor dos outros, e nesse caso mudando, por assim dizer, de natureza, para se transformar, espiritualizado, nessa melancólica e infinita piedade que as almas de escol experimentam por todos os caídos.

            É o caso dos grandes missionários e dos santos que, nada tendo que por si mesmos sofrer, ultrapassada há muito a esfera das preocupações e dos sentimentos egoísticos, mais em consequência do seu próprio adiantamento e elevação, que lhes dilata o amor por todos os seres seus irmãos, não se podem subtrair ao interesse, à enternecida preocupação pela sua sorte, assim com eles gozando ou padecendo, conforme se ajustem ou não os seus atos às prescrições da lei divina.

            Tal se nos afigura, com efeito, a situação dos eminentes seres espirituais, não apenas nos curtos instantes de sua passagem pela terra, mas sobretudo em sua definitiva estância nos planos superiores do invisível, de onde, sob a suprema direção do Cristo, longe de se desinteressarem pela humanidade, continuam a velar por seus destinos e a influir, seja particularmente sobre os indivíduos, como anjos da guarda ou guias tutelares (1), seja sobre as humanas coletividades, no sentido de encaminhar umas e outros às sendas do amor e da verdade. E em presença das repulsas, da indiferença pelo menos, que da parte de quase todos neste mundo encontram as suas silenciosas mas incessantes sugestões, diante do espetáculo dos desvarios, das tumultuarias paixões, a que não cessa de se abandonar o rebanho terrestre, obstinado em voltar costas ao ideal divino, para se engolfar nas seduções da carne e dos sentidos, não devem aqueles amorosos e abnegados seres experimentar a melancólica e infinita piedade a que aludimos? E que será essa verdadeira mortificação, que lhes inflige o endurecimento humano, senão um sofrimento, espiritualizado embora, uma espécie de sombra a toldar a limpidez de suas interiores contemplações, um permanente contraste em meio dos celestes esplendores a que, por suas virtudes, ascenderam?

            (1) É essa uma concepção que o Espiritismo, consoante as revelações em tal sentido, adota como perfeitamente ajustada ao plano da solidariedade universal entre os espíritos, e a que, de resto, fizemos alusão no anterior capítulo.

            Assim, ou mergulhemos nas profundezas da vida, a surpreender as manifestações dos seres que, em seu aprendizado se iniciam, ou dilatemos o pensamento às luminosas altitudes em que se expande, na comunhão dos espíritos felizes, sempre se nos apresentará o sofrimento, posto que revestindo matizes variados e inspirado em motivos diferentes, como uma condição inseparável dessa mesma vida, a tal ponto que chega propriamente a revestir os caracteres de uma lei universal.

            Porque, pois, tanto ao homem repugna o sofrer? Antes de tudo porque, movendo-se ainda nos círculos inferiores da evolução, em que, com a exclusiva afirmação do Eu, predomina a tendência instintiva de fugir ao que é desagradável e molesto, tudo o que represente um constrangimento, uma limitação do que considera o seu direito de gozar, ou se trate de coisas materiais e exteriores, ou das próprias satisfações do coração, em si mesmas raramente isentas de egoísmo, se lhe afigura um mal; e em seguida porque, associando sempre ao sofrimento a ideia de culpa, que não é, todavia, como o acabamos de indicar,
mais que um de seus transitórios aspectos, não o encara senão pelo prisma restritivo e, de certo modo, deprimente de punição ou porventura de Iabéo (mérito?) , inapto que ainda permanece para compreender as sublimidades, tantas vezes dolorosas e, por isso mesmo, santificadoras, do sacrifício e da renúncia.

            Mas, como é este o sinal de suma elevação, que todos são chamados a alcançar - a abnegação completa de si mesmo - e como não é possível ao espírito atingi-la sem ser submetido a consecutivas e multiplicadas provas, tendentes a fazer de todo expirar a voz do orgulho e do egoísmo e provocar, em substituição d'esses nefastos sentimentos, a afirmação de excelsas virtudes, como a humildade, a paciência, a caridade, que outra coisa não é senão o amor em suas mais altas e espiritualizadas expressões, necessário se faz que um longo aprendizado, o venha de tal modo a familiarizar com o sofrimento que, em lugar de o repelir como hóspede importuno, termine por estima-lo como precioso auxiliar de sua incessante ascensão evolutiva.

            Ora, não será decerto por seu gosto, nem exclusivamente abandonado à sua própría iniciativa, que logrará o homem sobrepor-se às solicitações de sua natureza inferior e transformar o horror, que sob todas as formas lhe inspira o sofrimento, na pacífica e amorosa conformidade com que o aceite, pondo em prática a exortação do Divino Salvador, de uma tão profunda e perturbada transcendência: "Aquele que quiser ser meu discípulo, negue-se a si mesmo e tome a sua cruz e siga-me." Daí a necessidade, não apenas para os retardatários, ainda incertos no rumo a seguir de seus destinos, mas para os que se acham apreciavelmente adiantados no espírito, de existências singularmente dolorosas, preparatórias de um decisivo surto à esfera superior da evolução. 

            É o que explica que neste mundo sejam precisamente as mais nobres almas, dotadas de uma extrema sensibilidade psíquica, as mais intensa e mais frequentemente visitadas pela dor. Elevando-se acima das vulgaridades terrestres, embebidas de ideais que não podem encontrar aqui a sua realização, o próprio contato com a inferioridade do meio, que as não compreende e em que se sentem cada vez mais isoladas, constitui para essas almas de escol um motivo de sofrimento e de desgosto. Voltam-se então para esse maravilhoso universo interior de suas próprias aspirações e aí encontram a fonte inspiradora, do Alto contudo fecundada, para a produção de suas obras. É a história de todos os gênios que têm com os seus fulgores ilustrado a humanidade e cuja vida se tem assinalado por toda sorte de pungentes adversidades, como ó, numa esfera menos brilhante, a história de quantos, adiantando-se no espirito, sentem pesar-lhes como um banimento a constrangedora estância neste mundo.

            Igualmente incompreendidos, não raro por aqueles mesmos que os cercam, dir-se-ia que uma secreta fatalidade se obstina em acumular sob os seus passos toda a sorte de contrariedades e revezes. É preciso contudo que assim seja, isto é, que, não uma fatalidade obstinada, segundo o conceito humano, mas uma série de circunstâncias providencialmente dispostas os induza a renunciar a todas as consolações sensíveis, mesmo as que pareceriam mais legitimas, a fim de que, amando e padecendo, aprendam a dedicar-se ao serviço de todos sem nenhuma esperança ou desejo sequer de retribuição. Porque não está amadurecido para a colheita celeste, o que importa dizer para a ascensão ao grau superior evolutivo, senão aquele cujos atos, inspirados no mais completo desinteresse e postos
à prova de todo desapreço, a nenhum outro móvel obedecem que não seja o agrado de Deus e a utilidade do próximo .

            Assim, não é por outra forma, senão padecendo e amando e aprendendo a imolar-se voluntariamente por amor de todos, que se há de no homem desenvolver a natureza divina, tornando-o semelhante ao Cristo. Por essa íntima comunhão no espírito de sacrifício, em cujo mistério nos veio ele iniciar, é que também seremos instruídos nas "coisas que são de Deus." e que só o homem divino, que em nós dormita ignorado, é capaz de compreender e, quando necessário, consumar.

            Não pode ser mais claramente compreensiva a alusão que a tal respeito se contém na seguinte passagem do Evangelho, sobre cuja autoridade inda uma vez nos apoiamos para a sustentação da nossa tese, por singular que - não o desconhecemos - se afigure aos não-iniciados.

            Acabava, num lampejo de celeste inspiração, de proclamar Simão Pedro, acudindo á interrogação que, a cerca de sua identidade, Jesus dirigira aos seus discípulos: "Tu és o Cristo, Filho de Deus vivo," e, depois de lhe aplaudir o acerto, recomendando contudo que o não divulgassem - refere o evangelista (1):

            (1) MATEUS, XVI, 21 a 23.

            "Desde então começou Jesus a declarar a seus discípulos que convinha ir ele a Jerusalém, e padecer muitas coisas dos anciões e dos escribas e dos príncipes dos sacerdotes, e ser morto e ressuscitar no terceiro dia.

            "E, tomando-o Pedro de parte, começou a increpa-lo, dizendo: Deus tal não permita, Senhor: não sucederá isso contigo.

            "Ele, voltando-se para Pedro, lhe disse : Tira-te de diante de mim, Satanás (2), que me serves de escândalo; porque não tens gosto das coisas que são de Deus, mas das que são dos homens."

             (2) Esta expressão, para quem possui o sentido das Escrituras, é puramente figurada e não tanto se referia no apostolo, que, um momento antes o Divino Mestre declarara inspirado pelo "Pai que está nos céus," ao dar testemunho de sua investidura e natureza, como á inspiração posta sob que, cedendo à fraqueza humana, entrara a falar Pedro, atemorizado do que ouvia. "Satanás" é quase sempre, no Evangelho, empregado como um símbolo, para designar o erro, o mal, o oposto à verdade, e ao bem, que vêm de Deus.

            Não é evidente que, desse modo se pronunciando a cerca do que, na cidade santa, lhe estava reservado como trágico e, por fim, glorioso desenlace da epopeia de amor em que consistiu a sua missão messiânica, o Divino Mestre quis significar que o sofrimento, a submissa imolação em proveito e para exemplo de todos, como estava intrepidamente resolvido a suportá-la, merece o divino beneplácido, contrariamente ao que é do agrado humano, inspirado sempre nas comodistas solicitações do egoísmo? Como, porém, não ser assim, se de mais alto que tudo vem o exemplo, e se, meditando pelo espírito nesse augusto e transcendente mistério, chegaremos a compreender que a própria criação, que é um ato de amor, também o é de sacrifício?


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