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segunda-feira, 11 de fevereiro de 2013

81. 'Doutrina e Prática do Espiritismo'



81


            Antes de prosseguir, convém nos fixarmos sobre a significação desta palavra. Sacrifício, na tecnologia religiosa, consoante mesmo a origem morfológica do termo (sacra facere) significa fazer uma coisa sagrada. É por isso que os povos bárbaros, concebendo a Divindade pelo prisma de suas próprias violentas paixões, acreditavam lisonjeá-la e assim praticar um ato "sagrado," oferecendo-lhe sangrentos holocaustos, entre visitas propiciatórias figuravam animais, quando não, como entre as mais ferozes tribos, criaturas humanas. À medida que, com a elevação do nível moral, a civilização se afirma e os costumes se aperfeiçoam e suavizam, o objeto e a natureza do sacrifício se transforma e chega pouco a pouco a espiritualizar-se, mas a ideia, como prática religiosa, permanece. Não é assim que, sucedendo aos cruentos holocaustos dos hebreus, vemos na igreja católica os sacerdotes celebrarem nos altares (reminiscência das antigas aras) o "santo sacrifício" da missa? - Já no EVANGELHO SEGUNDO o ESPlRITISMO se encontra, em harmonia com um estado mais elevado do sentimento e da mentalidade humana, a noção do "sacrifício mais agradável a Deus," que não consiste oblatas materiais nem sequer simbólicas, representadas em aparatos litúrgicos, mas na imolação constante, sem formalismos nem exterioridades, de todo sentimento contrário ao espírito de fraternidade e de concórdia .

            É lutando, com efeito, contra os pendores de sua imperfeita natureza e, por conseguinte, - impondo-se um constrangimento, que o homem realiza o sacrifício mais útil para si e mais digno da aprovação divina, até que, inteiramente purificado, venha a ser uma hóstia viva, constantemente oferecida Àquele que é Espírito e só "em espírito e verdade" é que deve ser adorado pelos verdadeiros e fieis adora dores (1).

            (1) João, IV, 23-24.
  
            Então, já não tendo sentimentos impuros que imolar, estará, como o Cristo, apto a oferecer-se a si próprio em holocausto, isto é, a impor-se todo constrangimento, simultaneamente, agradável a Deus e favorável aos homens seus irmãos.

            E vem a propósito assinalar que o sacrifício de Jesus não consistiu unicamente na crucificação, nem ainda no conjunto de inconcebíveis sofrimentos, sobretudo morais, com que a fereza humana em desvario flagelou o seu amantíssimo espírito, desde a traição de Judas e os tumultuários sucessos no Jardim das Oliveiras até o supremo brado no cimo do Calvário. Esses padecimentos, com intrépida resolução por ele previamente anunciados, como  vimos, e com tão amorosa conformidade aceitos que os buscou justificar nesta outra sentença em que perpassa um sopro de infinita submissão e indulgência: "se o grão de trigo que cai na terra não morrer, fica ele só; mas, se morrer, produz muito fruto (1), "esses padecimentos - dizemos - deviam ser, num mundo como o nosso, o coroamento, mais que inevitável, necessário de sua missão eminentemente exemplificadora, a fim de que na humilde, quase diríamos, na jubilosa resignação com que os arrostou aprendessem os homens a obediência à divina lei do sacrifício por amor.

            (1) João, XII, 24-25.

            E intencionalmente particularizamos "num mundo como o nosso," porque nas esferas superiores, habitadas por humanidades mais adiantadas, as missões dos Cristos que as visitam, para dar frutos de edificação, não necessitam certamente de tormentosos desenlaces, mas hão de tranquilamente se exercer, como é lógico supor, entre festivas aclamações dos corações reconhecidos. Não deixam contudo, mesmo assim, de representar um sacrifício; porque para espíritos puros, como os de tal categoria, a simples incorporação a uma forma objetiva, por menos densa ou material que porventura seja, constitui sempre uma constrangedora limitação de sua natureza e, conseguintemente, um sofrimento. Eis porque o de Jesus - vínhamos dizendo - não consistiu unicamente nas dolorosas cenas da Paixão: começou com a sua descida - senão antes - das celestes regiões em que irradia o seu espírito puríssimo, para se prolongar por todo o tempo que se impôs o contato molesto e imediato com um ambiente saturado dos eflúvios de grosseiras paixões como o da Terra.

            Mesmo, pois, que em diversas, inteiramente favoráveis condições, no que se refere ao seu desfecho, tivesse podido consumar-se, à missão do Cristo permaneceria como um sacrifício em sua dupla acepção religiosa, -de ato sagrado e de mortificação, de todo modo agradável a Deus, no primeiro caso por ele responder à execução de seus desígnios relativamente às criaturas, objeto de sua paternal solicitude e, como tal, necessitando ser de sua parte instruídas pelo Divino Mandatário nas lições de vida eterna que lhes trouxe, e no segundo, por se identificar com um dos aspectos sob que se manifesta ,a onipotência criadora. E aqui retomamos o fio da demonstração, que nos propomos, no sentido de ser a criação um ato de amor e também de sacrifício.

            Não nos move – apressamo-nos, todavia, a advertir- a temerária, que seria estulta, pretensão de devassar por mera curiosidade os celestes arcanos, senão apenas o singelo desejo de, apresentando o fruto de nossas meditações sobre o assunto, contribuir com um modesto subsidio para a elucidação deste problema, que não interessa apenas, como tema especulativo, aos estudiosos das coisas divinas, mas como fato de consciência e de experiência pessoal a quantos palmilhamos a via crucis deste mundo: o sofrimento.

            Objeto de instintiva repulsa para o homem, que mais assim não faz que o exacerbar e perverter, quão diferente lhe aparecerá, se apreendido em suas transcendentes, dignificadoras expressões! Despojado da significação expiatória, que sem duvida reveste em sua modalidade, por assim dizer, inferior, quando incidindo sobre espíritos recalcitrantes e culpados, em lugar da lei de banimento, cujos caracteres pareceria, posto que erroneamente, revestir, um inusitado prestígio o virá em tal caso aureolar, convertendo-o, espiritualizado, num motivo de similitude, ou de aproximação com Aquele que, provando por mil variadas formas a nossa obediência e fidelidade aos seus sapientíssimos ditames, assim não somente nos quer tornar perfeitos, mas participantes, por uma remota iniciação preparatória, no recôndito mistério em virtude -do qual, para comunicar a vida ao mundo, não se limitou a votar, em mística imolação, o seu dileto Filho (1), mas a si próprio em primeiro lugar - que dizemos nós? de toda a eternidade - se tem imposto a mesma excelsa e singular prerrogativa.

            (1) O iluminado vidente de Palmos faz, no APOCALÍPSE (XII, 8), uma alusão aparentemente enigmática, ao "livro da vida do Cordeiro, que imolado desde o princípio do mundo," o que, em seu sentido esotérico, quererá significar que o sacrifício de Jesus remonta mais longe mesmo do que o acabamos de indicar, isto é, ao período de formação da nossa Terra, a que desde então se associou, presidindo-lhe as fases, o seu espírito puríssimo.

            De toda a eternidade, sim, pois que, desenvolvendo-se embora em sucessivos e incessantes ciclos a criação universal; jamais esteve nem poderia; ter estado inativo o Criador. E a cada um desses ciclos, que o Amor perfeito e infinito vai eternamente desatando, corresponde uma voluntária divina imolação.

            Ousaremos, com a penúria de nossas faculdades, perscruta-lo? Preferiríamos decerto, com Francisco de Salles, exclamar num estase de comovida piedade: "Oh! Quão incompreensível sois, meu Deus, e quanto me alegro de o serdes! Não, eu não quisera poder compreender-vos; pois vós seríeis pequeno, se uma capacidade mesquinha vos compreendesse."

            Como, porém, não é tão alto que pretendemos, nem pretenderíamos desavisadamente nos aventurar, nem se trata - já o dissemos - de devassar os celestes arcanos, senão de invocar um novo titulo de excelsitude com que à nossa obediência filial, tanto como aos transportes do nosso amor, da nossa ilimitada adoração se impõe Aquele a quem devemos tudo - existência, dons, destinos imortais - e que nada exige de seus filhos, como sinal de perfeição, que primeiro e em infinito grau lhes não exemplifique, tentemos a demonstração.

            Uma simples análise no-lo fará compreender.  Aludimos a pouco à situação dos Cristos, como o nosso, prepostos a direção das outras, inumeráveis esferas planetárias disseminadas no infinito, para os quais a incorporação a uma forma objetiva constitui um constrangimento, uma limitação de sua natureza, talvez de seus poderes (1) e, assim, um sacrifício, que, todavia, de tempos a tempos, voluntaria e jubilosamente aceitam, com o fim de lecionar visivelmente as humanidades à sua amorosa tutela confiadas. Constrangimento semelhante, guardadas com tudo as proporções relativas à diversidade dos graus que ocupam na hierarquia dos seres, é o que, ao demais, padece todo espirito, ao ser transferido do estado de liberdade, em que gravita no seu meio normal, ao encarceramento na matéria, com a diferença de que obedece à necessidade fatal da própria evolução, ao passo que nos Messias, ou Cristos de Deus, a incorporação se opera por espírito de abnegação e altruísmo. De todo modo o aprisionamento numa forma, de composição fluídica mais ou menos condensada para espíritos puros, material para os de subalternos graus evolutivos, adstritos a planetas dessa ordem, constitui uma obscurecedora mortificação.

            (1) Aos apóstolos e discípulos prometia Jesus: "Em verdade, em verdade vos digo que aquele que Crê em mim, esse fará também as obras que eu faço e fará outras ainda maiores, porque eu vou para o Pai (Joâo, XIV, 12). Com isso não quereria dizer o Divino Mestre que, uma vez restituído à pátria espiritual, ao esplendor da luz eterna, o seu poder e, portanto, a sua invisível assistência aos fieis continuadores da sua obra aumentariam de intensidade e extensão?

            Pois bem. Transportemo-nos ,agora pelo pensamento acima das exterioridades ilusórias, façamos, por um momento, abstração de todo o universo visível, se tão alto pode ascender o nosso arrojo, antes de toda criação material, e consideremos que, na infinita expansão de sua insondável natureza, Aquele que é o Espírito eterno e incriado, o Absoluto, o Perfeito, a suprema, senão única realidade necessária, imanente e essencial, de nada necessita que o complete, porque de si mesmo vive, a si mesmo e a sua própria glória, basta, e nada a pode acrescentar nem reduzir. E se podemos, para nos cingir á analogia, - único método, nesta indagação, acessível ao nosso entendimento - admitir que o espírito, que "é o que vivifica," segundo a palavra de Jesus, independe de toda forma e vive, e viverá, com as suas intrínsecas capacidades abstratas, mesmo que toda a matéria não exista, ou imaginando, por hipótese, que viesse a dissipar-se absorvida, transmudada na essência espiritual que é a sua fonte, não é difícil igualmente admitirmos, sequer como possibilidade, a existência do Espírito Divino, exclusivo, absoluto e só. Que necessidade para Ele havia, pois, de nos criar, simultaneamente criando, como o tentamos esboçar a propósito da gênese espiritual e planetária (1), os mundos materiais em que, acompanhando o duplo processo, involutivo e evolutivo, os princípios ou germens espirituais se elaboram e individualizam através os deficientes reinos que os compõem?

            (1) Capitulo IX.

            E cabe aqui reproduzir, para lhe buscar a solução, a primeira das interrogações que formulamos no capítulo inicial deste trabalho: Porque vivemos?

            Porque Deus é bom - não pode haver outra resposta - e porque, na infinita, na sempiterna expansão do seu amor, centelhas do seu pensamento irradiadas, nos quis, transferindo do não-ser à consciência individualizada, ao fim de numerosos ciclos evolutivos, fazer participar da plenitude e esplendor de sua mesma vida, tivesse que para isso embora, segundo as leis de sua inescrutável sapiência, mediante a formação dos mundos e dos sois, impor-se o que inelutavelmente nos aparece como uma redução, uma limitação, não importa que sucessiva, parcial e transitória, de sua própria essência.

            Inefável e perturbador mistério, diante do qual se prosterna o nosso pensamento, num hosana! de reconhecimento adorativo a esse Pai Celeste que, para nos dar a vida - ato de puro amor- assim por amor se imola em toda a criação!

            Dir-se-á que a glória do Criador consiste precisamente na manifestação do seu poder, e que o universo visível, com a sua deslumbradora magnificência, de tal modo se nos apresenta como o testemunho vivo, necessário e inseparável de sua onipotência que não podemos conceber um sem o outro? Tal é, com efeito, a contingência humana, incapaz dos remontados surtos de pura abstração e, assim, de alçar-se à concepção do espírito em si mesmo, quanto mais do Espírito Divino. Isso, porém, não invalida nem de leve afeta a nossa argumentação, tendente a exalçar o que se nos afigura o aspecto comovedor desse mistério da criação, de que beneficiamos - e foi o que pretendemos demonstrar - como dádiva de amor e sacrifício.

            Quão grande, ilimitada, não deve ser, por isso, a nossa obediência e fidelidade às injunções desse mesmo amor, que jamais cansa nem se exaure, sobretudo agora que, por uma nova dispensação universalizada - entendemos falar da Revelação espírita -nos induz a remontar à natureza divina de que procedemos e em que importa nos integrarmos quanto antes, numa consciente, indissolúvel e glorificadora comunhão!




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