Tereza D'Ávila e João da Cruz
Médiuns Cristãos do Século XVI
por Aurélio
Fontes
Reformador
(FEB) Dezembro 1978
No século XVII,
precisamente em 1681, começa a segunda parte do notável romance de Emmanuel,
"Renúncia", psicografado por Francisco Cândido Xavier, cuja 8ª edição
foi publicada pela FEB no fim do ano transato.
A cidade medieval
fortificada de Ávila (Castela-a-Velha, Espanha) - cujas muralhas se acham hoje
em perfeito estado de conservação - é seu cenário primeiro. Na sua catedral
famosa, Padre Damiano mantém com regularidade as suas aulas de instrução
primária, enquanto vai atendendo vasta agenda de deveres religiosos, sem
deixar, contudo, de prosseguir sonhando com uma possível missão no Continente
Americano.
Mas, um centênio
antes disso, cumpridas as suas nobilíssimas tarefas em prol da restauração do
puro Cristianismo, na Terra, depois de ter atuado corajosamente contra o
fanatismo e a hipocrisia os mais extremados da Espanha, na fase marcante do
pensamento religioso libertador da Renascença, na Europa, regressava às Esferas
Espirituais de origem a valorosa médium Teresa, seguida, anos mais tarde, pelo
honrado sensitivo João da Cruz, leal discípulo da dileta filha de Ávila.
Emmanuel, que fora o
Padre Damiano, em "Renúncia", e posteriormente o Padre Manuel da
Nóbrega - o "Pai dos Necessitados" (autor da primeira obra literária
escrita no Brasil, "Diálogo sobre a Conversão do Gentio"),
concretizando a antiga aspiração de trabalhar no Novo Mundo -, noutro livro
recebido por Chico Xavier assevera: "Teresa d'Ávila recebe a visita de
amigos desencarnados e chega a inspecionar regiões purgatoriais, através do
fenômeno do desdobramento." ("Pão Nosso", pp. 359/360.)
A Caravana da FEB, em
maio de 1917, deslocou-se de Madri à Ávila a fim de conhecer os sítios em que
lutaram e deram testemunho de sua fé tão incompreendidos Médiuns, embora a
hostilidade permanente que lhes lotavam aqueles que deviam justamente
ampará-los e confortá-los nos difíceis misteres da renovação espiritual e da vivência
exemplificadora do Evangelho do Cristo. Na história da ação abnegada,
silenciosa e perseverante dos preparadores do advento do Consolador Prometido
por Jesus, na crosta planetária, estava faltando um registro especial que
lembrasse os nomes dessas duas criaturas veneráveis e heroicas, que não devem
ser ignoradas ou esquecidas, em tempo algum. Daí o artigo do nosso colaborador. A REDAÇAO
João de Deus
Conheço apenas três mensagens
espirituais ditadas mediunicamente pela gloriosa Teresa d' Ávila. As duas
primeiras, ao grande médium português Fernando de Lacerda ("Do País da Luz", FEB, voI. II, 4ª
ed., pp. 158/163 e voI. IV, 2ª ed., pp. 288/291) e a terceira a Francisco Cândido Xavier ("Instruções
Psicofônicas", FEB, 3ª edição, pp. 151/153). Quem conhece e respeita a
posição espiritual do nosso "Chico" e a excepcionalidade dos seus
dons mediúnicos, poderá avaliar o grau de sublimidade do Espírito da excelsa
carmelita, se analisar com cuidado o sucinto relato do notável
acontecimento, tal como está narrado na obra acima citada: "Grande júbilo marcou para nós a noite de 14
de outubro de 1954 - escreve o relator do "Grupo Meimei". Na fase terminal de nossas tarefas, o
Espirito José Xavier, através dos canais psicofônicos, avisou-nos
fraternalmente: "- Esforcemo-nos por entrelaçar pensamentos e preces, por
alguns minutos, pois receberemos, na noite de hoje, a palavra, distanciada
embora, de quem há sido, para muitos de n6s, um anjo e uma benfeitora. Nosso grupo, em sua feição espiritual, deve permanecer
atento. Neste instante, aproximar-se-á de nós, tanto quanto possível, a grande
Teresa d'Ávila e, assim como um grão de areia pode, em certas situações,
refletir a luz de uma estrela, nosso conjunto receber-lhe-á a mensagem de
carinho e encorajamento, através de fluidos teledinâmicos. A mente do Chico
está preparada agora, qual se fosse um receptor radiofônico. Repetirá,
automaticamente, com certa zona cerebral mergulhada em absoluta amnésia, as
palavras de luz da grande alma, cujo nome não ousarei repetir."
Mas,
quem foi e que fez neste mundo aquele luminoso Espírito, para merecer tão
elevada condição na hierarquia celeste? Antes, porém, de recordar, em ligeiros
traços, a vida e a obra desse Ser de eleição, que ilumina, com o seu fulgor, o
firmamento espiritual de nosso orbe, passemos em rápida revista a época em que
ele viveu entre nós.
O
século XVI estava em seus começos e era um tempo de grandes contradições. Tempo
de descobertas e da colonização de novos mundos - das Américas e das Índias. A
imprensa era ainda recente e estava começando a rasgar horizontes inusitados ao
espirito humano, enquanto novos impérios coloniais se
formavam, sob o cetro de Portugal, da Espanha e da Inglaterra. Ao lado, porém,
dessas fúlgidas conquistas, as trevas morais enegreciam as consciências humanas
e mergulhavam toda a Europa em densa noite de obscurantismo e de violência. A
Igreja de Roma tornara-se centro tão aberto e declarado de corrupção e de
negocismo, que a Religião - única dominante no Ocidente - se tornara a grande
desencaminhadora, ao invés de salvadora das almas. Do Papa Bonifácio VIII (que
usava anel cabalístico, para invocar seu "demônio protetor", e tinha
fama corrente de sodomista e de assassino), o poder eclesiástico passou aos
Papas de Avinhão. Dante descreveu, então, os sete monstros dos pecados capitais
atados ao carro da "Ecclesia
triumphans". A Inquisição, revitalizada e desbordada, oprimia, matava,
roubava e torturava impunemente, sob Clemente V; para depois encher de ouro
simoníaco as arcas de João XXII, e de vinho as adegas de Benedito XII e de
Clemente VI. Não foi por acaso que se espalhou em Avignon, em 1351, uma famosa
"Carta de Lúcifer ao Papa, seu Vigário na Terra". Era a hora e a vez
dos Petrarca e dos Boccacio. Depois, entre o temível Urbano VI e o excomungado
Clemente VII, as mais tradicionais e respeitáveis Ordens religiosas entraram em
sérios dissídios internos e em franca decadência moral. Após uma sequência
infausta de Papas e Antipapas, que mutuamente se
condenavam ao inferno, o nepotismo e a ambição temporal se instalaram no trono
pontifício, primeiro com Martinho V e depois com o deplorável Sisto IV, o
incrível Inocêncio VIII, o Bórgia Alexandre VI e o guerreiro Júlio II, para
finalmente encarnar-se na estranha figura do argentárío e epicurista Leão X.
Era
esse o Pontífice, essa a Igreja, esse o mundo, no ano em que Francisco I
assumiu o trono de França. Era esse o ar que se respirava na Espanha do
impiedoso Inquisidor Francisco Ximenes de Cisneros, quando, no dia 28 de março
de 1515, nasceu, de família abastada, na famosa cidade de ÁviIa, a rica e
nobre Teresa Cepeda Y Ahumada.
*
O
cenário humano da época bem refletia a grande batalha espiritual que a Luz e as
Trevas travavam sobre a Terra. Não estavam na arena social somente os
Angoulême, os Tudor e os Habsburgo; estavam também os Bórgia, o tenebroso
Cardeal Cisneros, a sanguínária Maria da Inglaterra, a sombria Catarina de
Médicis, o execrável Dom João III e estava, igualmente, InÁcío de Loiola. Era
preciso que também estivessem, junto a muitos outros, Francisco Xavier, Tomás
Morus, Nicolau CopérnIco, Teresa Ahumada. Aqueles eram os "tempos heroicos
da Cavalaria", em que a Igreja presidia à solene "investidura"
dos Cavaleiros e lhes entregava as armas, para fazê-los jurar publicamente que
a defenderiam, tanto quanto aos suseranos que os patrocinavam.
Era
um revivescimento institucionalizado das antigas Cruzadas, sem gritos de guerra
ou expedições contra os muçulmanos, mas com o mesmo ímpeto beligerante contra,
generalizadamente, todos os infiéis. A ideia dominante era a de um Reino de
Deus muito terreno, muito material e imediatista, a ser conquistado e defendido
a ferro e fogo, ao tinir das moedas e das armas. Os romances aventurescos eram
leitura geral e obrigatória dos adolescentes e das aristocratas, num cenário de
sonho e de violência, onde a "valentia" era sempre o artigo primeiro de qualquer código
de virtudes.
Foi
nessa atmosfera que Teresa passou a sua infância e os primeiros anos de sua
juventude. O templo em que orava era a rica igreja do Mosteiro Real de São
Tomás, mandado construir por Torquemada e sob cujo altar
renascentista sobressaia o imponente túmulo de mármore do Príncipe Dom João,
irmão de Joana, a Louca. Aos 19 anos, ela viu entrar triunfalmente em Ávila, no
ano de 1534, o Imperador Carlos V, o gotoso monarca que, mais tarde, recolhido
ao Mosteiro de Yuste, na Estremadura espanhola, assistiria a solenes ofícios
fúnebres que, ainda em vida, mandava celebrar em sufrágio de si mesmo.
A
esse tempo, o pai de Teresa, agindo como era de hábito da boa sociedade da
época, já a internara, por um ano, no Mosteiro de "Santa Maria de
Gracia", das agostinianas, onde a jovem não encontrou maiores alegrias.
Sua vocação religiosa era muito clara, mas o seu coração não podia entender e
amar a Cristo senão de um modo alegre, puro, verdadeiro, íntimo e poético, e
jamais nos termos convencionais das fórmulas frias e estreitas que eram
praticadas. Além disso, já lhe repercutiam na alma os ecos da tempestade que
sacudia a Igreja e o Império. Os protestos de Lutero, abrindo a "Questão
das Indulgências", haviam resultado na sua excomunhão, mas a dura
repressão eclesiástica à Reforma acabou provocando o morticínio de cem mil
pessoas, nas "guerras dos camponeses" da Alemanha do Sul, da Suábia e
da Francônia, a "Dieta de Spira" e a "Confissão de
Augsburgo", O mundo "cristão" estava mergulhado na maior crise interna
de sua história. Henrique VIII já havia rompido com o Papa e fundado o
Anglicanismo quando, conforme conta Emmanuel ("A Caminho da Luz",
FEB, página 176) "os Espíritos
tenebrosos e pervertidos, que mostraram ao europeu outras aplicações da pólvora,
além daquelas que os chineses haviam enxergado na beleza dos fogos de
artifício, inspiraram ao cérebro obcecado e doentio de Inácio de Loiola a
fundação do jesuitismo, em 1534, colimando reprimir a liberdade das consciências".
Teresa
não pôde esperar mais. Era preciso ajudar a salvar o espírito do Cristianismo e
a reformar a Igreja. Fugida de casa, bateu à porta do Mosteiro da Encarnação e
pediu para ser carmelita. Era o dia 2 de novembro de 1535.
*
A
Igreja a cujo seio Teresa agora se acolhia não era mais a Igreja primitiva e
simples do "Caminho". "Cooperando
com o Estado - diz Emmanuel, ob. cit., página 138 -, faz sentir a força das suas determinações arbitrárias. Trezentos anos
lutaram os mensageiros do Cristo, procurando ampará-la no caminho do amor e da
humildade, até que a deixaram
enveredar pelas estradas da sombra, para o esforço de salvação e de
experiência; e, tão logo a abandonaram ao penoso trabalho de aperfeiçoar-se a
si mesma, eis que o imperador Focas favorece a criação do Papado, no ano 607. A
decisão imperial faculta aos bispos de Roma prerrogativas e direitos até então
jamais justificados. Entronizam-se, mais uma vez, o orgulho e a ambição na
cidade dos Césares. Em 610, Focas é chamado ao mundo dos invisíveis, deixando
no orbe a consolidação do Papado. Dessa data em diante, ia começar um período
de 1260 anos de amarguras e violências para a civilização que se fundava."
No
ano de 755, Pepino, o Breve, rei dos Francos, forçou os Lombardos a doarem ao
Papa Estêvão II os ricos territórios do Exarcado de Ravena e da Pentápole, que
passaram a formar, no ano seguinte, o chamado "Patrimônio de São
Pedro". Assim, o Papa se tornou rei e a Igreja passou a ser Estado. "Instalada nas suas imensas riquezas e
dispondo de todo o poder e autoridade, a Igreja poucas vezes compreendeu a tarefa
de amor, que competia à sua missão educativa - assinala
Emmanuel (ob. cit., pp. 157/161). Habituada
a mandar sem restrições, muitas vezes recebeu as advertências de Jesus à conta
de heresias condenáveis, que era preciso combater e profligar. As exortações do
Alto não se faziam sentir tão somente no seio das ordens religiosas, onde
penitentes humildes proporcionavam aos seus orgulhosos superiores eclesiásticos
as mais santas lições da piedade cristã. Também na sociedade civil as sementes
de luz deixavam entrever os mais esperançosos rebentos de compreensão e de
sabedoria, a cerca do Evangelho e dos exemplos do Cristo. Neste caso está Pedro
de Vaux, que, embora sendo um homem de negócios, em Lião, desligou-se de todos
os laços que o prendiam às riquezas humanas, despojando-se de todos os bens em favor dos pobres e necessitados,
comovido com a leitura da exemplificação de Jesus no seu Evangelho de amor e
redenção. Esse homem extraordinário, a quem fora cometida a missão de
instrumento da vontade do Senhor, mandou traduzir os livros sagrados para
leitura pública e, junto de outros companheiros que passaram à História com o
nome de valdenses, iniciou amplo movimento de pregações evangélicas, à maneira
dos tempos apostólicos. Os Pobres de Lião foram excomungados, primeiramente pelo arcebispo da
cidade e mais tarde, em 1185, pelo pontÍfice do Vaticano. A Igreja não poderia tolerar outra doutrina que
não a sua, feita de orgulho e mal disfarçada ambição. Qualquer lembrança
verdadeira e sincera, do seu divino Fundador, era tomada como heresia
abominável e suscetível das mais severas punições. A verdade, porém, é que, se
os valdenses foram caluniados pelas forças católicas, suas pregações e apelos
nunca mais desapareceram do mundo, desde o século XI, porque, com vários nomes,
as suas organizações subsistiram na Europa até à Reforma, não obstante os
guantes de ferro da Inquisição. -Os apelos do Alto continuaram a solicitar a atenção da
Igreja romana em todas as direções. As chamadas "heresias" brotavam
por toda parte onde houvesse consciências livres e corações sinceros, mas as
autoridades do Catolicismo nunca se mostraram dispostas a receber semelhantes
exortações. Havia terminado, em 1229, a guerra contra os hereges, cujos embates
atravessaram o espaço de vinte anos, quando alguns chefes da Igreja
consideraram a oportunidade da fundação do tribunal da penitência, cujos
projetos de há muito preocupavam o pensamento do Vaticano. Mascarar-se-ia o
cometimento com o pretexto da necessidade de unificação religiosa, mas a
realidade é que a instituição desejava dilatar o seu vasto domínio sobre as
consciências. Todavia, se a lnquisição preocupou longamente as autoridades da
Igreja, antes da sua fundação, o negro projeto preocupava igualmente o Espaço,
onde se aprestaram providências e medidas de renovação educativa. Por isso, um dos maiores apóstolos de Jesus
desceu à carne com o nome de Francisco de Assis. Seu grande e luminoso Espírito resplandeceu próximo de Roma, nas
regiões da Úmbria desolada. Sua atividade reformista verificou-se sem os atritos próprios da palavra,
porque o seu sacerdócio foi o exemplo na pobreza e na mais absoluta humildade.
A Igreja, todavia, não entendeu que a lição lhe dizia respeito e, ainda uma vez, não aceitou
as dádivas de Jesus. (...) Muito pouco valeram as lições do bem, diante do mal
triunfante, porque em 1231 o Tribunal da Inquisição estava consolidado com Gregório
IX. Esse instituto, ironicamente, nesse tempo não condenava os supostos
culpados diretamente à morte - pena benéfica e consoladora, em face dos martírios
infligidos aos que lhe caíssem nos calabouços -, mas podia aplicar todos os
suplícios imagináveis. A
repressão das "heresias" foi o pretexto de sua consolidação na
Europa, tornando-se o flagelo e a desdita do mundo inteiro."
Desde
1231, haviam transcorrido trezentos anos de sombra e de violência. Agora, em
1535, Teresa de Jesus ia tentar
acender, de novo, o fogo santo do amor e da verdade, na penumbra dos claustros
medievais. Durante trinta e oito anos, travou, na humildade e no trabalho, uma luta silenciosa e terrível
contra os vícios e a hipocrisia que a rodeavam. A História batizou essa batalha
heroica de "Reforma do Carmelo", Mas, que reforma foi essa? Em que
consistiu e que teve de extraordinário? Na realidade, nada mais foi do que um
esforço imenso, honesto, contínuo e decidido, para a vivência do Evangelho de
Jesus, em espírito e verdade, para o retorno sincero ao puro Cristianismo. Isso
foi tão difícil, suscitou tanta oposição e tantas perseguições, que Teresa, já
com 62 anos e desde muito tempo responsável por suas Irmãs Descalças, foi obrigada a se dirigir quatro vezes ao rei
Filipe II. A última dessas quatro cartas é tão esclarecedora e
tão dramática, que me permito transcrevê-la aqui, integralmente. Ela consta do
livro "Cartas", de Teresa, editado em
português (como todos os demais escritos da
Autora) pela Editora Vozes e foi reproduzida na obra "A Porta de Ávila",
do carmelita italiano Luigi Carlo Di Muzio, que me foi valiosa para este
artigo.
Eis
a carta:
"A graça do Espírito Santo esteja sempre com
Vossa Majestade. Amém. Creio muito firmemente que houve por bem Nossa Senhora
valer-se de vossa Majestade e toma-lo por amparo e remédio de sua Ordem, e
assim não posso deixar de acudir a Vossa Majestade no que nos diz respeito. Por amor de Nosso Senhor, suplico a Vossa
Majestade perdoar-me tanto atrevimento.
Bem creio tem Vossa Majestade conhecimento
de como estas monjas do mosteiro da Encarnação têm provado levar-me para lá, pensando por este meio achar
algum remédio para liberar-se dos Frades (os Calçados); pois, é certo, lhes
servem de grande estorvo para o recolhimento e a religião que elas têm em vista, e são responsáveis
por toda a culpa das faltas de observância no passado. Estão, porém, muito enganados, porque
enquanto lhes estiverem sujeitas, tendo-os por confessores e visitadores, de nenhum
proveito, ao menos duradouro, é minha ida para lá. Assim o afirmei sempre ao visitador
dominicano, e ele estava bem convencido disto.
Para melhorar a situação, enquanto Deus
fazia sua obra, pus ali numa casa um Frade Descalço (Frei João da Cruz), tão
grande servo de Nosso Senhor, que as tem edificado muito, juntamente com um seu
companheiro. Espantada está a cidade com o grandíssimo proveito que resultou,
de modo que o têm por santo; e em minha opinião o é, e o tem sido toda a sua
vida.
Informado disto o Núncio passado, e também
do prejuízo que faziam os do Pano - por larga informação que lhe foi
apresentada por parte da cidade -, promulgou um mandamento com excomunhão para
que fizessem voltar os confessores descalços, que haviam expulsado com muitos
insultos e escândalo do povo. Além disso, mandou, sob pena de excomunhão, que
nenhum Padre do Pano fosse à Encarnação a tratar de algum negócio, ou a dizer
Missa, ou a confessar, só o permitindo aos Descalços e Padres seculares. Com
isto ficou em bom estado a casa, até que morreu o Núncio, e voltaram os
Calçados sem mostrarem com que autoridade o podiam fazer. Com eles voltou a
inquietação.
E agora, um frade (fr. Maldonado, por
comissão recebida do Padre Tostado) que veio absolver as monjas, tanto as maltratou, e tão sem ordem e justiça, que
estão bem aflitas, e não livres das penas que antes tinham, segundo me disseram. Ainda
por cima, tirou-lhes os confessores descalços, dizendo-se nomeado Vigário
provincial - e assim deve ser, porque tem mais capacidade do que os outros para fazer mártires -,e levou-os
presos ao seu mosteiro, depois de arrombadas as celas e tomados os papéis que tinham.
Está todo o lugar bem escandalizado, por
verem como, não sendo Prelado nem mostrando com que autoridade assim agiu -
pois os Calçados estão sujeitos ao Comissário Apostólico -, atrevem-se a tanto, nesta cidade que tão perto está de
onde reside Vossa Majestade. Dir-se-ia não temem a justiça, nem a de Deus. Da
minha parte fico muito aflita por ver os nossos em mãos de seus contrários, que
há bastante tempo o premeditavam; mais quisera eu vê-los entre mouros, pois
talvez usassem de mais piedade. E esse Frade, tão servo de Deus, está de tal
modo fraco, do muito que tem padecido, que temo por sua vida.
Por amor de Nosso Senhor suplico a Vossa
Majestade mande que o mais breve possível o libertem, e que se deem
providências para que não sofram tanto, com os de Pano, todos estes pobres
Descalços, que não fazem senão calar e padecer. Ganham muito, mas de tudo isto
resulta escândalo entre o povo. Este mesmo Calçado (Frei Maldonado) que aqui
está, neste verão prendeu sem nenhuma causa, em Toledo, Frei Antônio de Jesus,
que é um bendito velho, o primeiro que professou. E andam dizendo, por ai, que
hão de perder a todos, porque assim lhes mandou o Tostado. Seja Deus bendito,
pois os que haviam de servir de meios para impedir que o Senhor fosse ofendido,
são ocasião de tantos pecados; e cada dia procederão pior.
Se Vossa Majestade não manda remediar o mal,
não sei onde iremos parar, porque nenhum outro apoio temos na Terra. Praza a
Nosso Senhor conservá-lo muitos anos no nosso meio... Nele espero que nos fará
esta mercê, pois se vê este Senhor destituído de quem olhe por sua honra.
Continuamente Lho suplicamos, todas nós, estas servas de Vossa Majestade, e eu.
Feita em S. José de Ávila, a 4 de dezembro de 1577. Indigna serva e súdita de
Vossa Majestade, Teresa de Jesus, Carmelita."
Valeram,
porém, os excelentes resultados espirituais do trabalho evangélico de Teresa,
tão cheio de duras provações e sacrifícios. O exemplo da grande carmelita
frutificou na Espanha e no mundo, consolando e
salvando muita gente. Ela, entretanto, não lutou só. Alguém foi, sobre a Terra,
o seu "alter ego", companheiro
amado e inseparável, alma eleita, como ela, a serviço do Senhor. Chamou-se João
Alvarez Yepes, ou, como ficou conhecido, João da Cruz (Juan de Ia
Cruz).
*
"Dou-vos
por confessor um padre que é um santo" - escreveu Teresa de Jesus, ao
apresentar seu amigo às suas monjas. "é
o padre de minha alma, um daqueles que me fizeram maior bem. Minhas filhas, recorram a ele com muita
confiança; considerem-no como uma outra eu mesma e terão muita satisfação,
porque é muito espiritual, douto e cheio de experiência."
Tinha
João da Cruz quatro ou cinco anos de idade quando, quase a afogar-se num
pântano, viu, de repente, lindíssima Senhora, que lhe disse: "Filhinho;
dê-me a sua mão e eu tiro você daí." Mesmo estando para morrer, hesitou em
obedecer, para não sujar a nobre Dama com a sua mão enlameada, mas depois
entendeu que a lama da terra não afeta os Espíritos e tornou-se devoto da Mãe
Santíssima, até o fim dos seus dias.
João
nasceu paupérrimo, filho de um nobre, Gonzalo de Yepes, deserdado por casar-se
com a plebeia Catalina Alvarez. Recolhido pelo "Colegio de Ia Doctrina", para quem passou, desde cedo, a
mendigar, tornou-se enfermeiro voluntário dos indigentes do Hospital da
Conceição, enquanto frequentava as aulas noturnas dadas pelos jesuítas. Sua brilhante
inteligência valeu-lhe a proteção de Dom Alonso Alvarez de Toledo, à qual João renunciou para ingressar, aos vinte e um anos, no
convento carmelita de Medina del Campo. Daí, mandaram-no estudar em Salamanca,
onde foi ordenado sacerdote em 1568. De regresso a Medina del Campo; abriu mão
de todas as ofertas para uma brilhante carreira eclesiástica e se uniu a Teresa
de Jesus, que desde 1562 fundara o primeiro mosteiro das Descalças, em San José
de Ávila, para a difícil e genuína experiência de viver integralmente o
Evangelho. Ampliando para o setor masculino o trabalho renovador de Teresa,
João da Cruz fundou, em Duruelo, o primeiro convento dos Carmelitas Descalços.
A
experiência de Teresa e de João foi essencialmente a mesma. Os dois mantiveram,
durante anos a fio, contatos íntimos e diários com os "fantasmas",
que nada mais eram do que Espíritos, mas nem sempre Espíritos bons. Ela esteve
quase à morte, por diversas vezes, e nunca gozou de uma perfeita saúde, mas sua
vida espiritual dia a dia tornava-se mais bela. Seus poemas, doces e ardentes,
suas cartas, meditações e exercícios, multiplicavam-se, cheios de inspiração.
Escreveu sua autobiografia, o "Livro da Vida", o "Caminho da
Perfeição", o "Castelo Interior", "Cartas",
"Fundações", "Conceitos do Amor de Deus", "Relações
Espirituais".
Esplêndido
é o seu poema "Muero porque no muero".
"MUERO PORQUE NO MUERO"
Vivo sin vivir en mí,
y tan alta vida espero,
que muero porque no muero.
GLOSA
Aquesta divina unión,
del amor con que yo vivo,
hace a Dios ser mi cautivo,
y libre mi corazón;
mas causa en mí tal pasión
ver a Dios mi prísíonero,
que muero porque no muero.
iAy! i Qué larga es esta vida!
i Qué duros estos destierros,
esta cárcel y estos hierros
en que el alma está metida!
Sólo esperar Ia salida
me causa um dolor tan fiero,
que muero porque no muero.
i Ay! i Qué vida tan amarga
do no se goza el Sefior!
Y si es dulce el amor,
no lo es Ia esperanza larga;
quíteme Dios esta carga,
más pesada que el acero,
que muero porque no muero.
Sólo con Ia confianza
vivo de que he de morir;
porque muriendo, el vivir
me asegura mi esperanza:
muerte do el vivir se alcanza
no te tardes que te espero,
que muero porque no muero.
Mira que el amor es fuerte;
vida, no seas molesta;
mira que sólo te resta,
para ganarte, perderte;
venga ya Ia dulce muerte,
venga el morir muy Iigero,
que muero porque no muero.
Aquella vida de arriba
es Ia vida verdadera:
hasta que esta vida muera,
no se goza estando viva;
muerte no seas esquiva;
vivo muriendo primero,
que muero porque no muero.
Vida, qué puedo yo darle
a mi Dios que vive en mí,
si no es perderte a ti,
para mejor a El gozarle?
Quiero muriendo alcanzarle,
pues a El solo es el que quiero,
que muero porque no muero.
Estando ausente de ti,
qué vida puedo tener,
sino muerte padecer
Ia mayor que nunca vi?
Lástima tengo de mí,
por ser mi mal tan entero,
que muero porque no muero.
João
da Cruz, a quem a Academia de Língua Espanhola considera um mestre de estilo, a
ponto de proclamá-lo, em 1952, o Patrono dos Poetas de Língua Espanhola,
também produziu, na mesma época, obras imortais:
"Cântico Espiritual", "Máximas", "A Subida do Monte
Carmelo", "Noite Escura", "Chama Viva de Amor",
"Palavras de Luz".
*
As
piores provações para a reforma do Carmelo haviam sido vencidas. A prisão de
João da Cruz, em Toledo, as calúnias, as humilhações, as perseguições a Teresa
e suas Descalças. O mundo, porém, ia de mal a pior. Em 1562, explodiam na
França as guerras religiosas e Catarina de Médicis ordenava o "Massacre de
São Bartolomeu". "Os
mensageiros do Cristo deploram tão dolorosos acontecimentos - registra
Emmanuel (obra citada, pp. 180/1) -, trabalhando
por despertar a consciência geral, arrancando-a daquela alucinação de
morticínio e sangue, mas precisamos considerar que cada homem, como cada
coletividade, pode cumprir seus deveres ou agravar suas responsabilidades
próprias, na esfera de sua liberdade relativa. As lutas na Europa, em todo o século XVI, longe de colimar um fim,
dilatavam-se em guerras tenebrosas, mergulhando os povos do Velho Mundo num
terrível círculo vicioso de reencarnações e resgates dolorosos."
Teresa
regressou aos braços do Cristo na tarde de 4 de outubro de 1582, aos 67 anos de
idade terrestre. João da Cruz volveria, por seu turno, ao mundo espiritual, na madrugada de 14 de dezembro de 1591, com 49 anos
bem vividos. Agora, é do Carmelo Celeste que, em nome de Jesus, eles dois
piedosamente nos contemplam, nos abençoam e nos ajudam.
Amei o seu artigo. Parabéns! O seu trabalho é muito bonito e merece todo o nosso respeito e admiração!
ResponderExcluirRepito as palavras do Eduardo Rossatto, prezado Aurélio Fontes! Ivan, B.Hte MG 09MAI2024
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