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sexta-feira, 9 de janeiro de 2015

O Retorno da 'Mi-Carême'



O Retorno da

 “Mi-Carême”
Editorial
Reformador (FEB) Fev 1971


            Doze anos antes, aquele mesmo povo fizera a Revolução. Agora, sem se dar conta disso, estava na iminência de desfazê-la. Enquanto antigas festas iam sendo recuperadas, datas sérias dos jacobinos iam sendo esquecidas. Bonaparte, preocupado em contemporizar, começou a considerar que alguns usos e costumes podiam ser restabelecidos. Era conveniente, porém, nada precipitar. O povo, por si só, regressaria aos seus hábitos, enquanto o Governo simplesmente “fecharia os olhos”...

            Foi assim que voltou a realizar-se a famosíssima “Mi-Carême”, que passou aos tempos modernos sob a alcunha de Carnaval. O retorno foi lento e cauteloso. Dubois, o prefeito da Polícia, primeiro proibiu todas as máscaras. Mas em pouco, talvez por desejo mesmo do Primeiro-Cônsul, esses rigores passaram a atenuar-se e logo foram programados quatro bailes de máscaras, no próprio Teatro da Ópera. O de abertura, que coincidiu com a antiga “Mi-Carême”, provocou confusão indescritível, com extremada licenciosidade. Mais um ano e o Carnaval sairia do Ópera para o meio da rua, onde não tarda a reencontrar a amplídão do seu antigo estilo: desfiles de carros suntuosos, os deuses do Olimpo rodeados de amores, etc.. Paris voltaria a dar provas de grande imaginação carnavalesca. Concessão após concessão, o austero regime bonapartista acabaria envolvido pelas circunstâncias e ... tudo voltava há 12 anos passados; e com tal ímpeto que o Carnaval, pelo menos, sobrenadaria à Waterloo do impetuoso corso, chegando também ao Brasil e aqui se transformando na maior festa popular.

            Recordamos o episódio porque parece que ele ameaça repetir-se no Brasil, nos arraiais do Espiritismo. Este, segundo a permanente advertência dos Espíritos Superiores, veio fadado a movimentar-se, como réplica da primitiva “Casa do Caminho”, liberto do pernicioso mosaico de símbolos, ritos, credos, senhas, imagens, emblemas, homenagens, cerimônias, liturgias, etc. Contudo, é preciso manter constante e severa vigilância. O passado, dentro de todos nós, é um artesão pertinaz, a forjar mil desculpas, a enredar-nos com mil justificativas, para sobrepor-se outra vez ao presente de nossas jornadas. Por isso mesmo é que, vez por outra, ressurgem velhas tradições, do tempo em que, certamente, convivemos como adeptos dos cultos formalísticos e exteriores. Então, na primeira claudicação, confeccionamos retratinhos de médiuns com orações impressas no verso, distribuímos flâmulas coloridas com imagens de vultos do Espiritismo ou comemorativas de feitos doutrinários, recapitulamos o espírito escolástico ou academicista no ensino espírita, valemo-nos das efemérides cronológicas para exibir, rotineiramente, os fastos da Doutrina, ofertamos chaveirinhos com motivos espíritas, compomos hinos gratulatórios, estereotipamos frases ou locuções para início e fecho da correspondência entre confrades, forjamos títulos honoríficos, homenagens adulativas, panegíricos e quejandos...

            A doutrina espírita é isenta disso tudo, ou não é Doutrina. Ela adverte dos perigos subreptícios dessa “delenda Carthago” religiosa. Mas, o “homem velho” é forte e resistente. Ele não se conforma com morrer sem luta. Tem fôlego para muitas encarnações. Respirou muitos séculos entre louvaminhas, cerimônias, ladainhas, cantochões, pragmáticas, peregrinações: enfim, cresceu no seio do processo da grande “Mi-Carême” religiosa. Por isso mesmo, pressiona com argúcia, com sutilidade, com subterfúgios e sofismas, para empalmar outra vez o palco das nossas consciências. Imperceptivelmente, êle vai ganhando terreno e, daqui a pouco, sem sentirmos, estaremos novamente imprimindo santinhos, renovando a Escolástica ou adorando imagens.

            E se não “abrirmos os olhos”, chegaremos a restabelecer as procissões, a restaurar as ordens religiosas e a reimplantar a hierarquia dos “doutores da lei”. Então, mais do que a “Mi-Carême”, o retrocesso seria “pour épater Kardec même”...  (Do Blog: para espantar até mesmo a Kardec)

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