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quinta-feira, 11 de agosto de 2011

Rivail - O direito de ser Kardec



 Rivail – 
o direito de ser Kardec


 Reformador  (FEB) – Novembro de 1976



            No ensaio biográfico “Vida e Obra de Allan Kardec[1], diz André Moreil que, certa noite, Z., Espírito protetor de Rivail, deu-lhe uma comunicação toda pessoal, informando havê-lo conhecido numa existência anterior, quando, na época dos druidas, viveram juntos nas Gálias. Disse-lhe que seu nome era, então, Allan Kardec. “A partir  deste momento – comenta Moreil -, Denizard Rivail já não existe. A missão recebida, o título de chefe doutrinário de uma ciência ditada pelos EspÍritos, obrigam-no a “renascer” como Allan Kardec. O novo nome lhe parece revestido de valor quase esotérico”.
           
            Os druidas eram sacerdotes celtas. Os celtas, povos antiquíssimos, de origem indo-germânica, empreenderam grandes migrações, desde os tempos pré-históricos, percorrendo toda a Europa, desde as ilhas Britânicas até a Ásia Menor mas, por volta do ano 250 antes do cristo, quando atingiram o clímax do seu poder, estavam fixados principalmente na Gálias.  Embora sua linguagem já estivessem estruturados desde sete séculos antes de nossa era, jamais se organizaram politicamente sob qualquer forma de império. Só uma força os unia> - a casta sacerdotal dos druidas, que mantinha íntegros os preceitos religiosos e as tradições do mundo celta. Reverenciados pelas tribos, por onde quer que fossem, os druidas eram mais do que sacerdotes, porque também teólogos, filósofos e juízes, a quem cabia a condução espiritual de um povo cujas crenças se baseavam na imortalidade da alma e na reencarnação.

            A crítica malévola dos adversários do Espiritismo não deixou passar sem animadversão o pseudônimo do Professor Rivail. Já em 1857, este se preocupava em prestar esclarecimentos sobre o assunto. O Dr. Sylvino Canuto Abreu, residente na cidade de São Paulo, possui em seus arquivos o rascunho, escrito pelo próprio punho do Codificador, de uma carta por ele dirigida a Tiedeman, em 27 de outubro de 1857, nos seguintes termos:

            “Duas palavras ainda a propósito do pseudônimo. Direi primeiramente que neste assunto lancei mão de um artifício, uma vez que dentre 100 escritores há sempre os ¾  que não são conhecidos por seus nomes verdadeiros, com a só diferença de que a maior parte toma apelidos de pura fantasia, enquanto que o pseudônimo Allan Kardec guarda uma certa significação, podendo eu reivindica-lo  como próprio em nome da Doutrina. Digo mais: ele engloba todo um ensinamento cujo reconhecimento por parte do público reservo-me o direito de protelar... Existe, aliás, um motivo que a tudo orienta: não tomei esta atitude sem consultar os Espíritos, vez que nada faço sem lhes ouvir a opinião. E isto o fiz por diversas vezes e através de diferentes médiuns, e não somente eles autorizaram esta medida, como também a aprovaram.”[2]

            Somente dezoito anos depois da publicação de “O Livro dos Espíritos” surgiria a oportunidade que os inimigos da Doutrina Espírita esperavam para atacar publicamente  e sem rebuços a onomatópose do Codificador. A história desse ataque foi resumida em “Reformador” de dezembro de 1975, às páginas 20 e 21, donde tiramos os seguintes trechos:
            ‘Cinco anos após a desencarnação deAllan Kardec, a “Revue Spirite” publicou inúmeros artigos sobre fotografia de Espíritos, ilustrando-os, bem assim as notas informativas que a respeito estampava, com as fotos das pessoas que posavam para os fotógrafos (Buguet – médium – e Firman), e junto às quais apareciam amigos ou parentes desencarnados. Uma das fotografias, de Madame Allan Kardec, trazia a imagem do Codificador do Espiritismo, ostentando uma mensagem em francês, transcrita também na “Revue Spirite”. No ano seguinte – 1875 - , precisamente no dia 16 de julho, quarta-feira, instaurava-se um processo que ficaria célebre: o Procès des Spirites (Processo dos Espíritas), contra Buguet, Firman e, também (e especialmente, é óbvio), Pierre-Gaëtan Leymarie. (...) O Procès de Spirites é algo tenebroso, autêntica peça inquisitorial, só concebível de ter existido nos distantes tempos da Idade Média. As próprias autoridades judiciais se permitiram dialogar de forma desrespeitosa com os acusados, avançando conclusões e, mesmo , desvirtuando assim informações, com o intuito indisfarçado de prejulgar.  Nem sequer a Viúva Allan Kardec, que prestou declarações como testemunha intimada a comparecer a interrogatório, teve o tratamento devido aos seus cabelos brancos, conforme protesto verbal, na hora, e escrito, que exigiu fosse exarado nos autos respectivos”. [3]

            Do mencionado interrogatório, a que foi submetida a Viúva Kardec, constam as seguintes perguntas e respostas, relativas ao pseudônimo do Codificador:

Juiz Millet – Afinal, em que época o Sr Rivail adotou o nome de Allan Kardec?
Sra Rivail – Por volta de 1850.
Juiz Millet – Onde buscou ele esse nome? Num manual de bruxaria?
Sra Rivail – Não sei o que o Sr. pretende dizer.
Juiz Millet – Nós conhecemos as origens dos livros de seu marido: ele se valeu sobretudo de um manual de bruxaria de 1522, de um outro livro intitulado Alberti... e de outros.
Sra Rivail – Todos os livros de meu marido foram criados por ele, com a ajuda de médiuns e evocações. Não conheço nenhum dos livros a que o Senhor se refere.
Juiz Millet – Nós os conhecemos; o nome de Allan Kardec, que seu marido adotou, é o nome de uma grande floresta da Bretanha[4]. A Sra. erigiu a seu esposo um túmulo no Père-Lachaise e nele colocou o nome de Allan Kardec; está convencida de que ele foi tal?
Sra. Rivail – Eu creio que não se deve gracejar sobre isso. Não é agradável ver rir de tais coisas.
Juiz Millet – Nós não estimamos as pessoas que se apropriam de nomes que não lhes pertencem, escritores que pilham de obras antigas, que ludibriam o espírito público.
Sra Rivail – Todos os literatos usam pseudônimos; meu marido nada pilhou.
Juiz Millet – Foi um compilador, não um literato; um homem que fez magia negra ou branca; fique sentada! [5]

            O que a cega e irreverente malevolência dos acusadores do Codificador sempre fez questão de esquecer é que o uso de pseudônimo sempre foi, é e será comum em toda parte. Não são apenas os literatos que os utilizam; a prática também é vulgar entre os artistas e até entre os políticos. Os monarcas se dão novos nomes quando são coroados. Nas ordens religiosas católicas trocam-se os nomes dos que fazem votos. E as pessoas de todos os povos, em todos os países do mundo, usam corriqueiramente apelidos familiares ou sociais.  
            A verdade é que, ao adotar o pseudônimo de Kardec, o Professor  Hyppolyte Léon Denizard Rivail deu valioso testemunho não somente de fé, mas igualmente de humildade, pois seu nome civil era dos mais ilustres da França. Ele descendia de antiga e conceituada família, cujos membros brilharam na advocacia e na magistratura. Foi dos mais eminentes discípulos de Pestalozzi e, depois, conselheiro influente nas reformas de ensino levadas a efeito na França e na Alemanha. Poliglota dos melhores, dominava, além do francês, o alemão, o italiano, o inglês e o latim. Tradutor emérito, verteu para o alemão obras importantes, inclusive de Fenelon. Membro da Academia de Arras e de outras instituições culturais e científicas, ensinou gratuitamente, em seu estabelecimento da Rua de Sévres, Química, Física, Matemática, Anatomia Comparada, astronomia e História. Publicou, sozinho ou em parceria com Lévi-Alvarès, numerosos trabalhos didáticos, inclusive sobre Aritmética, Geometria e Gramática Francesa Clássica.
            Uma pessoa com tantos méritos e nome tão ilustre não precisava ocultar-se, senão por nobres razões, por trás de um pseudônimo.
            A função sacerdotal, entre os druidas, era eletiva e vitalícia. Ao tempo em que fora Allan Kardec entre os celtas, ele foi eleito pelo povo e exerceu o sacerdócio até a morte[6]. Na França do século XIX, foi de novo eleito, mas pelo Espírito da Verdade, para um novo sacerdócio: - o do Consolador Prometido por Jesus, no qual também trabalhou, infatigavelmente, pelo resto de sua vida terrena, quando afinal brilhou, luminosa e imarcescível, sobre a sua cabeça venerável, a “tiara espiritual” a que se referiu a Sra. de Cardone, no dia 6 de maio de 1857.  


[1] La Vie et L’Oeuvre d’Allan Kardec, 1ª edição, pp. 111 e 112, Éditions Sperar, Paris, 1961. Na tradução de Miguel Maillet (Edicel, S. Paulo, s/d), o assunto figura às pp. 66 e 67.
[2] Este Sr. Tiedeman, destinatário da carta, parece ser o mesmo que, à época, hesitou muito em decidir-se a apoiar Rivail, financeiramente, no empreendimento da “Revue Spirite”. Mais tarde (vide “Obras Póstumas”, Segunda Parte, nota aos apontamentos da reunião de 15-11-1857, 15ª edição, FEB, p. 294), o Codificador reconheceu fora para ele uma felicidade não ter tido quem lhe fornecesse fundos, pois, “sozinho, eu não tinha que prestar contas a ninguém, embora, pelo que respeitava o trabalho, me fosse pesada a tarefa”. A Espiritualidade Superior lhe adiantara: “Podes prescindir dele”. Pode, realmente, arcando pessoalmente com todo o ônus da empreitada.
                A carta aludida, por constituir documento histórico do Espiritismo, vai transcrita, a seguir, em francês, na parte referente ao pseudônimo:
                “Deux mots encore sur le pseudonyme. Je dirai d’abord qu’en cela j’ai suivi un rusage reçu, puisque sur 100 écrivans il y a les ¾ qui ne sont pas connus sous leur veritable nom, avec cette difference que la pluspart prennent des noms de pure fataisie, tandis que celui d’Allan Kardec a une signification et que je puis le revendiquer comme mien au nom de la doctrine. Je dis plus: il renferme tout un enseignement que je me reserve de faire connaître  plus tarde. (…). Il y a d’ailleurs une raison qui domine tout: je n’ai point pris ce parti sans consuiter les Esprits, puisque  je ne fais rien sans leur avis. Je l’ait fait à plusieurs reprises et par different médiuns; or, ils ont non seulement autorisé, mais approuvé cette mesure.” (O manuscrito integra o rico acervo do arquivo de raridades históricas do Espiritismo,pertencente ao Dr Canuto Abrey.)
[3] O “o Procés des Spirites” está sendo editado pela FEB. Precedendo o inteiro teor do documentário, em francês, há uma Apresentaçã, em português, fartamente ilustrada e anotada, que Hermínio C. Miranda preparou (cerca de 140 páginas), a pedido da nossa Casa, resumindo o livro da Sra. Marina P.-G. Leymarie. Esta última parte será publicada, também , separadamente.
[4] O Juiz incorreu em ‘equívoco’; não sendo tão grande, a tal floresta não mereceu registro nos compêndios de Geografia nem nos dicionários e enciclopédias...
[5] Eis o protesto escrito da Viúva Rivail (p. 8 do apêndice ao “Procès des Spirites”): “Declaro que o Sr. Presidente da Sétima Câmara  Correcional não me deixou livre para bem desenvolver o meu pensamento, pois, em meu interrogatório, introduziu reflexões estranhas ao debate e desejou ridiculizar o Sr. Rivail, conhecido como Allan Kardec, fazendo dele um simples compilador e negando seu título de escritor. Protesto energicamente contra essa maneira de interrogar e solicito ser ouvida novamente, porque é costume na França respeitar as senhoras, sobretudo quando tem os cabelos brancos. Não se deveria interromper-me e mandar assentar-me, após terem se divertido com o que considero inatacável, ou seja, o direito de ter feito construir um túmulo para o meu companheiro de provações, para o esposo, estimável e honrado por homens do mais alto valor”.
[6]  Esta afirmativa – quanto à função de sacerdote druida, em vida anterior – ao que sabemos, não está amparada por documento escrito publicado, mas os biógrafos de Allan Kardec tem-na repetido sempre, inclusive Léon Denis. 



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