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sexta-feira, 28 de fevereiro de 2020

Aron, um espírita






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A Mediunidade



Ismael Gomes Braga

A Mediunidade
Ismael Gomes Braga
Reformador (FEB) Novembro 1947

            Acontecerá depois que derramarei o meu espírito sobre toda a carne; vossos filhos e vossas filhas profetizarão, os vossos anciãos sonharão, terão visões os vossos mancebos; também sobre os servos e sobre as servas naqueles dias derramarei o meu espírito.                Joel, II. 28 e 29.

            São chegados os tempos preditos pelo profeta. Por toda a parte surgem médiuns: homens e mulheres, jovens e anciãos, gente iletrada e professores de Universidade. América Delgado, Zilda Gama, Francisco Cândido Xavier, Porto Carreiro Neto já representam uma longa escala!

            Dos três primeiros não precisamos falar, porque todos os leitores de Reformador os conhecem em livros que circulam há decênios. Vamos tratar somente do quarto, cujo primeiro livro apareceu neste momento.

            Por alguns poemetos em português e Esperanto recebidos mediunicamente e publicados nestas colunas, já os leitores sabem que Porto Carreiro Neto é médium de sublime inspiração poética, mas ainda ninguém sabia que esse ilustre professor da Universidade do Brasil receberia igualmente mensagens de impressionante expressão científica, como agora vemos no primoroso livro Ciência Divina, de Jayme Braga.

            É um livro desconcertante para os professores da ciência oficial, entre os quais se acha o médium, cujo lápis escreveu essas páginas que em muitos pontos lhe contestam as convicções científicas. Talvez seja audácia nossa escrever sobre essas lições, mas pareceu-nos necessário que um membro do povo simples, um estudioso da Doutrina, dissesse algo, suas impressões do livro que se destina a todo o público espírita, não somente aos sábios das Universidades.

            Num prefácio de 15 páginas, em excelente português, composição elegante, revisão perfeita, o médium nos esclarece sobre a sua mediunidade, faculdade pela qual revela muito respeito. Diz-nos: “...as ideias me assaltam aos turbilhões, tendo eu, pois, necessidade de acompanha-las com o lápis o mais depressa possível. Não tenho a menor ideia nem do que vou escrever de início, quando sinto a aproximação de algum manifestante nem, outrossim, do que escreverei ao fazer ponto nalgum período”.

            Só trata nesse prefácio da mediunidade psicográfica, mas quem escreve estas linhas o conhece igualmente como médium de incorporação. Já o temos visto por muitas vezes incorporado, ora com o Guia, dirigindo trabalhos durante mais de uma hora, ora com Espíritos perturbados a serem doutrinados. Convém ficar aqui registrado, portanto, que Porto Carreiro não é somente médium psicógrafo, como se deduziria da leitura do livro: sua missão mediúnica é muito mais complexa. Ainda outra forma de mediunidade muito original de Porto Carreiro é a artística, tão diferente da que se nota em Francisco Cândido Xavier. Este último recebe um poema com a mesma desenvoltura com que recebe prosa, ao correr do lápis; Porto Carreiro recebe um soneto lentamente, por inspiração, verso e verso, sem ação mecânica do braço. Por vezes o poeta invisível o visita em momento inesperado, durante uma viagem, ou o interrompe quando escrevendo ou lendo. Num ônibus, por exemplo, sente a presença de um Espírito e toma de um cartão e lápis e vai escrevendo, em letra muito miúda, os versos que lhe são inspirados. Ao fim da viagem tem o trabalho pronto ou quase pronto. Assim tem recebido lindos sonetos de Camões, de Bocage, de Abel Gomes e outros. Não raro recebe belos versos em Esperanto, alguns dos quais já se acham impressos em Reformador e outros e muitos em sua pasta, sem publicidade.

            Passa a declarar no mesmo longo preâmbulo que gostaria muito de poder apresentar o livro como seu, porque o acha interessante, mas não o faz, porque tem certeza de que a obra não é sua e sim de Jayme Braga. Refuta a teoria do subconsciente, porque muitas ideias do livro são inteiramente novas e desconhecidas do mundo.

            A seguir dá explicações de termos científicos, para que os leigos em ciência possam compreender o pensamento do Autor, tornando assim o prefácio uma breve iniciação em Física e Química.

            Apesar do esforço do prefaciador, o livro requer muita reflexão e certa instrução e não está ao alcance de todas as inteligências, como os romances mediúnicos ou as mensagens morais. A obra parece destinada às rodas intelectuais e não ao povo em geral. Nesse sentido, surpreende-nos a coragem da Editora, dando a primeira edição de cinco mil exemplares que é demasiado grande para livro de compreensão difícil. Bastariam dois mil exemplares para muitos anos.

            Nalguns lugares mais difíceis, interfere Bezerra de Menezes, dando esclarecimentos, ajudando o leitor a penetrar no pensamento do Autor.

            Em outros artiguetes prosseguiremos dando nossas impressões do livro e desde já expressamos nossa imensa curiosidade por saber como será recebida no mundo espírita brasileiro uma obra dessa natureza, por enquanto quase única, pois que a única de natureza semelhante, “A Grande Síntese”, de Pedro Ubaldi, em tradução de Guillon Ribeiro, só teve uma edição e ficou em pequenas rodas de eruditos.

            Não se suponha, no entanto, de nossas palavras acima, que se trate de um livro friamente científico, sem Deus nem fé, como costumam ser as obras de mera ciência. Nada disso! O livro é um hino de louvores ao Criador e ao Universo. Os seus esforços mais ingentes são para entendermos o poema de Deus na Criação, para aprendermos a ler o Livro Divino da Natureza. Neste sentido pode ele figurar como páginas de ouro da literatura religiosa.

            Findo o preâmbulo do médium, vem uma “Apresentação” do Autor, apenas de uma página, na qual define ele sua missão sobre a Terra. Essa missão resume-se a isto: “...esclarecer todas essas questões que se debatem em livros, sem que se entendam". “Desejo que tudo se esclareça de modo elevado e consentâneo com a grandeza do Criador... , diz-nos o Autor invisível.

            Não deve ficar olvidado neste primeiro artiguete o aspecto literário do livro. Português de lei, excelente pontuação, boa revisão, dá-nos a impressão de obra clássica de nossa literatura vernácula.

O Testamento de Roustaing


O Testamento de Roustaing
Reformador (FEB) Fevereiro 1947

            Em 1879, Revue Spirite, comemorando os "mortos" do ano, assim se referiu a J. B.  Roustaing, página 487:

            “M. Roustaing, antigo professor de filosofia, homem culto, jurisconsulto muito conhecido, bastonário da Ordem dos Advogados de Bordéus, tornou-se espírita após a leitura do “0 Livro dos Espíritos”, e compôs “0s Quatro Evangelhos”, tirados dos ditados mediúnicos de Mme. Collignon, com o auxílio espiritual dos quatro evangelistas, dos apóstolos e de Moisés.  

            “Como vários outros, não tendo ascendentes nem descendentes, ele devia, segundo seu desejo, deixar sua fortuna à Obra, para criações úteis e de boa propaganda, mas morreu sem ter podido fazer as suas disposições.
           
            "Deixou a reputação de um espírito justo, leal, íntegro, amigo do progresso.

            “Que seja abençoado pelo bem que fez.”

            Assim, diante do que registrou a revista fundada por Allan Kardec, merecedora de todo o nosso crédito, o êxito alcançado pela obra de Roustaing, de que resultou ser traduzida em vários idiomas, não foi oriundo da fortuna legada pelo Autor, como tem sido propalado pelos seus adversários.



Com Kardec e com Roustaing


Com Kardec e com Roustaing
José Brígido (Indalício Mendes)
Reformador (FEB) Agosto 1947

            A grita que pequena minoria de aceitantes do Espiritismo faz contra “Os Quatro Evangelhos”, não poupando sequer a memória do nobre J. B. Roustaing, nem sempre é fruto de sincera incompreensão. Pela natureza de certos comentários, percebe-se quão afastados se encontram, muitas vezes, da ética espiritista, os mais empenhados em contestar a “Revelação da Revelação”-, Entretanto, “Os Quatro Evangelhos” não impõem restrição alguma a Doutrina codificada por Allan Kardec, antes a completam de modo perfeitamente racional e, digamos assim, doutrinariamente lógico. Aliás, tratando “Dos Cismas” Kardec não se furtou à feliz oportunidade de afirmar que muitas divergências têm desaparecido, “À MEDIDA QUE A DOUTRINA SE VAI COMPLETANDO PELA OBSERVAÇÃO E PELO RACIONALISMO" acrescentando que "as últimas divergências se dissiparão com a completa elucidação de TODAS as partes da doutrina”. E o mesmo Kardec avança que “haverá sempre os dissidentes por sistema, interessados por esta ou aquela causa”.

            A verdade é que Roustaing continua cada vez mais firme. Em seu caso especial, é preciso levar em conta a superior orientação espiritual que tem recebido a Federação Espírita Brasileira, em mais de seis decênios de trabalho silencioso, profícuo e persistente, preservando a Doutrina de Kardec de errôneas interpretações e de deturpações numerosas. Ninguém pode, sem se alhear da verdade, desmerecer o gigantesco esforço que ela desenvolve na defesa e manutenção dos princípios básicos da Doutrina. Negá-lo não seria somente cometer grave injustiça, porque significaria, de outro lado, pôr em dúvida a capacidade espiritual do Guia Ismael, ao qual estão entregues os destinos da causa espírita no Brasil. Ora, se “Os Quatro Evangelhos” - numa palavra: Roustaing - antes mesmo de fundada a Federaçao, já eram estudados e aceitos por aqueles que, em seguida, integraram o corpo diretivo material da Casa de Ismael, e os que os sucederam, sem que houvesse havido até hoje a menor manifestação contrária do iluminado Guia e de outros Espíritos de superior categoria, de Kardec inclusive, é sinal evidente de que todos os que aceitamos Roustaing, considerando-o valioso colaborador da obra kardeciana, continuamos fiéis à Doutrina. Demais, não se deve esquecer o que disse Kardec com sua grande autoridade: “Assimilando todas as ideias reconhecidamente justas, de qualquer ordem que sejam, físicas ou metafísicas, ela (a Doutrina) nunca será posta à margem, e é esta uma das principais garantias da sua perpetuidade”.

            A Federação Espírita Brasileira, indissoluvelmente ligada ao kardecismo, jamais faltou a qualquer de seus deveres doutrinários. Estuda e divulga os ensinos de Kardec, e justamente por compreender o sentido superior da obra do Mestre é que também estuda Roustaing, sem o impor a quem quer que seja, certa de que está fiel ao objetivo de progressividade da Doutrina. Kardec jamais aprovaria a estagnação por falta de estudo sério do Espiritismo, estagnação que leva ao dogmatismo e, através deste, à intolerância e à obnubilação do raciocínio. O Codificador predisse estar a segurança da perpetuidade da Doutrina na “tolerância, consequência da caridade, que é a base da moral espírita”. Justamente esse espírito de tolerância no exame de “Os Quatro Evangelhos” é que tem faltado à maioria dos negadores de Roustaing. Argumentando com Kardec, para defender Roustaing, diremos que “o programa da Doutrina não é invariável senão quanto aos princípios reconhecidos novamente por verdades. No estado de atraso dos nossos conhecimentos, o que hoje nos parece falso, pode amanhã ser reconhecido como verdade, por efeito de novas leis descobertas. Isto na ordem moral, como na ordem física. É contra esta eventualidade que a Doutrina deve estar sempre aparelhada. O princípio progressivo que ela inscreveu em seu código será a salvaguarda da sua perpetuidade; a sua unidade será mantida precisamente porque não repousa sobre o princípio da imobilidade. A imobilidade, em lugar de ser uma força, é causa de fraqueza e de ruína", E como se tal não bastasse, Kardec reforça a sua advertência deste modo: “Ela (a imobilidade) rompe a unidade, porque aqueles que querem ir adiante separam-se dos que se obstinam em ficar atrás.”

            Vimos argumentando com Kardec para justificar Roustaing. Não subestimamos os que não aceitam, por qualquer motivo, o "corpo fluídico". Uns não seguem Roustaing por não haverem atingido ainda o momento de bem compreendê-lo, mas não o atacam. São sinceros, honestos em sua atitude. Dignos, portanto; do respeito geral. Outros, porém, sem haverem lido e meditado acerca das lições prodigiosas de "Os Quatro Evangelhos", ou as leram e não as assimilaram, se exaltam no combate feroz a Roustaing e à sua notável obra. São os apriorísticos negadores de todos os tempos, as pedras de escândalo de todas as épocas, os "kardecistas" que não são fiéis à Doutrina e, portanto, não são fiéis a Kardec. Nós aceitamos Roustaing, depois de havermos recusado também, ao primeiro exame da questão Quanto se encontra no monumental trabalho. Agradecemos a Deus a compreensão que desceu sobre o nosso espírito, graças à palavra esclarecedora do inesquecível amigo Guillon Ribeiro. Ninguém é espírita por se dogmatizar com Kardec ou Roustaing, uma vez que o espírita consciencioso não se apaixona a ponto de perder a serenidade; não se curva a dogmas; não se fanatiza; não se prevalece de argumentações cavilosas para defender pontos de vista meramente pessoais. Não. Ninguém nos mostrará em Kardec algo que signifique aprovação a semelhante critério. O dever do homem, seja qual for a sua crença, é estudar, refletir, analisar e, então, concluir, aceitando ou recusando o tema que lhe foi proposto ou que despertou sua atenção. Criticar sem conhecimento de causa, contestar ideias aceitas por outrem sem as haver previamente estudado, não é conduta que se concilie com os princípios consubstanciados na Doutrina que nos legou Allan Kardec.

            É curioso, senão lamentável, que a preocupação de combater Roustaing faça, não raro, esquecer a Doutrina, muito mais importante para o futuro espiritual do homem do que saber com rigor qual a natureza real do corpo de Jesus. Desde, porém, que possamos dedicar-nos a esse estudo sem quebra da nossa orientação doutrinária, porque não fazê-lo? Por aceitarmos Roustaing, nem por isso somos menos kardecistas do que aqueles que o negam ortodoxamente. A Doutrina Espírita trouxe ao homem uma concepção mais liberal da vida, porque não o escraviza a regras estreitas. Pelo contrário, dá-lhe liberdade de pensar e de julgar, permitindo-lhe usar de seu livre arbítrio como melhor lhe aprouver. A par dessa ampla liberdade, deu-lhe também o dever de respeitar a liberdade alheia, comportando-se o mais possível de acordo com os princípios deixados por Allan Kardec, os quais se encontram sintetizados no lema por ele adotado: “Trabalho, solidariedade e tolerância”. O trabalho por princípio, a solidariedade como objetivo fraterno do esforço comum e a tolerância como coroamento de tudo.

            Se atentarmos para uma velha comunicação espírita de Kardec, a respeito do estudo dum trecho dos Evangelhos de Mateus, Marcos e Lucas, veremos que o Codificador, já desencarnado, aproveitou a oportunidade de um esclarecimento necessário e reconheceu ter vindo Jesus à Terra com a formação corpórea a que aludem os Evangelistas em Roustaing: “Jesus ainda não entrara em ação decisiva contra os prejuízos e os crimes do mundo. Logo que ele baixou e tomou a sua forma corpórea aparente, para as lutas pela verdade”, etc.

            Se restringir o alto valor da obra de Kardec é tarefa de insanos, descobrir em Roustaing antagonismo real com a Doutrina Espírita, codificada por aquele, pode ser qualificado como esforço insincero: é trabalho das trevas. Kardec e Roustaing foram dois grandes trabalhadores da causa, embora àquele houvesse sido cometida missão de maior envergadura. Assim como não se pode destruir a Doutrina por ele concatenada, também não se aniquilará jamais J. B. Roustaing porque as obras subscritas por ambos não
foram obras humanas, mas obras dos Espíritos.

            Estamos com Kardec quando, prudentemente, nos adverte: “Todas as doutrinas têm tido o seu Judas e o Espiritismo não havia de ser a exceção...

            Já citamos uma vez este pequeno trecho de “Le Spiritualisme dans I'histoire”, de Giustianiani, aparecida em 1879, em Paris: “Parmi Ies grandes et belles oeuvres inspirées médianimiquement, on doit mettre au premier rang les “Quatre Evangiles”, suivis des commandements, expliquès en esprit et en vérité par les Evangélistes assistés des Apôtres.  Toutes les communications de cet important ouvrage ont été requeillies et mises en ordre par J. B. Roustaing, avocat à Ia Cour Impériale de Bordeaux, ancien bâtonnier” (Entre as grandes e belas obras inspiradas medianimicamente, devem figurar em primeiro plano “Os Quatro Evangelhos”, seguidos dos mandamentos, explicados em espírito e em verdade pelos Evangelistas assistidos pelos Apóstolos. Todas as comunicações dessa importante obra foram recolhidas e postas em ordem por J. B. Roustaing, advogado da Corte imperial de Bordéus, antigo bastonário).

            Ressalta desse trecho que a obra dita de Roustaing, por haver sido por ele recolhida e concatenada, foi produzida medianimicamente, isto é, transmitida por Espíritos, tal como já sucedera também com as obras ditas de Allan Kardec.

            Para que não se julgue seja desvaliosa a opinião de Giustiniani (Rossi de Giustiniani), esclarecemos que ele foi professor de filosofia em Esmirna, laureado com o Prêmio Guérin, membro da Société Scientifique d'Êtudes Psychologiques, de Paris. Homem de cultura e de indiscutivel idoneidade intelectual, que considerou também “Os Quatro Evangelhos” - de Roustaing - uma das “grandes e belas obras inspiradas medianimicamente", e que, entre outras de valor, “deve figurar em primeira plana”. Para ele também “Os Quatro Evangelhos” são uma “importante obra”.

quinta-feira, 27 de fevereiro de 2020

Profissionalismo religioso


Profissionalismo religioso
Ismael Gomes Braga
Reformador (FEB) Maio 1947

            O capítulo XXVI de "O Evangelho segundo o Espiritismo" é um dos menores em extensão e foi escrito só por Allan Kardec: não tem, como quase todos os outros, “Instruções dos Espíritos”. No entanto, é um dos mais profundos e que mais força dá à Doutrina.

            O homem tende a explorar economicamente todas as coisas, de tudo fazer profissão, meio de vida, rebaixando tudo a objeto de compra e venda. Nem o Cristianismo escapou! Organizou-se em Igrejas e surgiram os profissionais religiosos, poderosas organizações econômicas que mataram o espírito da Doutrina primitiva e conquistaram materialmente o mundo. O profissionalismo religioso está enraizado por tradições multimilenárias e parece natural num mundo materialista, cujas relações são todas de base econômica. Abrir luta contra tal profissionalismo e proclamar novamente com o Cristo: “Dai de graça o que de graça recebestes”, exigia bravura muito especial; mas, felizmente, Kardec, a teve e com ela salvou a Terceira Revelação.

            No Brasil, onde predomina o Espiritismo evangélico, o profissionalismo não medra entre os espíritas; raras vezes é tentado por algumas pessoas, mas a imensa maioria o repele e ele morre por insulamento.

            Não só os serviços mediúnicos são prestados gratuitamente, mas até outros serviços doutrinários, como a direção de instituições, a redação de livros e jornais, traduções e revisões, a pregação, são realizados gratuitamente, quase sempre por pessoas pobres que penosamente poupam o tempo para prestar tais serviços e ainda pagam mensalidades a associações e ajudam a necessitados. Não queremos dizer que nós os espíritas sejamos melhores do que os outros homens, mas devemos ressaltar as vantagens de não existir profissão de espírita.

            O profissional não é livre, está preso pela necessidade à sua profissão, mesmo quando ela lhe desagrade; porque é sempre difícil mudar de profissão depois de alguma idade. O sacerdote de uma religião está na contingência de continuar até a morte em sua Igreja, mesmo que perca a fé religiosa e se torne materialista e ateu, o que não é raro. Noutros casos, e ainda mais frequentes, o sacerdote perde o respeito por um ou alguns dos seus votos, por exemplo, pelos votos de castidade e de pobreza e constitui família ilegal ou luta por enriquecer-se. Desde então perde ele toda a autoridade religiosa e passa a ensinar pelo exemplo princípios opostos aos que prega pela palavra. Torna-se pedra de tropeço para os fiéis, porque o exemplo é mais forte que a palavra. Não existisse a dependência econômica e tudo se resolveria muito bem: o sacerdote deixaria de exercer suas funções religiosas no momento que quisesse e contrairia matrimônio legítimo, com todas as vantagens para a prole e a sociedade e benefícios imensos para a Religião, porque não se tornaria pedra de tropeço para os crentes.

            Precisamente o mesmo se daria com o profissional espírita, se este existisse: seria um escravo da sua profissão e continuaria nela, ainda que perdesse o entusiasmo, o fervor ou até a crença.

            Se de um ponto de vista puramente humano o profissionalismo seria grande mal para o Espiritismo, do ponto de vista espiritual seria sua morte inevitável; porque os Espíritos superiores não se submetem a trabalhar para exploradores da religião e abandonam toda pessoa - em qualquer corrente religiosa - que pretenda fazer deles um degrau para se elevarem economicamente. Uma vez privado do convívio dos Espíritos superiores, o homem entra para a sociedade dos inferiores que nada podem produzir de proveitoso para a regeneração da Humanidade, mas, ao contrário, só fazem mal: engendram dissenções e animosidades, lançam a dúvida e abalam a fé, alimentam paixões, insuflam vaidade e orgulho, animam o egoísmo e anulam as boas intenções.           

            Os Espíritos superiores colaboram dedicadamente, sem espírito algum de seita, fora ou dentro do Espiritismo, mas somente com pessoas desinteressadas que se sacrifiquem pelos seus irmãos por amor, com abnegação e singeleza, dando de graça quanto possível seu tempo e seus bens para servir às pessoas e aos ideais superiores. Dizemos “fora ou dentro do Espiritismo”, porque realmente tudo quanto representa progresso tem apoio dos Espíritos superiores e é planejado por eles; portanto, na ciência, na política, na religião, nas artes, na técnica, indústria, há pessoas que cumprem humildemente um apostolado e são auxiliadas pelos grandes Espíritos, como há utilitários, argentários, egoístas sem o apoio dos Espíritos elevados e em afinidade com os atrasados. Em Espiritismo, porém, essa intervenção se torna mais clara e compreensível, porque os espíritas são iniciados no Assunto.

            Não só naquele capítulo acima mencionado Allan Kardec insiste pelo desinteresse material. Em muitos outros trabalhos voltou ele ao assunto, dando-lhe o relevo que merece. Na obra de Roustaing, igualmente, os Espíritos são enfáticos nessa recomendação. Hoje vamos começando a perceber quão profundo alcance tem esse ensino sempre repetido há mais de oitenta anos pelos Espíritos superiores.

            Não é demais, pois, refletirmos muitas vezes sobre a necessidade de defendermos sempre esse princípio doutrinário em nossos escritos e pela divulgação dos livros que tragam o mesmo ensinamento.

            Não temos nem desejamos ter concílios, sínodos ou outras congregações que decidam em matéria de fé. Nosso ideal religioso é que cada espírita seja um juiz severo de seus próprios atos e pensamentos e possua as necessárias luzes para distinguir entre o bem e o mal. O único elemento de que dispomos é o livro. O livro opera prodígios. A divulgação sempre crescente dos bons livros é a nossa grande tarefa, na qual temos sido generosamente auxiliados pelos Espíritos que dirigem o nosso movimento.

            Quanto mais cresça o nosso movimento, tanto maior se torna a missão do livro em geral e de “O Evangelho segundo o Espiritismo”, em especial. Até hoje, por mercê de Deus, tem-se conservado puro o grande princípio do “dar de graça” no movimento espírita brasileiro e, pela constante divulgação e estudo dos bons livros em nossos grupos, espalhados por todo o território nacional, é de esperar-se que se conserve o santo escrúpulo contra o profissionalismo religioso.

            Conservado esse desinteresse, não nos faltará a assistência dos Espíritos superiores e as nossas instituições progredirão sempre; se tivéssemos a desgraça de mudar de rumo, poderíamos talvez ter um movimento materialmente forte, humanamente bem organizado, mas seria apenas o cadáver do Espiritismo, porque nos faltaria a força interna que vem dos Espíritos elevados, e teríamos todas as fraquezas dos Espíritos inferiores. Dizemos “talvez”, porque o mais provável seria o esboroamento completo das nossas instituições.

            Não admitamos, porém, o pensamento pessimista de que o profissionalismo religioso venha a invadir o nosso movimento espírita.

quarta-feira, 26 de fevereiro de 2020

O cântaro quebrado



O Cântaro quebrado
José Brígido (Indalício Mendes)
Reformador (FEB) Março 1947

            - Isso aconteceu há muito tempo. Deus havia feito o mundo e os homens, as flores e as mulheres, os pássaros e as florestas, os rios e os mares; enfim, tudo quanto embeleza, alegra e enriquece a Terra. Mas ninguém tinha vontade própria, porque Ele pensava por todos. Um dia, o Criador incumbiu o anjo Liriel de vir à Terra, para esclarecer a razão da vida humana. Foi quando, à hora da prece vespertina, Zoreb, o patriarca, recebeu a visita dessa angelical entidade, de quem ouviu, em diserta linguagem, estas palavras: - “A Terra é vasta oficina de trabalho, Preciso se torna que todos aprendam por si mesmos a alcançar o beneplácito do Pai. Já é tempo de cada qual cuidar de si, tendo por norma as Leis do Senhor. Darás a cada habitante da Terra um cântaro igual a este, feito com a argila do Livre-Arbítrio, contendo a essência da felicidade que um ser humano pode fruir neste planeta. Aconselha-os a serem comedidos e discretos, pacíficos e bons, e a paz de Deus estará sempre com os fiéis...” 

*

            Zoreb dobrou os joelhos, beijou três vezes a Terra adusta e orou, agradecendo a esmola da revelação de Liriel. Concluída a prece, chamou à sua presença todos os homens e todas as mulheres, aos quais entregou cântaros feitos com a argila do Livre-Arbítrio. E desde então os seres humanos passaram a ser responsáveis pelos próprios atos. Tudo ia bem, maravilhosamente, até que o jovem Ghazar-bar-Ghazar se lembrou de examinar o precioso vaso. Admirou-o atentamente, mas logo sentiu o acúleo (espinho) da curiosidade, Zoreb dissera que ele continha a essência da felicidade. Não haveria mal algum em vê-la um pouquinho. “Sacudiu o cântaro, virou-o de borco, tentou introduzir a mão no gargalo, inutilmente. As dificuldades tornaram-no ainda mais curioso. Nunca experimentara semelhante sensação, pois só agora dispunha de livre-arbítrio. E a inteligência começou a trabalhar febrilmente. Muniu-se de uma pedra e com ela bateu fortemente na parte mais saliente do vaso, que se quebrou, caindo-lhe aos pés os fragmentos. Se grande era o seu desejo de saber o que continha o cântaro, maior se tornara sua aflição ao perceber que o mesmo se achava completamente vazio.

*

            “-Oh! Não é possível que o venerável Zoreb haja mentido! Não é possível! - exclama, superexcitado. E, pela primeira vez, sentiu o traiçoeiro beijo da cólera. Irritado com a possibilidade de haver sido miseravelmente iludido, agarrou com violência o cântaro quebrado e saiu para a estrada, correndo e gritando, gritando e bracejando, até alcançar a casa de Zoreb. Seu desespero atraíra dezenas, centenas, milhares de pessoas. Arfante e rubro de raiva, Ghazar-bar-Ghazar não respeitou as cãs do patriarca e fomentou o escândalo: “- Fui enganado, irmãos! O meu cântaro estava inteiramente vazio! E os vossos; estarão cheios?!” Aquela multidão pareceu instantaneamente ferida pela dúvida. Cada qual voltou depressa a casa para examinar também o cântaro sagrado.”

*

            Sabedor do que ocorria, Zoreb, cheio de mansidão, mandou diversos emissários ao povo, instando para que ninguém mexesse nos vasos que a longanimidade do Pai permitira a Liriel trazer aos terrícolas. Que confiassem em suas palavras, porque, embora pobres, eram eco longínquo da vontade divina. A infernal algazarra abafava a cordura do bom Zoreb. Milhares de cântaros realizavam no ar extravagantes evoluções e muitos, arremessados por mãos que o ódio fazia tremer, vieram espedaçar-se aos pés do patriarca. Foi quando Zoreb se transfigurou, agigantando-se. Sua voz débil cresceu de intensidade e ele dominou a turba, impondo-lhe silêncio, com um gesto que se revestia de singular majestade! E considerou: “Insensatos! O cântaro contém, efetivamente, a essência da felicidade. Feliz daquele que ainda conserva intacto o seu, porque melhor poderá receber a santa paz do Senhor!”.

*

            Elevando os braços para o céu, assim se manteve longos minutos, como numa prece muda à Divina Potestade. Seu rosto vincado pelos anos se orvalhava de sincero pranto. Era comovente a expectativa, Os exaltados, que haviam quebrado seus cântaros, achavam-se vencidos, tinham o coração torturado pelo arrependimento. Poucos, muito poucos, fruíam a paz interior, apertando contra o peito os cântaros inteiros! Foi a partir desse dia que a desgraça marcou os homens e mulheres que haviam destruído a própria felicidade. Zoreb, sereno qual primaveril manhã, voltou a falar, e sua voz era terna e doce como um hino celestial. “Bem-aventurados os que têm fé inabalável e paciência para esperar! A desordem e as aflições que agora vos infelicitam provêm do mau uso do livre-arbítrio e da perda inestimável da tranquilidade de espírito que se achava dentro dos cântaros que quebrastes.
Essa paz, filhos meus, é que constitui a essência da felicidade, porque sem ela ninguém poderá ser feliz.”

            Após ligeira pausa, prosseguiu: - “Deprequei ao Senhor a graça de mais uma oportunidade para os que, alucinados, destruíram os vasos que lhes dei por determinação de LirieI. E o Senhor, infinitamente bom, infinitamente misericordioso, infinitamente justo, atendeu à minha prece!", Um murmúrio de satisfação e esperança se ouviu no seio da grande massa. – “Bendito seja Deus! Bendito seja Deus!", Zoreb recomeçou a falar: - “O Pai poderia recompor os cântaros, num átimo, mas é preciso que suas Leis se cumpram, letra por letra. Não desespereis. Procurai restaurar os vasos partidos e quem o conseguir obterá a graça de recuperar também a essência perdida. A empresa é difícil, porque os cacos e estilhaços se confundem, Será preciso trabalhar com extrema paciência, inexcedível perseverança e insuperável confiança nos desígnios do Senhor. Não espereis milagres, porque cada qual terá de reaver o cântaro com o próprio esforço. Perseverai, e, quando terminardes a obra, levantai a Deus o pensamento e agradecei - agora sim – o milagre da recuperação! Esse milagre, porém, não será do Pai, mas daquele que, pensando n'Ele, levar a cabo tão redentora missão.” Cruzando os braços sobre o peito, Zoreb baixou a cabeça prateada, e voltou, devagarinho, a penates (família)...

*

            Ainda hoje, a Terra anda cheia de cântaros quebrados. Poucos logram restaurá-los, porque lhes falta fé; muitos abandonam o trabalho, quando as dificuldades crescem e somente pequeno número persiste, a despeito de todas as decepções, no mister fatigante de reunir, um a um, os fragmentos perdidos. E raros são os que, fiéis à lição de Zoreb, ainda guardam no âmago do coração os cântaros inteiro...

            Não é outra a causa das aflições que enchem a vida humana. Qual de nós terá seu cântaro perfeito? Quantos não sentem a alma mergulhar na tristeza, ao se lembrarem de que não mais possuem “tranquilidade de espírito”, porque esta se foi com o cântaro quebrado?.. A vida é uma experiência. Se tudo estivesse definitivamente perdido, onde estaria a justiça do Senhor? Ele, porém, é infinitamente justo e dá aos Espíritos a oportunidade de recomeçar as experiências, o ensejo de recompor os cântaros quebrados... E o grande mérito está em lutar para reparar os ditos pretéritos, em realizar todos os esforços inimagináveis para consertar os vasos destruídos. Lutar e sofrer com coragem e fé, resignadamente, resolutamente, sofrendo todas as dores c decepções sem desfalecimento, para que os cântaros quebrados possam, um dia, ser apresentados ao Senhor, sem os vestígios das velhas fraturas. E, então, Ele recompensará o trabalho e a boa vontade dos vencedores de si mesmos, perfumando--lhes a alma com o divino perfume da felicidade,
oculto nos cântaros santificados pela fé e perseverança no bem!

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            - Obrigado, Zoreb! Despeço-me agora, porque o tempo passa depressa e desejo começar ainda hoje a recomposição do meu cântaro quebrado...


Folha seca de Outono...



Folha seca de Outono
José Brígido (Indalício Mendes)
Reformador (FEB) Fevereiro 1947

            Indicando um jequitibá enorme, que ameigava a terra com a sua sombra confortadora, o ancião, enxugando uma lágrima, que bem podia ser de saudade como de amargura, comentou: - “Aquela árvore que domina a chácara do solar em que nasci, majestosa e serena em sua grandeza, poderia contar muita coisa bela, muita coisa triste, muitos romances encantadores e tragédias inúmeras... Poderia, sim. Mas a sabedoria de Deus não permite que as árvores falem... Talvez para que elas não percam sua beleza, não maculem sua inocência e não a envileçam com a narrativa de atos que fogem à harmonia da Natureza ...” E o velhinho calou-se. E tirou da face, com a mão encarquilhada e trêmula outra lágrima fugidia...  

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            Tudo está certo na vida, até mesmo os erros humanos. Parecerá estranho que assim seja, mas, considerada a diferença de grau evolutivo de cada indivíduo, compreende-se que os erros e agravos de uns, amalgamados aos acertos e ao bom ânimo de outros, formam fases, estádios de progresso, que cada qual vai vencendo na medida de suas possibilidades. Quando a superioridade moral dum homem é exercida no sentido de corrigir a inferioridade de outros, pode-se dizer que o progresso se encontra em marcha. Os mais fortes terão que dar a mão aos mais fracos, sem o que retardarão o próprio desenvolvimento. Quem mais tiver, mais será obrigado a dar; quem der mais, muito mais receberá. Este simples axioma evidencia a necessidade de o homem ser progressivamente menos egoísta, Lá está no Evangelho de Lucas:             "...Perdoai e sereis perdoados. Dai e ser-vos-á dado".

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            - E os homens ainda se queixam da vida, meu filho; ainda a maldizem, esquecidos de que tudo devem, trânsfugas que são do espírito fraterno que deveria unir fortemente as criaturas. São ricos de bênçãos e dádivas, porém pobres, paupérrimos de coração. Mais depressa enxergam o argueiro no olho de seu semelhante, do que a trave no próprio... Ah! se eles fossem como as árvores, que tudo recebem de Deus, nada dos homens, mas a estes dão tudo - sombra, flores, frutos, seiva e lenho - como seriam mais felizes! É o egoísmo que os desgraça, que os atira às guerras, gerando a dor, o ódio, a fome, o luto e o desespero. Todavia, apesar de tantas contradições, tudo está certo no concerto universal, porque Deus escreve direito por linhas tortas. Algum dia o homem vencerá a si mesmo e, então, será mais belo, mais puro, ainda melhor que as árvores!

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            A Verdade anda solta por aí: no céu, nas estrelas, na terra, no mar, nas montanhas, na poeira das estradas, no canto dos pássaros, na glória e na decadência dos povos, no riso e no gemido do homem... Cada qual a admite a seu jeito, a maioria, que é imediatista por vício de educação, quer pôr o dedo em cima dela, como Tomé, para se certificar da realidade sensorial... E quanta coisa, filho meu, escapa ao nosso tato, mesmo a todos os nossos sentidos! É que a Verdade é tão simples que muitos nela não creem... O famoso sonho de Públio Cornélio Cipião, contado por Cícero, nada mais foi que uma revelação estupenda. Vejamos alguns trechos: “A Vida é caminho para o céu e para esta assembleia, dos que já viveram, e que, libertos do corpo, habitam este lugar que estás vendo”, E também: “Esforça-te, sim, e sabe que tu não és mortal, mas apenas teu corpo; nem és o que por tua imagem se parece, mas cada qual é o seu espírito e não essa figura que se pode mostrar a dedo”. E ainda: “Exerce, pois, as forças de tua alma em funções úteis”. E mais: Decerto, vivem - respondeu - todos aqueles que escaparam dos vínculos corpóreos como de cárceres; pois em verdade, aquilo a que chamas vida, é que é a morte”. Nem foi por outra razão que o Cristo disse, de uma feita: “Eu sou a ressurreição e a vida; quem crê em mim, ainda que esteja morto, viverá...”

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            E Pitágoras fala pela palavra de Ovídio em “Metamorfoses”: “Homens assombrados pelo medo da gélida morte, porque temeis o Estige (na mitologia grega, é uma ninfa e também um rio infernal no Hades dedicado a ela), as trevas e as penas de um mundo imaginário, nomes vãos, fábulas dos poetas? Ou consuma a chama os vossos corpos, ou em podridão se desfaçam, não julgueis por isso sofrer mal algum: as almas são imortais! e sempre, deixando um domicílio, vão habitar e viver em outro. Eu mesmo, bem me lembra que era Euforbo Pantoides no tempo da troiana guerra e que me atravessou o peito a pesada lança do Atrida mais moço”. Reconheci há pouco, no templo de Juno, em Argos, o escudo que meu braço trazia.”  E aduz: "Nascer não é mais que começar a ser sob nova figura. E morrer é deixar de existir sob a forma antiga”. Diante de todas essas verdades, é mister que esta outra jamais seja esquecida: “Não se poderá viver sem a pureza da alma”, salientou Lucrécio, ao fazer o elogio de Epicuro.

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            O ancião silenciou. Meditou um instante, fechou os olhos cansados e acrescentou: “Meu filho: aquela velhinha que passa, todas as manhãs, vacilante, mas corajosa, diante da tua janela, é um símbolo. A face macilenta, marcada pelos anos que já viveu, parece uma pobre folha seca de outono... Está na idade em que a alma pode recordar fugazes momentos de uma primavera de luz, mas o corpo já se divide entre um outono triste e um inverno mais triste ainda... Entretanto, ela já esplendeu nos salões iluminados da sociedade; perturbou corações juvenis; fez a alegria e a amargura de muitos admiradores. Porém, de tanto se lembrar de si, esqueceu do próximo... Entrementes, a Lei continuava exercendo seus inexoráveis efeitos, e, um dia, a primavera lhe foi fugindo, fugindo... E quando aquela mulher formosa se apercebeu da situação, o Sol já se escondia atrás do monte e o crepúsculo tingia o céu de tons rubro-violáceos, precedendo a noite. E o tempo passou ... E ela nada fez de útil... Escrava de futilidades, viveu a vida artificiosa da fantasia, desprezando a realidade que a cercava... E assim permitiu que a terra, em seu derredor, permanecesse estéril ...

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            - Meu filho: aquela velhinha é um símbolo. Melancolicamente, um símbolo...