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quarta-feira, 19 de fevereiro de 2020

Carta aberta ao Dr. Carlos Imbassahy

                                                                                                     Carlos Imbassahy

Carta aberta ao Dr. Carlos Imbassahy
por Souza Prado
Reformador (FEB) Outubro 1942

Meu caro Imbassahy:

            Fiquei pasmado ao ler o seu excelente livro "Religião"; e o que me boquiabriu não foi aquela irônica dedicatória, em que Você, com a maldade que o caracteriza, e que todos fazem a justiça de lhe reconhecer, me chama "jovem Sousa, risonho e esperançoso como um Prado florido", sem se lembrar, ou talvez mesmo porque se lembrou de que é ... infinitamente mais velho que eu. O que me embasbacou foi o pretexto de que Você se serviu para escrever uma obra, que é das melhores que já li sobre Espiritismo. Com efeito, nela se nota muita erudição, muita sinceridade, muita fé, um raciocínio claro e lúcido, lógica irretorquível, além do belo estilo, que todos nós lhe conhecemos. Isto, é claro, a não falarmos das entrelinhas, que são muito mais importantes ainda ...


            Mas, de tudo isso, nada me surpreendeu; desde que o conheço, o que me poderia surpreender seria a ausência de tais predicados em uma obra sua.

            Aquele pretexto é que foi o Diabo... com maiúscula! Pois Você escreve um livro de tal porte, para responder ao despacho do digno e sincero Diretor do Ensino, de S. Paulo?! Que queria, então, Você que ele tivesse feito?!

            Pois, se ele sabe, tanto lá do íntimo, que “...todas as Igrejas sempre protestaram contra a subordinação da fé ao raciocínio”; e se está sinceramente convencido disso; por outras palavras: se, em seu conceito, religião é sinônimo de estupidez e ignorância, queria Você que ele considerasse o Espiritismo uma religião?! . .. É claro que não podia ser. O honrado Diretor do Ensino sabe perfeitamente - está-se vendo - que religião é o Catolicismo; e, portanto, segundo o seu modo de ver, somente este poderá e deverá ser ensinado, como religião, nas escolas. Essa é a opinião sincera e franca do ilustrado e culto Diretor do Ensino, de S. Paulo. E ele procedeu, pois, de perfeito acordo com o que lhe indicava o seu esclarecido critério.

            Agora, nós, que sabemos que tal conceito, a respeito do que seja religião, está errado, temos que admitir que ele esqueceu o que deve ter aprendido na escola primaria - naturalmente enquanto fez o curso superior; - e, assim, é claro que Você não deveria ter perdido o seu tempo a escrever uma obra de tanto valor, mas antes se deveria ter limitado a fazer o que eu faria, se ainda existisse o meu Heraldo, de saudosa memória, e que se resumiria em aconselha-lo a que fosse de novo para a escola primária relembrar o que esqueceu, ou, quando menos, recomendar-lhe a consulta de dicionários, desde os melhores aos mais "vagabundos"...

            Então, ele veria que religião e estupidez são coisas que nem sempre andam a par, e que, muito ao contrário, a verdadeira fé é precisamente aquela em que entra o raciocínio, como sucede no Espiritismo. E ficaria sabendo que fé ou religião sem raciocínio são simples fanatismo religioso, e nada mais...

            Aliás, seja dito de passagem, a lei não deveria permitir que pessoas absolutamente ignorantes de um assunto pudessem opinar sobre ele, e julgar, sob tal aspecto, os requerimentos de cidadãos que têm absoluto direito de verem respeitadas as suas prerrogativas, que não podem nem devem estar sujeitas ao arbítrio, prepotência e faccíosísmo de quem quer que seja.

*

            Mas, afora o pretexto de que Você se serviu para escrever o livro, não há dúvida de que ele veio prestar assinalados serviços à doutrina; porque não é somente o Sr. Diretor do Ensino que ignora que o Espiritismo seja religião - o que se compreende perfeitamente por nada entender ele do assunto, apesar a presunção que o levou a escrever: “Por não ser uma religião (o Espiritismo), como se acaba de demonstrar...” , isso depois de não ter demonstrado coisa nenhuma; - entre os que se dizem espiritistas também há quem afirme a mesma enormidade, fazendo-o mesmo alguns de boa fé. E é para estes que o livro era uma necessidade, a não falarmos em que, com ele, Você divulgou inumeráveis conhecimentos, que, para noventa e nove por cento dos que o lerem, serão verdadeiras novidades. A maioria, porém, dos pseudo espiritistas, que negam ao Espiritismo a característica de religião, fazem-no de má fé, por despeito e por oposição sistemática à Federação Espirita Brasileira. Esses procuram hostilizar, por todos os meios, a Federação, servindo-se, para isso, de todos os pretextos, mesmo os mais tolos. Ainda há pouco, um deles, em artigo que me mostraram, e a que eu não respondi por uma questão de higiene moral, afirmava que: “recentemente, muito se disse e se vem dizendo insistentemente de outrem (este outrem, sublinhado pelo autor do artigo, sou eu) quanto a uma presusida dissensão com alguns membros da Federação...”

            Ora, Você sabe perfeitamente que tal asserto (não confundir com acerto) rima, mas não verdade, é tudo quanto há de mais bobo, e só serve para demonstrar o que acima afirmei; isto é: que há, aí, um grupo de despeitados, que se servem dos pretextos mais tolos para hostilizar sistematicamente a Federação.

            E, seria o caso de se saber, antes do mais, em que poderia afetar à Federação, ou aos seus dirigentes, qualquer dissensão entre eles e a minha importantíssima pessoa, apesar da diferença moral que existe entre mim e os do tal grupo... E, depois, a verdade é que, entre mim e os Diretores da Federação nunca houve dissensão nenhuma, no sentido, caviloso em que o referido cavalheiro empregou o termo. Se algum dia houve discordância no nosso modo de ver sobre alguns pontos de doutrina, e se ainda continua a havê-la, isso só prova que, sendo o Espiritismo uma doutrina em que se raciocina livremente, nenhum de nós aceita isto ou aquilo somente porque outrem o diga; e, aí, estamos todos dentro da doutrina.

            Aliás, Você lembra-se da sinceridade e lealdade com que então discutimos, e que fazia que Você lesse os meus artigos, e eu os seus, antes de serem publicados. Mais ainda: o que os do tal grupo ignoram, e não poderão mesmo compreender, é que quem levava, para o jornal em que foram publicados, os artigos com que Você respondia aos meus, era eu mesmo; e, no fim de tudo, ria-mo-nos ambos, como amigos bons e leais, que sempre fomos, como ainda hoje continuamos a rir-nos de tudo isso, não obstante estarmos em desacordo sobre alguns pontos de doutrina... E o que também ignoram, e é bom que saibam os do tal grupo, é que - embora divergindo, neste ou naquele ponto, do modo de ver de alguns dos Diretores da Federação, e admitindo, como não poderia deixar de admitir, que eles, como eu e todos nós, estão sujeitos a errar - sempre considerei, os que compõem a diretoria da Federação, pessoas honradas, sinceras e dignas, que é o que, infelizmente, não posso dizer de muitos dos que os atacam sistematicamente... a eles e a mim.

*

            De forma que a tal dissensão entre mim e a Federação Espírita Brasileira é do mesmo gênero da ignorância e má fé que os levam a defender o ponto de vista do Sr. Diretor do Ensino, de S. Paulo; e todos eles têm muito que aprender no seu livro, embora ele seja, sob tal aspecto, muito mal empregado.

            Acho mesmo que Você se desviou muito do preceito escriturístico , que nos aconselha a "não deitar pérolas aos porcos"... em sentido figurado, já se vê...

            E faça favor de me não tornar a chamar "jovem Sousa", nem "Prado florido" ...

            Quanto ao mais, um afetuoso abraço do seu de sempre

SOUSA do PRADO.
Rio, 3 de Outubro de 1942

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