Fanatismo e
confusão
Antônio Wantuil
de Freitas
Reformador (FEB) Março 1948
Quando o Buda apareceu no Oriente
como enviado do Espírito que presidira à formação da Terra e a governava, como governa
ainda, sua doutrina, pela sublimidade dos ensinos que continha estava muito
acima da compreensão dos homens daquela época. Daí o considerarem-no seus
adeptos como um Deus.
Mais tarde, o próprio Governador
do planeta, julgando oportuno o momento para nova sementeira espiritual, veio
pessoalmente recordar às ovelhas que o Pai lhe confiara os ensinos anteriores,
que já se achavam esquecidos e até deturpados. Pregando, porém, a homens que só
podiam receber o que a mentalidade de então permitia, a homens habituados aos
ensinamentos iniciais de Moisés, ainda assim, modificados, alterados e interpretados
de acordo com os interesses dos grupos religiosos e políticos, Jesus, o Verbo
de Deus, foi recebido e tratado como o mais perigoso charlatão. Todavia, com o
correr dos anos, a massa popular, intelectualmente menos atrasada, passou a admiti-lo,
conforme o haviam feito os adeptos do Buda, não como o Messias anunciado e prometido,
mas como o próprio Deus, como um desdobramento deste, formando com Ele a politeica
trindade comum a todas as religiões antecedentes à era cristã.
Não compreendendo o Cristo qual
Ele era, Espírito luminosíssimo, mui distanciado da pobreza intelectual e moral
dos homens da Terra, não conseguindo explicar satisfatoriamente os "milagres"
por Ele praticados no meio do povo que o rodeava, os religiosos se viram obrigados,
para elucidarem os textos evangélicos, a imitar os budistas: deificaram o meigo
Nazareno, confundindo a criatura com o Criador.
Não se pode, em sã consciência,
recriminar os sacerdotes por esse ato, embora um tanto desrespeitoso da Divindade.
A mentalidade da época era muito pequena e as palavras do Cristo, visando os séculos
futuros, não podiam ser assimiladas, senão parcialmente. Por isso mesmo prever,
foi que Jesus declarou ser necessária a sua saída da Terra, a fim de que outro
Consolador viesse e conosco ficasse, não só para nos relembrar os seus
ensinamentos, mas também para nos transmitir novos conhecimentos, quando
chegasse a época de os podermos receber. E, cumprindo a sua promessa, o que
aliás não podia deixar de acontecer, enviou-nos esse conjunto harmonioso de
Espíritos de alta hierarquia, que trouxeram a Allan Kardec, por via de
numerosos médiuns, os novos ensinos prometidos, a Lei pela qual nos deveremos
guiar.
Médico de vasta cultura (1),
pedagogo eminente, que mereceu a confiança do maior e mais celebre educador da
Europa, Pestalozzi, Allan Kardec pôs ao serviço dessa nova Revelação, que o
deslumbrou quando lhe apreendeu o alcance depois de havê-la posto em dúvida,
todo o seu talento e ilustração, codificando aqueles ensinamentos e reunindo-os
nas três obras que intitulou – Livro dos Espíritos, Livro dos Médiuns e Evangelho
segundo o Espiritismo.
(1) Do blog: Esta informação não se
confirmou após extensas pesquisas. Kardec não se graduou médico.
Quem quer que leia esses três
monumentais volumes concordará em que o que eles encerram está, numa larga medida,
acima, muito acima dos conhecimentos filosóficos e religiosos da época em que
foram escritos e que os três são, realmente, o começo de uma revelação nova, que
continuaremos a receber gradativamente, de acordo com o progresso moral e
intelectual que formos armazenando, mesmo porque, para isso, o Consolador
ficará conosco perenemente, conforme o disse Jesus.
Allan Kardec não foi, pois, o
instrumento dessa revelação, nem tampouco os médiuns de que ele se utilizou
podem ser considerados os únicos transmissores do que constitui a obra que nos
traz a felicidade de que gozamos todos os espíritas. Ele foi, como os seus médiuns,
escolhido para a missão que lhe perpetuou a memória, exatamente como escolhidos
foram os quatro evangelistas que nos transmitiram os ensinos partidos
diretamente do Cristo de Deus.
Chamemo-lo, portanto, apóstolo do
Espiritismo. Prestemos-lhe a nossa homenagem sincera, reconhecidos aos benefícios
que temos auferido da leitura e meditação das obras que, arcando com todo o
peso da responsabilidade de elaborá-las, ele nos legou; mas, não confundamos
essas obras que, por procederem do Consolador, formam um conjunto harmônico de
ensinos que se não contradizem, que, ao contrário, se sucedem, lógica e
gradualmente seriados, desafiando qualquer crítica séria e leal, com as outras
obras do mesmo Kardec, obras pessoais, excelentes sob todos os aspectos, porém,
discutíveis, como ele próprio o reconheceu, declarando que, ao apresentar muitas
das questões ventiladas nelas, fê-lo como simples hipóteses. Evidenciou assim,
com a sinceridade que ninguém lhe pode negar, tratar-se de obras suas, pessoal
e exclusivamente suas.
O Cristo, prevendo que os homens o
divinizariam, não se esqueceu de invalidar desde logo, por meio de sentenças de meridiana clareza, a sua futura divinização.
Kardec, na previsão de que o transformariam em novo messias, confundindo o que
era seu, fruto de suas elucubrações, com aquilo que lhe viera do Alto, cuidou
de evitar desde logo essa transformação, não só assinalando o papel que lhe
coubera na obra da Terceira Revelação, como tornando claro que, enquanto os
seus três primeiros livros, porque de procedência divina, somente afirmações
contém, o conteúdo dos outros é feito de hipóteses que ele deixava para serem
explanadas no futuro, de conformidade com os progressos anunciados pela mesma
revelação que lhe tocara codificar.
Assim como os ensinos do Cristo,
depois de terminada a sua missão, não foram transmitidos à humanidade por um só
evangelista, também os do seu enviado, o Consolador não deveriam ter um só
homem por encarregado da sua difusão. Daí vem que, após haver Allan Kardec
elaborado a parte fundamental da obra do Consolador, a outro teve de ser dada a
incumbência de a continuar, ampliando-a. Esse outro foi J. B. Roustaing.
Dissemos - continuar, porque, segundo o próprio Kardec o reconheceu, a
revelação dada a Roustaing não apresenta qualquer ponto em contradição com os
livros básicos do Espiritismo, por ele publicados, sendo, pois, um
desenvolvimento do que nestes se encontra. Guardando reserva apenas quanto a
alguns pontos da obra de Roustaing, que ele não se considerava apto a aprovar
ou reprovar, não hesitou em declarar que essa obra era "considerável e
encerrava outras coisas incontestavelmente boas e verdadeiras" e que seria consultada com proveito pelos espíritas conscienciosos.
Devemos levar em conta que Kardec
não só emitiu uma opinião pessoal, como ainda apelou para o futuro, dizendo que
só este poderia julgar convenientemente a obra ditada a Roustaing. Ora, o
Mestre dispunha de excelentes médiuns, daqueles que serviram de instrumentos
para a transmissão das obras fundamentais da doutrina; poderia,
conseguintemeute, valer-se desses médiuns para colher a opinião dos Espíritos
que o assistiam sobre a obra em questão, do que resultaria ficar sabendo e poder
proclamar quais os pontos dessa obra com que os mesmos Espíritos não
concordavam. Preferiu, entretanto, prescindir da autoridade destes últimos e
falar por conta própria, como o fizera anteriormente, quando duvidara de que as
pernas de uma mesa pudessem responder às perguntas que se lhe faziam.
Devemos ainda notar que a doutrina
enfeixada nos três primeiros livros que Allan Kardec publicou é aceita,
in-totum, pelos espíritas brasileiros, o que não se dá com os espíritas de outros
países, os quais não são unanimes em aceitá-la, como também não a aceitam as várias
outras correntes espirituaIistas existentes. É natural, portanto, naturalíssimo
mesmo, que a obra evangélica de Roustaing, por conter ideias, ensinos e revelações
que só pelas gerações vindouras, mais avançadas em progresso intelectual, poderão
ser perfeitamente assimiladas, não seja bem acolhida por grande parte dos espíritas
da geração atual, visto que muitos, por não terem apreendido o espírito da obra
do Consolador e o seu caráter de progressividade, supõem que a Revelação
espírita parou completa no que fez e nos legou o seu grande e venerável
codificador.
Por isso mesmo, não nos parece
inverossímil que ainda venham a formar-se, entre os espíritas, aqui, correntes que, alargando algumas das aberrações
que já surgiram, levantem altares onde se entronize a imagem de Kardec, a quem, no entanto,
exclusivamente devêramos prestar homenagens de cunho espiritual, consubstanciadas,
sobretudo, na prática escrupulosa dos ensinos que ele recebeu dos Espíritos do
Senhor, únicas que lhe podem ser agradáveis. Farão assim o que fizeram outros
com os apóstolos do Cristo e com o próprio Cristo.
Cumpre assinalar também, e isto é
muito significativo, que todos quantos reverenciam a Kardec lhe reconhecem a
grandeza da obra e a estudam com amor, e, ao mesmo tempo, agasalham, meditam e
propagam a Revelação da Revelação, de Roustaíng, jamais pretenderam obrigar
quem quer que seja a crer nisto ou naquilo, a adotar essa revelação, nem jamais
repeliram os que ainda se lhe conservam contrários. Entretanto, sem que se
possa justificar, ou explicar, em face da doutrina do Espiritismo, semelhante
atitude, lamentabilíssima por anti-cristã, estes últimos se levantam coléricos contra
os primeiros, entendendo-os passíveis de todas as condenações. Contraste
eloquente: enquanto que até a palavra ódio lhes escapa dos lábios, quando se
referem aos outros, denotando um estado d’alma oposto ao em que deve permanecer
sempre o discípulo do Evangelho, a mansuetude ressalta de tudo o que dizem os anatematizados,
exprimindo os seus propósitos de obedecerem, até onde lhes seja possível, às lições
de paciência, de resignação e de amor, dadas e exemplificadas pelo Mestre
divino.
Estamos certo de que não
conseguiremos, com estas despretenciosas observações, despertar, sequer, nesses
nossos irmãos, o desejo de uma leitura rápida da obra que combatem. Obstam a
isso o espírito de seita e o fanatismo de que se deixaram dominar e em cuja
prática pensam estar a única maneira de glorificarem o eminentíssimo Codificador
da Doutrina Espírita. Este se absteve de julgar a obra do seu irmão, obreiro também
da divina Seara da Verdade. Antes, considerou-a digna de ser consultada pelos
espíritas conscienciosos. Como se poderá compreender haja espíritas que, intitulando-se
defensores da sua obra; que ninguém ataca, e seus discípulos fiéis, vão ao
extremo de querer acender fogueiras, semelhantes à em que o bispo espanhol
mandou lançar, em Barcelona, as obras fundamentais do Espiritismo, para a
incineração de todos os volumes que existam da obra de Roustaing?
Por satisfeito nos teremos, se
lograrmos induzir algum irmão nosso, que ainda não a conheça, a apreciá-la à luz da sua própria razão, lendo-a página
por página. Não hesitamos em acreditar que a esse, caso seja um espirita consciencioso, ocorrerá
a ideia de que bem estaria, sobre as fogueiras que se acendessem para a queima
da obra de Roustaing, uma placa com estas palavras, que compõem conhecido lema:
-“Trabalho, solidariedade, tolerância”.
Antônio Wantuil de Freitas (presidente da FEB por aprox. 27 anos)
Infalível é a sua
razão?
Allan Kardec
Em “O Livro dos Espíritos” – Introdução - pág. XXV
0 homem que julga infalível a sua
razão está bem perto do erro. Mesmo aqueles cujas ideias são as mais falsas se
apoiam na sua própria razão e é por isso que rejeitam tudo o que lhes parece
impossível. O que se chama razão não é muitas vezes senão orgulho disfarçado e
quem quer que se considere infalível apresenta-se como igual a Deus. Dirigimo-nos,
pois, aos ponderados, que duvidam do que não viram, mas que, julgando do futuro
pelo passado, não creem que o homem haja chegado ao apogeu nem que a natureza
lhe tenha facultado ler a última página do seu livro.
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