O cão
de
Ali Bahadian
José
Brígido / Indalício Mendes
Reformador
(FEB) Junho 1955
Ali
Bahadian não era propriamente um mau. No entanto, tomava, às vezes, estranhas atitudes, das quais frequentemente se arrependia.
Temperamento impulsivo, meio estourado, era, porém, fácil de acomodar, passados
os primeiros instantes de irritação.
Uma
noite, ele começou a ouvir vozes. Voltou-se para o lado de onde partiam os sons
e nada viu. Pôs-se inquieto e custou a conciliar o sono. Levou alguns dias
preocupado, acabando por esquecer o incidente. Quando, dias após, empreendeu pequena
viagem, as vozes voltaram. Ia Ali Bahadian batendo o pó da estrada, mais ou
menos satisfeito. Amanheceu na aldeia de Banjalir. Acercou-se da margem de
pequeno rio para comer alguma coisa. Nesse instante, aproximou-se, agitando a
cauda, um cão sujo e faminto, que não tirou os olhos da boca de Ali. Enervado,
o rapaz xingou-o, desferindo lhe um pontapé.
-
Que queres, diabo ?! Vai embora!
O
pobre animal correu, ganindo, rabo entre pernas, mas não ficou muito longe. A
fome era muito mais forte que o medo. De lá onde estava, esticou um olhar
triste, misto de ternura e humildade, que não comoveu Ali Bahadian. Mais
zangado ainda, este o escorraçou, atirando-lhe uma pedra. Assustado, o cão
desapareceu por trás de uns arbustos.
*
Concluída
a frugal refeição, Ali curvou-se sobre o rio para lavar as mãos. Fê-lo tão
desastradamente que o fêz (1) escorregou-lhe da cabeça e tombou dentro d’água. Ali Bahadian
lembrou-se do cachorro. Assobiou, chamando-o, e quando ele apareceu instigou-o
a correr para o rio. O animal, entretanto, reconhecendo-o, fugiu, ligeiro,
receando, talvez,
castigo.
(1) fêz - espécie de
barrete
-
Peste! - vociferou Bahadian. -. Vem cá, animal! Por tua causa vou perder meu
fêz!
Nesse
instante, teve a impressão de que alguém lhe mussitava ao ouvido:
-
A culpa é tua e não dele, Ali. Se houvesses demonstrado generosidade, o cão
estaria a teu lado, confiante, e certamente atenderia sem relutância à tua
vontade. Em vez de ajudá-lo, escorraçaste-o. Agora estás recebendo o prêmio da
tua má ação, porque não pode colher flores quem semeia pedras.
Ali
Bahadian, não vendo ninguém em seu redor, estremeceu, espantado. Eram as vozes
que retornavam! Sentiu percorrer lhe o corpo um arrepio gelado e disse consigo
mesmo:
-
Estou ouvindo "coisas". .. Sempre a mesma lengalenga. Eu não acredito
nisso...
No
mesmo instante, como se estivesse dialogando com um ser invisível, ouviu ainda
mais nitidamente:
-
Acreditas, sim... Irás acreditar, porque ninguém pode fugir à realidade...
Verás ainda...
Alarmado,
Ali conseguiu uma vara e "pescou” o fêz que o rio já ia levando. A
"pescaria" fora difícil, mas, afinal, ele podia, agora, recomeçar a viagem.
O Sol queimava a terra e tornava intolerável o calor. Suado e cansado, Ali
Bahadian estava com insuportável mau humor. De quando em quando soltava uma
imprecação, amaldiçoando o pobre cachorro. Após uma curva, avistou um homem que tentava
erguer até à lombada dum burro pesado fardo que se desprendera das cordas. A
tarefa era demasiada para uma só pessoa. Por isto, quando ele viu Ali, sorriu de contentamento, cheio de esperança:
-
Amigo: foi Alá quem te enviou a mim! Alá esteja contigo! Queres dar-me uma
"mãozinha? A carga é pesada e sozinho não consigo repo-la em cima do
burro...
-
Ah! Quisera eu ter forças para ajudar-te. Não posso, porém. Estou fatigado e
tenho ainda que andar muito...
-
Mas, com um pouco de boa vontade, meu amigo, será possível, sem que te
prejudiques, levantar o fardo. Eu farei mais força e tu apenas darás um empurrão
para a carga subir...
-
Não! Se soubesses como estou cansado, não insistirias...
E
foi andando, ainda mais zangado.
Enxugando
o suor que corria sem cessar do rosto queimado pelo Sol, o desconhecido apenas
disse:
-
Compreendo, compreendo... Não podes... Está bem. Alá há de me dar forças para fazer o
que almejo, já que me negas o auxílio que poderias prestar-me, se tivesses boa
vontade.
Ali
Bahadian não deu atenção, resmungando:
-
Ora, ora! Quase perdi meu fêz, cansei-me deste jeito e ainda vem esse homem
falar em boa vontade! Terei cara de idiota, porventura?
Andou
por todo o resto da tarde. Ao anoitecer, recostou-se a uma grande pedra,
debaixo de copada árvore e adormeceu, despertando quando o Sol já fazia sentir
os seus efeitos. Abriu o alforje que trazia às costas e pôs-se a comer figos secos.
Ao ouvir alguém cantarolar, levantou a cabeça e avistou o homem do burro.
Esforçando-se por ser amável,
Ali Bahadian saudou-o:
-
Benvindo sejas, em nome de Alá!
-
E tu também, meu amigo, ganha as bênçãos do Todo Poderoso, porque sem Ele nada
valemos - respondeu o desconhecido.
-
Tenho aqui algumas moedas - tornou Ali e serão tuas se me permitires viajar
nesse burro.
Não
aguento caminhar nesta dura estrada, sob sol tão forte.
-
Alá te ilumine o pensamento, irmão! A única moeda que realmente tem curso em
nossa vida é a boa-vontade. Poderás vir, mas não me precisas pagar nada.
Perplexo
com a generosidade do desconhecido, Ali Bahadian se agastou:
-
Pensas que estou aqui para te pedir favores? Vai embora com teu burro. Falas em
boa--vontade, porém o que queres é humilhar-me. Não preciso de boa-vontade,
ouviste?
-
Precisas mais do que pensas, Ali. Boa-vontade é moeda que rende muito, dá
sempre troco, garante juros certos...
A
voz partia do lado oposto. Ali Bahadian voltou a cabeça, surpreso, e não viu
vivalma. Não sabia explicar o que com ele acontecia. O homem e o burro já
haviam sumido na estrada cheia de voltas. Assustado, Ali pôs-se a andar
apressadamente, monologando:
-
Será um djim (2) que me está perseguindo?
(2) espírito bom ou
mal, superior ao homem e inferior ao anjo, segundo os muçulmanos.
No
mesmo instante, a voz se manifestou, forte:
-
Acompanho-te porque gosto de ti, Não és mau, embora gostes de parecer que o és.
Precisas criar juízo, rapaz. Amabilidade não faz mal a quem a usa. Generosidade
é ponte que nos faz atravessar muitos valões perigosos. Cultiva a boa-vontade.
Sempre que puderes, ajuda a alguém, mesmo que ninguém te ajude. Acabarás por
ter amigos e, quem tem amigos, nunca está só, Ali. Faze uma experiência
na primeira oportunidade que tiveres. Tenta...
Outra
vez "a voz", aquela voz que lhe penetrava o íntimo. Nervoso, Ali
Bahadian perdeu a noção das coisas e saiu correndo, sem sentir a fadiga, porque
o temor era maior do que o cansaço. Quando deu acordo de si, estava novamente
ao lado do homem do burro. Ofegante, pálido, quase sem poder falar, Ali se
apoiou no animal, que caminhava a passo lento. Nesse instante, as cordas que
amarravam o fardo às costas do solípede rebentaram de novo e a carga veio estrepitosamente
ao chão. O pobre homem ficou desapontado. Como iria transportá-la, se não tinha
cordas sobressalentes, que lhe permitissem prender o fardo ao animal?
Ali
Bahadian lembrou-se, então, do conselho de "a voz" e, mostrando-se
solícito, ofereceu:
-
Olha: tenho comigo uma corda fina, de cânhamo. É forte e talvez possa servir... Antes que o homem, admirado da bela ação,
dissesse algo, Ali Bahadian emendou as pontas rebentadas, experimentando se as
emendas estavam seguras. Depois, ajudado pelo companheiro, pôs novamente a
carga na lombada do burro. Os dois sorriram de satisfação, depois disto.
Recomeçada a marcha, Ali se entregou a animada conversa, talvez receoso de
ficar só e ser assediado pela "voz". Em dado momento, o homem lhe
propôs:
-
Vieste a mim pela mão do Profeta, amigo.
Se
não viesses, eu ainda estaria parado na estrada, nesta soalheira terrível. Alá
te cubra de flores, irmão, por tão boa-vontade!
Estremeceu
Ali Bahadian ao ouvir falar em "boa-vontade". Lembrou-se imediatamente
da voz. Nem respondeu ao companheiro, tão atarantado ficou. Sem lhe apreender a
perturbação, o homem prosseguiu:
-
Sou Aziz Abud Sizza, de AI-Farid, para onde vou. E tu?
-
Eu? Ali Bahadian, de Katarucha. Também vou para AI-Farid... - esclareceu Ali.
E puseram-se os dois a conversar animadamente.
-
Para que não te canses muito, Ali, monta no burro até à próxima pousada. Bem o
mereces por tua boa vontade.
Ali
Bahadian exultava de íntima alegria. Nunca se vira tão bem tratado, nunca
sentira alguém demonstrar satisfação em o ter por companhia. Era como se
houvesse alcançado o Paraíso. Não esperou que Aziz Abud Sizza repetisse a
invitação. Ajeitou-se diante do fardo e lá se foram os três, estrada afora,
como velhos amigos. O burro parecia igualmente feliz, porque, enquanto
caminhava, movimentava a cauda de um para outro lado.
Ali
bendizia a bondade de Deus:
-
Abençoado seja Teu nome, Alá! Nunca pensei que alguém pudesse ajudar-me! -
pensou.
-
Não te dizia eu, Ali? - sussurrou-lhe a voz misteriosa. - Cultiva a
boa-vontade, a tolerância, a amizade com os teus semelhantes, procura ser bom,
evita ser mau. Acabarás por ter amigos e quem tem amigos, nunca está só.
Tiveste o prêmio da tua boa ação.
Embora
empalidecendo, Ali Bahadian não denotou seu sobressalto. Tinha o coração aos
pulos, mas, desta vez, sentira indefinível bem-estar. Então, a voz seria mesmo
verdade? Não havia dúvida alguma, tanto que lhe predissera bons momentos e ele
estava fruindo realmente uma situação que não previra.
*
Em
AI-Farid, onde pernoitava, Ali Bahadian despertou em sobressalto. Ouvira
insólito ruído junto à porta da alcova. Abriu os olhos, atento, mas tudo eram
trevas. Lepidamente, ergueu-se e acendeu a lâmpada de óleo. Nada viu de
anormal. Supôs haver sonhado. Ia deitar-se de novo quando a chama da lâmpada
começou a minguar, até desaparecer totalmente. Ali reergueu-se, tornou a
acender a lâmpada, que tinha óleo suficiente para toda a noite. Não queria
ficar às escuras... Deitou-se outra vez. Repetiu-se a cena: a chama foi
diminuindo devagarinho até sumir. Desta vez, entretanto quarto não ficou na
escuridão, porque, imediatamente, se iluminou por igual, como se o Sol lá
houvesse nascido. Ali Bahadian sentou-se no leito, apavorado. Que seria aquilo?
Através da porta fechada começou, então, a surgir uma luz azulada e de dentro
dela saiu um homem alto, moreno, de turbante amarelo. Seus olhos negros e vivos
denotavam aguda inteligência. Parecia um dervixe. (3) Aproximando o rosto da face de Ali, indagou:
(3) dervixe
- monge muçulmano.
-
Sabes quem sou?
Tartamudeando,
o rapaz respondeu:
-
Não... não sei...
-
Sou "a voz". .. A voz que tens ouvido frequentemente. Depois da boa
ação que praticaste, resolvi apresentar-me a ti. Não te assustes. Sou teu amigo,
há muito, muito tempo... se andares direito, continuarei a sê-lo. Se
entortares, o resto será contigo.
Ali
Bahadian suava frio e tremia como caniços em vendaval. Supunha estar sendo
dominado por terrível pesadelo. Mas, nada disto: achava-se até bem desperto.
Pretendeu gritar, mas não pôde. Olhos arregalados, sossegou um pouco quando
compreendeu que "a voz" lhe sorria com amabilidade, despedindo-se.
Depois que a estranha visão desapareceu, Ali Bahadian se colou à parede, certo
de que iria morrer de susto. O coração batia descompassadamente e o ar lhe
faltava. Porém, nada lhe sucedeu de ruim. "A voz", agora num tom
quase paternal, lhe disse:
-
Se todos os homens fossem um pouco mais pacientes, se soubessem ter tolerância
em face de certas atitudes de seus semelhantes, se não se mostrassem irritados,
mas serenos, muita coisa que parece difícil se tornaria fácil e estabeleceria a
compreensão que falta na vida de relação. Um dia, Ali, desceu à Terra um grande
Espírito. Isa (4) veio dar aos
homens as regras do bom viver e da felicidade. Todos os seus mandamentos podem
ser resumidos num só: "Fazei aos homens tudo o que queirais que eles vos
façam." Se as criaturas humanas se dispusessem a proceder assim, as
condições desse mundo seriam melhores. Tu tiveste um exemplo, Ali. Bastou que
ajudasses aquele desconhecido na estrada para que ele também te ajudasse. A vida
tem de ser vivida com espírito de reciprocidade e paciência. Nada somos
isoladamente, mas valemos muito, quando unidos pela compreensão. Tudo deve ser
feito com boa-vontade, porque tudo merece nossa simpatia, nosso amor: as criaturas humanas, os
animais, as pedras, as plantas, a terra, a água, o ar, tudo, enfim, Ali
Bahadian, porque é criação de Alá. Em certas ocasiões, devemos até abençoar o
mal, porque ele nos esclarece a jornada. Sem paciência e boa-vontade pouco se
consegue na vida. O homem que compreende as lições do Livro Sagrado, faz a
vontade do Profeta e se aproxima de Alá.
(4)
nome pelo qual os árabes denominam Jesus cristo.
Ali
Bahadian ouvia as palavras da visão, sem se mexer. Mesmo que desejasse falar,
não teria ânimo, porque sofrera rude abalo. Entrementes, "a voz"
prosseguiu:
-
Ser bom é obrigação de todos os filhos de Alá. A bondade não tem fórmulas nem
formas; pode ser demonstrada de muitas maneiras e em qualquer ocasião. Ninguém
vence com violência e aqueles que aparentam triunfos assim são verdadeiramente
derrotados, porque ele mesmo escreve no livro da vida o seu próprio destino. É
sempre inteligente ceder um pouco, todas as vezes que se fizer necessário. Sem
boa-vontade e esperança de um lado, será difícil encontrar boa-vontade e
esperança do outro. Simpatia é um passe livre para a boa compreensão. Mesmo que
não te compreendam, guarda a serenidade nos momentos difíceis. Com paciência e
tolerância acabarás vencendo, assim como a água, gota a gota, acaba por
perfurar o granito mais consistente. A questão está em saber ter paciência e
trabalhar, esperando. É preferível que te desapontes procurando ser bom e útil
a teus semelhantes, do que desapontares a alguém,
mostrando-te duro e imprestável. Todos nós apenas colhemos na medida do que
semearmos. Portanto, Ali Bahadian, tem juízo. Educa-te, porque a glória maior
do homem não está na riqueza nem nas posições que ocupa, mas na força interior
que possui , na capacidade de dominar-se a si mesmo.
*
Em
seguida, a visão, tocando com a ponta dos dedos a testa, os lábios e o coração,
se despediu sorrindo. Atravessou a porta fechada,
ante os olhos atônitos de Ali, que se viu, imediatamente imerso em completa
escuridão. Reanimando-se, saltou do leito, acendeu a lâmpada de óleo, inquieto por
se encontrar sozinho.
-
Só pode ter sido um pesadelo! - exclamou.
-
Vou lá acreditar em fantasma? Eu? Só se eu não me chamasse Ali Bahadian. Sou
inteligente. Fui vítima de uma alucinação, apenas. E só acreditarei
"nisso" se tudo se repetir...
Mas
nada se repetiu. Pelo menos naquela noite.
*
No
dia imediato, depois de haver satisfeito os deveres que o haviam levado a
Al-Farid, Bahadian iniciou a viagem de retorno a Katarucha. Conseguira lugar numa
carreta, até a metade do caminho. Ao atingir a aldeia onde escorraçara o cão,
procurou a margem do rio, a fim de fazer ligeiro repasto. Lá encontrou,
esquelético, rondando os poucos transeuntes, na esperança de ganhar restos de
alimentos, o mesmíssimo cão sujo e infeliz. Ao ver o rapaz, para ele se dirigiu. O primeiro impulso
de Ali foi afugentá-lo, porém, no instante se lembrou da visão e das vozes, na quais
ele "não acreditava"... Tirou um pedaço defumada carne do alforje e
lançou-o ao cachorro, que inesperadamente vivo e rápido, devorou-o sem tardança,
para, a seguir, olhar para Ali, entre agradecido e pedinchão.
-
Queres mais, hem? Fiz-te a vontade e não estás satisfeito?
Como
se compreendesse o que ouvia, o cão pôs as orelhas em pé e abanou a cauda. Ali
achou graça. Retirou do alforje um bolinho de farinha e entregou-o ao animal,
que se acercara mais confiante. Depois, alimentou-se e empreendeu a jornada sem
dar maior importância ao cachorro. Andou muito sendo surpreendido por forte
ventania, ao cair da tarde. Em dado instante, um golpe de vento arrebatou-lhe
o fêz, que caiu numa grota de acesso. Ali Bahadian tentou apanhá-lo, infrutiferamente.
Irritado, dando o fêz por perdido, pôs o alforje às costas e foi procurar abrigo
conveniente. Nesse ínterim, ouviu latidos. Voltou-se e avistou o cão faminto
que o acompanhara. Corria para ele trazendo à boca o fêz. De momento a momento,
como que brincando, punha o fêz no chão, latia e corria em volta desse barrete.
Ali, contente, apanhou o fêz e alisou o pelo imundo do humilde cão, que se arriscara para o servir. Deu-lhe o resto
de carne defumada que trazia, afagando lhe um vez mais o lombo ossudo. Depois
desse incidente, Ali Bahadian recomeçou a viagem, chegando em Katarucha já
noite densa. Nem mais se lembrava do cão. Abriu a porta de casa, entrou, e,
antes acendesse a lâmpada, tudo se iluminou, tal sucedera em AI-Farid. Ali
correu para um canto do quarto, fechando os olhos. A visão se lhe apresentou mais
uma vez:
-
Não te espantes, Ali. Já sabes que sou amigo. Aprendeste muita coisa. Olho para
o teu futuro e vejo... zafar qarib. (5) Precisas continuar sim, melhorando sempre. Por mais zangado que estejas,
por mais pressa que te aflijas, não te irrites, não maltrates ninguém, muito
menos os animais. Paciência, tolerância e boa-vontade, Ali Bahadian, três
gigantes que nos decuplicam as forças, quando sabemos usá-las. Boa vontade é
moeda de câmbio forte, de juros certos. Ajuda sempre que puderes, não esperando
recompensa. Quando não deres ajuda, dirige uma prece a Alá, porque ele te dará forças para suportares
resignadamente as dificuldades. Conforma-te com as injustiças, mas procura
nunca ser injusto, porque, assim, os espinhos sairão de teu caminho. Agora, vai
lá fora: há uma surpresa para ti. Recebe-a com paciência e boa-vontade, Ali
Bahadian.
zafar qarib. (5)
triunfo próximo.
Mal
a visão se diluiu através da parede, Ali correu a acender a lâmpada e tornou à
porta para ver a que se referia o fantasma. Qual não foi seu espanto ao deparar
com o cão, que o seguira humildemente e se deitara ao relento.
-
Era isto! - exclamou, um tanto decepcionado. - Que vou fazer com este cachorro aqui?!
Quis
enxotar o pobre animal, mas seu subconsciente reagiu imediatamente. Ali
Bahadian volveu ao interior da casa e deitou-se, pensando como livrar-se da
companhia que lhe parecia incômoda. Ao despertar, na manhã seguinte, porém, era
bem diversa sua disposição de espírito. Ao vê-lo, o cão manifestou-lhe agrado e
Ali, bem humorado, decidiu:
-
Só poderás ficar comigo se tomares um banho.
Foi
o que fez. Depois da limpeza, o cachorro lhe parecia bonito, embora muito maltratado
pela fome. Ali Bahadian alimentou-o e, depois disto, o cão, dócil e atento,
distraiu-o bastante. Chegara ele a conclusão de que, afinal, tinha necessidade
de algo
que lhe afastasse as preocupações inúteis que lhe
assomavam o espírito.
-
Vais ficar comigo, se não me incomodares. Mas deves ter um nome. .. Qual será?
Já sei: "Paciência". Para te aturar devo ter muita paciência... Então,
aprende: teu nome é "Paciência", ouviste?
E
saiu, sorrindo, a cuidar de suas obrigações.
*
Alguns
meses decorreram. Ali Bahadian e "Paciência" haviam-se tornado muito
bons amigos. O rapaz passara a considerar o cão indispensável à sua existência
e não saía sem ele. Certa noite, porém, a tranquilidade de sua vida foi
perturbada pela visita de um ladrão. Despertado, o rapaz viu diante de si um
vulto que o ameaçava:
-
Se tens dinheiro, dize-me onde está... Depressa!
Ali
Bahadian, sentindo a ponta de uma faca roçar-lhe o tórax, disse a meia voz:
-
"Paciência", "Paciência"...
O
malfeitor não compreendeu porque ele o fazia e comentou:
-
Vamos, vamos! Onde está o dinheiro? Dize-me onde está, antes que eu perca a
paciência!
Nisto,
pela porta arrombada entrou o cão, que, notando a presença dum estranho, rosnou
e invadiu a casa. Percebendo que a atenção do intruso se desviara, Ali com ele
se atracou, lutando bravamente na escuridão. A esse tempo, já o cão atacara o malfeitor,
mordendo lhe as pernas. Para desvencilhar-se de Ali, o desconhecido feriu-o e
correu para a porta. "Paciência", no entanto, se
tornara feroz na peleja. Depois de grande alarido, o ladrão logrou fugir,
fazendo-se pesado silêncio nas trevas. A um canto, Ali Bahadian tentava
reerguer-se para acender a velha lâmpada de óleo. Chamou o cão, mas este não
respondeu. Talvez houvesse saído atrás do assaltante e permanecesse lá fora.
Com dificuldade, Ali pôs fogo à lâmpada e o quarto se alumiou. Nesse instante
viu caído, numa poça de sangue, o bravo e infeliz "Paciência". As
lágrimas lhe vieram aos olhos. Aflito, o rapaz pôs sobre as pernas o corpo
inanimado do animal, que mostrava a garganta aberta por certeiro golpe de faca.
-
"Paciência"! "Paciência"! Meu amigo! ...
E
se entregou a sincero pranto. De nada adiantava o desespero, pois o cão estava
irremediavelmente perdido. Foi nesse momento que "a voz", há tanto
tempo ausente, se fez ouvir novamente:
-
Não chores, Ali, embora, pelas lágrimas que derramas, estejas demonstrando a
dor que te alanceia a alma. Reage para que possas dar aos despojos do teu cão o
agasalho sagrado no seio da terra. Saibas que "Paciência" não foi
aniquilado, como supões. Posso mostrar-te que isso é verdade. Está aqui a meu
lado, mais vivo do que pensas, porque a morte não é o fim de tudo, não é o
aniquilamento, mas a libertação de uma vida para o recomeço de outra, em plano
diferente.
Ali
Bahadian viu, então, que "a voz" se tornava visível e não escondeu
sua surpresa ao ver que "Paciência", cujo corpo permanecia inerte a
seu lado, saltitava, alegre, na companhia do Espírito. "Como poderia ser
isso?" - indagou, de si para consigo, o rapaz, sem atinar com a
explicação. "A voz" apreendeu lhe a dúvida e tranquilizou-o:
-
Ainda é cedo, Ali Bahadian, para penetrares certos mistérios da existência
terrena. Posso adiantar-te que, além da vida física, há outra, extraterrena,
espiritual, em que as criaturas se situam, consoante sua hierarquia moral. Os
animais são também, de certo modo, dotados de uma "alma", inferior à
dos homens, pois não se valoriza pelo livre arbítrio. Depois da morte física, a
"alma" dos animais conserva a sua individualidade e a vida inteligente
lhe permanece em estado latente. Sobrevivem, como no caso de
"Paciência", à morte do corpo material usado na Terra, e se demoram
na erraticidade até que se lhes ofereça nova encarnação. Com o auxílio de Alá,
pude conseguir que visses o que estás vendo, a fim de mostrar-te um aspecto da
verdade e consolar-te da dor de haver perdido o companheiro. Ainda hás de aprender todas
estas coisas e muitas mais que ora nem imaginas. Para isso, terás de retemperar
teu espírito nas boas obras e na prece sincera. Posso adiantar--te, já, que
"Paciência" continua vivo, muito embora tenhas entre as mãos o corpo
inanimado que ele usou. Mas evoluirá através dos tempos, porque também está
sujeito à lei progressiva a que estão subordinados todos os animais.
O
semblante de Ali Bahadian se desanuviou por instantes. Fez peculiaríssimo
sinal, que "Paciência" compreendia como ordem para dar cabriolas, e
foi com regozijo que verificou ser imediatamente atendido. Radiante de alegria,
tentou tomar nos braços o amigo querido, mas nada encontrou, senão o vácuo...
Restava-lhe, porém, a lembrança macabra daquele cadáver ainda morno, do cão
amado que morrera para que ele sobrevivesse...
*
Vamos
reencontrar Ali Bahadian grisalho, mas ainda forte de corpo e espírito. Fizera-se
um símbolo de tolerância, boa-vontade e dedicação ao próximo. Conhecia muitos
dos segredos que lhe haviam sido revelados pela "voz". Todas as
noites, quando o silêncio amortalhava Katarucha, Ali promovia o intercâmbio de
ideias e pensamentos com respeitáveis entidades do mundo espiritual. Evolvera
bastante e daquele jovem estouvado de outros tempos nada mais restava. Aos
discípulos mais íntimos, ensinava que "nascer, morrer, renascer ainda e
progredir continuamente, tal é a lei".
*
Numa
linda manhã de sol, Ali Bahadían ergueu--se do alquicer (6) e viu diante de si o inesquecido "Paciência". Correu para
ele, pegou-o ao colo, afagou-o e deixou aquela casa para sempre... Quando os
discípulos chegaram, bateram em vão à porta e, ao entrarem, compreenderam que
de Ali Bahadian restavam somente velhos despojos de uma encarnação bem
aproveitada...
(6)
alquicer - enxergão usado pelos árabes.