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terça-feira, 31 de dezembro de 2013

A Paixão de Jesus



A Paixão de Jesus
Ewerton Quadros
por W. Vieira
Reformador (FEB) Outubro 1961



            O Espiritismo não nos abre o caminho da deserção do mundo.

            Se é justo evitar os abusos do século, não podemos chegar ao exagero de querer viver fora dele. Usufruamos a vida que Deus nos dá, respirando o ar das demais criaturas, nossas irmãs.

            Para seguir a própria consciência, podemos dispensar a virtude intocável que forja a santidade ilusória.

            Não sejamos sombras vivas, nem transformemos nossos lares em túmulos enfeitados por filigranas de adoração.

            Nossa fé não é campo fechado à espontaneidade.

            Encarnados e desencarnados precisamos ser prudentes, mas isso não significa devamos reprimir expansões sadias e não nos abracemos uns aos outros. A abstinência do mal não impõe restrições ao bem.

            Assim como a virtude jactanciosa é defeito quanto qualquer outro, a austeridade afetada é ilusão semelhante às demais. Não façamos da vida particular uma torre de marfim para encastelar os princípios superiores ou estrado de exibição para entronizar o ponto de vista.

            A convicção espírita não é insensível ou impertinente.
           
            A inflexibilidade, no dever, não exige frieza de coração. Fujamos ao proselitismo fanatizante, mas, nem por isso, cultivemos nos outros a aversão por nossa fé.

            Se o papel de vítima é sempre o melhor e o mais confortável, nem por Isso, a título de representá-lo, podemos forçar a nossa existência, transformando em verdugos, à força, as criaturas que nos rodeiam.

            Não sejamos policiais do Evangelho, mas candidatemo-nos a servidores cristãos.

            Nem caridade vaidosa que agrave a aspereza do próximo, nem secura decoração que estiole a alegria de viver.

            Quem transpira gelo, dentro em breve caminha em atmosfera glacial.

            A crença, aferrolhada no orgulho, desencadeia desastres tão grandes quanto aqueles criados pelo materialismo. Não sejamos companhias entediantes. Um sorriso de bondade não compromete a ninguém.

            A fé espírita reside no justo meio-termo do bem e da virtude.

            Nem o silêncio perpétuo da meia-morte, que destrói a naturalidade, nem a fala medrosa da inibição a beirar o ridículo.

            Nem olhos baixos de santidade artificiosa, nem anseio inexperiente de se impor a todo preço.

            Nem cumplicidade no erro, na forma de vício; nem conivência com o mal, na forma de aparente elevação.

            Fé espírita é libertação espiritual. Não ensina a reserva calculada que anula a comunicabilidade, constrangendo os outros, nem recomenda a rigidez de hábitos que esteriliza a vida simples . Nem tristeza sistemática, nem entusiasmo pueril.

            Abstenhamo-nos da falsa ideia religiosa, suscetível de repetir os desvios de existências anteriores, nas quais vivemos em misticismo acabrunhante. Desfaçamos os tabus da superioridade mentirosa, na certeza de que existe igualmente o orgulho de parecer humilde.

            O Espiritismo nos oferece a verdadeira confiança, raciocinada e renovadora; eis porque o espírita não está condenado a atividade inexpressiva ou vegetante. Caridade é dinamismo do amor. Evangelho é alegria. Não é sistema de restringir as ideias ou tolher as manifestações, é vacinação contra o convencionalismo absorvente.

            Busquemos o povo - a verdadeira paixão de Jesus -, convivendo com ele, sentindo lhe as dores, e servindo-o sem intenções secundárias, conforme o "amai-vos uns aos outros" - a senda maior de nossa emancipação.



A Lição Máxima do Cristo


A Lição Máxima
do Cristo
Rodolfo Calligaris
Reformador (FEB) Outubro 1961

            A ocupação da Palestina pelo império romano, nos albores de nossa era, ensejava constantes motivos de irritação para os judeus.

            É que ali, como em todas as regiões que havia conquistado, a soldadesca romana impunha aos vencidos uma dependência odiosa e intolerável, tantas as humilhações e os vexames por que os fazia passar.

            Era comum, por exemplo, um oficial romano dirigir-se de um ponto a outro da Judeia ou da Galileia e, nessas viagens, obrigar os camponeses judeus que trabalhavam no campo a interromperem seus afazeres para carregar-lhe pesados fardos, montanhas acima.

            Da mesma forma, quem saísse de casa, com um destino qualquer, nunca poderia ter a certeza de que chegaria ao local desejado, pois se lhe acontecesse encontrar, pelo caminho, algum representante das autoridades dominantes, poderia ser obrigado a retroceder ou a mudar completamente de direção, para levar uma carta ou prestar qualquer outro serviço que lhe fosse exigido.

            Tentasse alguém reagir contra essas arbitrariedades e conheceria logo o preço de sua ousadia: o sarcasmo e crueldades inomináveis. É de calcular-se, portanto, a amargura com que os judeus tinham de curvar-se em homenagem às bandeiras romanas, sempre que as viam passar conduzidas pelas tropas do César, e com que ardor aguardavam o dia em que pudessem sacudir o jugo romano.

*

            Certa feita, achava-se Jesus ensinando o povo, nas cercanias de uma cidade que era sede de uma guarnição romana, quando a vista de uma companhia de soldados fez que seus ouvintes evocassem a amarga lembrança do opróbrio que pesava sobre Israel.

            O Mestre relanceou o olhar pelos que o circundavam e, em suas faces, viu estampado, de forma indisfarçável, o anseio de vingança que se aninhara em cada coração.

            Percebendo que todos o fitavam ansiosamente, esperando fosse ele aquele que houvesse de lhes dar o poder, a fim de esmagarem o opressor, contristou-se, pois bem diferente era a sua missão, e, retomando a palavra, ordenou-lhes com brandura:

            "Não resistais ao mal; mas, se qualquer vos bater na face direita, oferecei-lhe - também a outra. E se alguém vos obrigar a caminhar uma milha, ide com ele duas."

            Será que, expressando-se desta maneira, estaria o Cristo endossando as violências com que a tirania militar da época se acostumara a supliciar os vencidos?

            Certamente que não. O que ele quis ensinar, nessa oportunidade, como aliás o fez durante toda a sua vida terrestre, foi que, malgrado a regra estatuída por Moisés - "olho por olho e dente por dente" - a Lei Divina, que viera revelar, proibia terminantemente as desforras, as vinditas, por serem contrárias ao sentimento do Amor.

            A corroboração de ser este o verdadeiro sentido de suas palavras, ele mesmo a forneceu quando logo em seguida sentenciou:

            "Tendes ouvido o que foi dito: amarás o teu próximo e aborrecerás o teu inimigo; mas eu vos digo: amai a vossos inimigos, fazei bem ao que vos tem ódio e orai pelos que vos perseguem e caluniam."

            Compreende-se, pois, à luz da doutrina cristã, que ninguém será justificado na vingança. Aos indivíduos ou às nações que transgridam os mandamentos da Lei Divina lhes será dado o ensejo de se corrigirem.

            A oportunidade e a importância desses princípios estabelecidos pelo Mestre ressaltam ainda hoje. Fosse permitido a cada qual fazer justiça por suas próprias mãos, agindo ao sabor de sua vontade pessoal, e a vida em sociedade seria muito difícil, tais os desmandos e excessos que se verificariam.

            Talvez se indague: pessoalmente, teve o Cristo ocasião de exemplificar tão sublime ensinamento?

            Sim! Foi oprimido e não abriu a boca; cuspiram-lhe na face e não revidou o ultraje; ofereceu as costas aos açoites sem malquerer os que o feriam, e, através dos séculos, chega até nós, da cruz do Calvário, a oração que proferiu por aqueles que lhe davam a morte:

            "Pai, perdoa-lhes, porque não sabem o que fazem!"



A Meta Homem


A Meta Homem

Cristiano Agarido / (Ismael Gomes Braga)

Reformador (FEB) Outubro 1961

            Para nós espíritas a Meta Homem é a primeira, o eixo em torno do qual giram todas as outras, a única digna de todos os sacrifícios. Os grandes impérios que não resolveram os problemas humanitários caíram como castelo sobre a areia, que efetivamente eram.

            Quais são os problemas humanos que desafiam e arrasam os impérios mais poderosos? É só um, POBREZA em seus quatro aspectos: de saúde, de moral, intelectual, econômica. Os remédios são higiene, educação, instrução, amparo material.

            Num país com alto nível de doentes e analfabetos, abandonados a si mesmos nos campos e nas cidades, sem meios de se educarem, de se instruírem e trabalharem, é preciso criar exércitos de médicos, de higienistas, de mestres, de técnicos, e espalhá-los por todo o território nacional como missionários do povo. Não se pense em caridade, porque  esta tem que vir depois de cumpridos os deveres sociais e patrióticos que cabe sejam impostos a todos, como a defesa nacional em tempo de guerra.

            A caridade é alta demais para entrar nessa primeira luta. Dela todos necessitamos, por mais aquinhoados que sejamos pela fortuna, pela instrução, pela estima social, antes e depois da morte.

            Um programa completo de governo deve ter a Meta Homem, ainda tão descurada, praticamente incompreendida por todos os Governos.

            A legislação trabalhista estabelece um salário mínimo para quem tenha capacidade de exercer uma função, faz reajustamentos salariais por meio de dissídios coletivos, mas isso só aproveita aos que tiverem meios de obter trabalho. Grande número de crianças não tiveram escola, foram criadas em meios viciosos e ignorantes, doentias, sem assistência moral nem intelectual de ninguém, assistindo a exemplos degradantes de seus pais e vizinhos. Foi-lhes ensinado a odiar a tudo e a todos.
           
            Crescer em tal meio e ser pessoa virtuosa é praticamente impossível, seria milagre só realizável por Espíritos de imensa elevação.

            A Meta Homem terá que ir ao encontro de todas essas vítimas de nossa sociedade friamente egoísta, inspirar-lhes fé nos homens, alegria de viver, solidariedade, sede de aprender, amor à Pátria, esperança no futuro. A sociedade os classifica como "marginais" e efetivamente ela os deixou abandonados à margem da vida.

            O Espiritismo reprova severamente a sociedade humana que não ampare e eduque seus membros. Os espíritas trabalham para resolver esses problemas, mas o que fazem é gota d’água no oceano das necessidades. A obra tem que ser de toda a coletividade, como a defesa nacional, que é obrigatória para todos os cidadãos: em tempo de guerra todos
são compelidos a prestar serviço militar; todos os bens podem ser requisitados para a defesa.

            Esperemos que surja um Governo, cujo programa tenha um só item: a Meta Homem. Ela bastará para sempre, porque se desdobrará em todas as outras. Esta é a meta do Espiritismo e mais cedo ou mais tarde terá de ser compreendida e adotada. Todas as demais são caminhos para chegar a essa meta única que é exigida pelo Amor Universal.

segunda-feira, 30 de dezembro de 2013

As Maravilhas do Evangelho


As Maravilhas
 do Evangelho

Sylvio Brito Soares
Reformador (FEB) Outubro 1961

            E, no primeiro dia da semana, Maria Madalena foi ao sepulcro, de madrugada, sendo ainda escuro, e viu a pedra removida do sepulcro.
(João, 20:1)

            Quando buscamos o Evangelho com o propósito de nele encontrarmos alimento para a nossa alma, é naturalíssimo que coloquemos em segundo plano o evento histórico, para nos atermos de preferência ao sentido subjetivo dos relatos evangélicos.

            Nesse versículo, que acabamos de citar, colhemos uma lição magnífica, isto é, a lição da coragem, da decisão e da fé ativa!

            Maria Madalena, essa heroína que, sem medir a extensão de seu gesto no seio da sociedade em que vivia, abandonou as coisas do mundo para que maior plenitude pudessem nela encontrar as coisas do céu, é evidentemente um padrão de confiança, de atitudes decisivas, porque ela passou a compreender e a sentir o amor através de uma concepção superior, de uma visão mais alta e, por ísso mesmo, pouco acessível à generalidade das mentes e ao sentimentalismo humano.

            Ela bem simboliza a voz que clama contra o desânimo, a voz que lança o brado de guerra contra essa dor piegas e incompatível com a pura essência do Cristianismo!

            O homem de fé robusta, quando a desgraça lhe atinge o coração, não se entrega a lamentações inúteis e a desesperos tolos, porque, assim procedendo, ele sabe que não solucionará a situação e nem acalmará a dor.

            Seja qual for a provação por que passemos, o que nos cumpre é imitar a atitude de Madalena!

            Enquanto os discípulos de Jesus, na hora difícil, sentiram abalada sua convicção nos ensinamentos do divino Mestre e se refugiaram, transidos de medo, Maria de Magdala, ainda bem não despontara o dia, sozinha e destemida se dirige até ao sepulcro, onde o corpo de seu Mestre amado fora depositado.

            E porque confiava nas palavras do Cristo, porque sabia que os bafejados com a luz da verdade tinham de ser uma força em constante atividade, por isso mesmo foi a primeira a receber a mensagem de Jesus, após seu martírio no Gólgota.

            O desânimo, as lamúrias e os desesperos são forças negativas que nada resolvem, antes agravam as nossas próprias dores, porque nos impedem de receber de nossos irmãos do Além os bálsamos suavizantes de conforto espiritual!


O Livro dos Médiuns


O Livro dos Médiuns
André Luiz
por Chico Xavier
Reformador (FEB) Outubro 1961

            Muitos referiam-se à justiça...
            Mas apenas Moisés logrou expressá-la junto aos homens.

            Muitos sentiam a necessidade do amor por único recurso de sustentação da concórdia e da fraternidade entre as criaturas...
            Entretanto, somente Jesus conseguiu exemplificá-la na Terra.

*

            Qual ocorre no plano moral, assim tem acontecido sempre em todos os distritos do progresso humano.

            Muitos registavam o impositivo de mais ampla divulgação da cultura...
            Contudo, só Gutenberg pode articular os alicerces da imprensa.

            Muitos observavam que o mundo químico devia ter por base um elemento extremamente simples...
            Todavia, somente Cavendish chegou a descobrir o hidrogênio.

            Muitos reconheciam a possibilidade de isolar-se a faísca elétrica...
            No entanto, apenas Franklin levantou o para-raios.             

            Muitos pensavam na criação do transporte rápido...
            Mas só Stephenson inventou a locomotiva.

            Muitos pressentiam a existência da gravitação...
            Entretanto, somente Newton granjeou enunciá-la. 

            Muitos falavam em arquivo da voz...
            Contudo, só Edison corporificou o fonógrafo.

            Muitos suspeitavam da influência maléfica dos bacilos...
            Todavia, somente Pasteur instituiu a imunização.

            Muitos estudavam as ondas eletromagnéticas...
            No entanto, só Marconi estabeleceu as comunicações do sem fio.

*

            Através de séculos, muitos admitiam o intercâmbio entre os homens na carne e os Espíritos no Espaço...
            Contudo, somente Allan Kardec definiu a prática mediúnica, inaugurando nova era para a vida mental da Humanidade.

            Glória, pois, a "O Livro dos Médiuns", que, lançado há cem anos (*), consubstancia o pensamento puro e original do Codificador sobre a mediunidade com Jesus.

 (*)  Do Blog -  Já lá se vão 152 anos...



De Atalaia


De Atalaia
Irmão X / Chico Xavier

Reformador (FEB) Outubro 1961

            Não, meu amigo. Não diga que nós, os companheiros desencarnados, ressurgimos da morte convertidos em feitores intolerantes, na construção da fé.

            Quando você examina o zelo natural com que pretendemos defender os princípios de Allan Kardec, para que a Doutrina Espírita avance, pura, na hora presente de profundas transições, parece surpreender em nós a valentia de Torquemada, mentalizando fogueiras e remoendo perseguições.

            Entretanto, não é assim.

            Se você estivesse fora do carro fantasioso da carne a modo de cavaleiro desmontado, com a obrigação de varar, passo a passo, o próprio caminho, decerto pensaria de outra forma.

            Ignoro se você já terá penetrado num grande hospício; contudo, é possível saiba você que quase todos os internados no manicômio são criaturas absolutamente fora da realidade.

            Temos aí supostos reis, empertigando a cabeça escaveirada; fidalgos imaginários, ostentando calhaus à guisa de brilhantes; caprichosos proprietários, sobraçando papel inútil por documento valioso, e até mesmo pobres irmãos de olhar fusco, acreditando-se animais em posturas excêntricas.

            O psiquiatra chega, inquieto, a semelhante submundo da mente enfermiça, coça a cabeça, examina a clientela e aplica, discriminadamente, o barbitúrico e a insulina, o eletrochoque e a lobotomia; no entanto, raramente consegue rearticular, de todo, o raciocínio dos alienados que o desequilíbrio ensandece.

            Essa, meu caro, é a única imagem de que me lembro para exprimir o quadro que nos toma, de assalto, após a desencarnação. Guarda-se a ideia de que a paisagem social da Terra, quase toda ela, está cercada de Espíritos dementados, em cujos cérebros o discernimento sofre eclipse doloroso. Milhões dos que já se desamarraram da carne prosseguem, aqui, psiquicamente jungidos à cristalizada reminiscência daquilo que foram entre os homens, afazendo-se à teimosia recalcitrante, quais se fossem donos de pessoas e honrarias, terras e fazendas, casas e posses, objetos e coisas. Há quem se julgue comandante do povo, gritando, debalde, nas trevas de si mesmo; quem se arroga na posição do senhor da retaguarda, reclamando situações que não voltam; quem se presume santo, carregando paixões subalternas; e há exércitos de infelizes, aprisionados em pavorosas ilusões, alimentadas pelas inteligências bestializadas no vampirismo ou na delinquência.

            Isso tudo, porque os tabus de todas as procedências ainda dominam a vida mental da maioria dos espíritos encarnados, obstruindo lhes a visão mais ampla na direção da imortalidade.

            E convenhamos que, na Terra de agora, o Espiritismo simples e sereno é a maior escola de libertação da mente, o abrigo seguro para o entendimento religioso da vida, no qual aprendemos que todos estamos entregues a nós mesmos, em matéria de responsabilidade perante as Leis Divinas, e que todos receberemos, na Terra ou alhures, segundo as nossas obras.      

            É por observar de perto as consequências terríveis das mentiras e dos preconceitos humanos nas rotas do espírito, que prosseguiremos trabalhando pela preservação da Doutrina Espírita, indene de dogmas e superstições, artificialismos e rituais.

            Libertemo-nos, por dentro, para que a liberdade maior venha ao nosso encontro.

            Finalizando, creio não seja cabível recorrermos, nesse aspecto do nosso estudo, aos exemplos de tolerância por parte do Cristo. Indubitavelmente, Jesus revelou-se por amigo e irmão de todos; entretanto, em nome da caridade e da solidariedade não se permitiu entrelaçar as mãos, politicamente; com Anás e Caifás, tanto quanto com outros distintos sacerdotes do seu tempo, a fim de que lhe injetassem convenções e escapes nas hígidas lições de que se fazia portador. Tentado ao ajuste, preferiu silenciar e morrer.

            O Mestre Divino, certo, quis patentear-nos que o amor não vai sem a verdade e que a verdade, para ser defendida, precisará resistência, ainda mesmo que essa resistência reserve para si mesma apenas o clima do sarcasmo e a morte na cruz.


O Manuscrito do Purgatório


O Manuscrito do Purgatório
Antônio Túlio / (Ismael Gomes Braga)
Reformador (FEB) Outubro 1961

            Em outro trabalho já nos referimos ao livro mediúnico que tem o título deste artiguete, livro escrito por uma freira muito virtuosa e sensata, em um convento da França. O Espírito comunicante é o de uma freira falecida aos 36 anos de idade, cheia de teologia católica que procura transmitir à sua colega viva, e só numa ou noutra passagem aparece um ou outro ensinamento espírita que revela a autenticidade mediúnica das comunicações, demonstrando que tudo não veio do subconsciente da médium. A doutrina geral do livro é horrorosamente fanática, misantrópica, puramente de claustro.

            Vamos respigar aqui alguns poucos pontos desses preciosos pormenores em que o Espírito consegue ensinar alguma coisa diferente da teologia de convento. Na página 35 lemos:

            "Os grandes pecadores e os que ficaram toda a vida afastados de Deus pela indiferença, e bem assim as religiosas que não foram o que deveriam ter sido, estão no grande purgatório."

            Este ensinamento é espírita, porque para os católicos tais grandes pecadores estariam no inferno, não no purgatório.              

            Na pág. 36 lemos: " ... uma força nos impele para o lugar de nossa expiação." É mesmo isso que ocorre, mas não é ensino católico, porque o purgatório dos católicos é um lugar definido.

            Na pág. 49: "A Terra mesma não é um purgatório?"

            Ensino puramente espírita, implicando veladamente a doutrina reencarnacionista. Para os católicos a Terra não é purgatório.

            Na página 59:

            "Eu vos digo que há almas que fazem o seu purgatório ao pé dos altares. Elas ali ficam pelas faltas que cometeram nas igrejas."

            O silêncio quase completo das mensagens quanto ao inferno, e as referências ao purgatório em diversos lugares da Terra mostram que o livro realmente é mediúnico, embora recebido por uma médium muito prejudicada pela Teologia e talvez "expurgado" pelos teólogos antes de ser impresso.

            De qualquer modo "O Manuscrito do Purgatório" demonstra a explosão da mediunidade num convento e nos dá a esperança de coisas melhores para o futuro, porque "o Espírito sopra onde quer".


domingo, 29 de dezembro de 2013

Legenda Espírita


Legenda Espírita
Bezerra de Menezes
por Chico Xavier
Reformador (FEB) Outubro 1961


            O cultivador é conduzido ao pântano para convertê-lo em terra fértil.

            O técnico é convidado ao motor em desajuste para sanar lhe os defeitos.

            O médico é solicitado ao enfermo para a bênção da cura.

            O professor é trazido ao analfabeto para auxiliá-lo na escola.

            Entretanto, nem as feridas da terra, nem os desequilíbrios da máquina, nem as
chagas do corpo e nem as sombras da inteligência se desfazem à custa de conversas
amargas, e, sim, ao preço de trabalho e devotamento.

            O espírita cristão é chamado aos problemas do mundo, a fim de ajudar-lhes a solução; contudo, para atender em semelhante mister, há que silenciar discórdia e censura e alongar entendimento e serviço.

            É por essa razão que, interpretando o conceito "salvar" por "livrar da ruína" ou
"preservar do perigo", colocou Allan Kardec, no luminoso portal da Doutrina Espírita, a sua legenda inesquecível:


            - "Fora da caridade não há salvação."

Nos círculos da fé


Nos círculos da fé
Emmanuel

por Chico Xavier
Reformador (FEB) Outubro 1961


            Acende a flama da reverência, onde observes lisura na ideia religiosa.

            Lembremo-nos, com o devido apreço aos irmãos que esposam princípios diferentes dos nossos, de que existem tantos modos de expressar confiança no Criador, quantos são os estágios evolutivos das criaturas.

            Há os que pretendem louvar a Infinita Bondade, manejando borés (trombetas) ; há os que se supõem plenamente desobrigados de todos os compromissos com a própria crença, tão somente por se entregarem a bailados exóticos; há os que se cobrem de amuletos, admitindo que o Eterno Poder vibre absolutamente concentrado nas figurações geométricas; há os que fazem votos de solidão, crendo agradar aos Céus, fugindo de trabalhar; há os que levantam santuários de ouro e pedrarias, julgando homenagear o Divino Amor; e há, ainda, os que se presumem detentores de prerrogativas e honras especiais, pondo e dispondo nos assuntos da alma, como se Deus não passasse de arruinado ancião, ao sabor do capricho de filhos egoístas e intransigentes...

            Ainda assim, toda vez que se mostrem sinceros, não lhes negues consideração e respeito.

            Quase sempre, são corações infantis, usando símbolos como exercícios da escola, ou sofrendo sugestões de terror para se acomodarem à disciplina.

            Contudo, não lhes abraces as ilusões, a pretexto de honorificar a fraternidade, porque a verdadeira fraternidade é a que se movimenta a favor dos companheiros de evolução, clareando lhes o raciocínio sem violentar lhes o sentimento.

            É preciso não engrossar hoje as amarras do preconceito para que o preconceito não se faça crueldade amanhã, perseguindo em nome da caridade ou supliciando em nome da fé.

*

            Se a Doutrina Espírita já te alcançou o entendimento, apoiando-te a libertação interior e ensinando-te a religião natural da responsabilidade com Deus em ti mesmo, recorda a promessa do Cristo:

            - "Conhecereis a verdade e a verdade, afinal, vos fará livres."


sexta-feira, 27 de dezembro de 2013

Sobre o 'Auto de Fé' de Barcelona



Centenário
de um auto-de-fé
Editorial
Reformador (FEB) Outubro 1961

            Faz precisamente cem anos veio juntar-se, à História da Igreja Católica Apostólica Romana, mais uma página sombria e grotesca.

            Desde o começo do século XIX, o absolutismo e o liberalismo viviam, na Espanha, em constantes lutas entre si. A Igreja ora ganhava, ora perdia privilégios. A negra Inquisição, ali existente desde 1481, era abolida e restabelecida, até que o movimento revolucionário de 1820, contra o qual se opunha o clero, a suprimisse definitivamente. Dirigido pela Junta apostólica, o partido dos tonsurados suscitava várias insurreições a favor de D. Carlos, o representante do absolutismo extremo e do clericalismo escravizante.

            O grande povo de Barcelona, capital do antigo Principado de Catalunha, participava ativamente do movimento nacional contra a cegueira ultramontana. As revoluções se sucediam, sempre com a classe clerical mancomunada com as forças absolutistas. Por volta de 1834, o povo oprimido praticava uma série de autos-de-fé. Turbas de homens ensandecidos, com machado em uma das mãos e tocha incendiária na outra, assaltavam, furiosos, mosteiros e templos, matando padres e freiras. Pouco mais tarde, em nome da Concordata de 1851, impunha-se a intolerância religiosa às Constituintes. E os anos corriam...         

            Em 1861, justamente no ano em que saía a lume, na França, "O Livro dos Médiuns", era posta à venda, na Espanha, notável síntese da doutrina kardequiana na célebre "Carta de un espiritista a don Francisco de Paula Canalejas", ilustre escritor espanhol, futuro membro da Academia de Letras. Alberico Peron (Enrique Pastor), conhecidíssimo nos círculos filosóficos e literários como ardoroso discípulo de Allan Kardec, foi o autor da citada Carta, que produziu grande sensação. Mas, mesmo que Alberico Peron houvesse escrito centenas de cartas semelhantes e as distribuísse a torto e a direito, talvez não conseguisse a retumbância que teve o "auto-de-fé" cujo centenário ora comemoramos.

            O famoso escritor e editor francês Maurice Lachâtre, a quem se deve a autoria da "História dos Papas" (10 volumes) e da "História da Inquisição", achava-se refugiado em Barcelona, "albergue de los extranjeros", condenado que fora a cinco anos de prisão pelo regime absolutista de Napoleão III, por ter editado o célebre "Dicionário Universal Ilustrado". Naquela cidade, onde permaneceria até 1870, ele fundou uma livraria. Profundo admirador de Allan Kardec, cujo nome e obra enalteceu no primeiro volume do seu "Novo Dicionário Universal" e a cujos ideais se unira, solicitara dele uma certa quantidade de obras espíritas, para expô-las à venda e propagar, assim, a nova Revelação. "A Doutrina. Espírita, tal como ressalta das obras de Allan Kardec - declarava Lachâtre -, encerra em si os elementos de uma transformação geral das ideias, e a transformação nas ideias conduz forçosamente àquela da sociedade. Assim considerando; ela merece a atenção de todos os homens progressistas. Já se estendendo a sua influência a todos os países civilizados, ela dá à personalidade do seu fundador uma importância considerável, e tudo faz prever que, num futuro talvez  próximo, ele será tido como um dos reformadores do século XIX."

            As obras remetidas a Lachâtre, em número de trezentas, foram expedidas em duas caixas, com todos os requisitos legais indispensáveis. Na Alfândega de Barcelona, cidade que Cervantes qualificou de "archivo de la cortesía", as caixas de livros foram inspecionadas, cobrando-se do destinatário os direitos alfandegários de praxe. A liberação estava prestes a ser dada, quando uma ordem superior a suspendeu, com a declaração de que se fazia necessário o consentimento expresso do bispo de Barcelona, Antonio Palau y Termens. Este se achava ausente da cidade. À sua volta, foi-lhe apresentado um exemplar de cada obra. Não precisou muito tempo para que ele concluísse pela perniciosidade de tais livros, logo ordenando que fossem lançados ao fogo, por serem "imorais e contrários à fé católica".

            Reclamou-se contra esta sentença, em frontal desacordo com as leis do país, as quais poderiam, no máximo, proibir a circulação daquelas obras, não havendo, porém, nenhum artigo que justificasse a sua destruição pelo fogo. Pediu-se ao Governo que, em vista de não se permitir a entrada desses livros na Espanha, pelo menos consentisse na sua reexpedição ao país de origem. Por absurdo, que pareça, isso foi recusado, apresentando o bispo - homem de ampla cultura, doutor em Teologia, catedrático do Seminário de Barcelona, cônego magistral de Tarragona, e autor de várias obras religiosas - esta alegação medieva: "A Igreja Católica é universal, e, sendo esses livros contrários à moral e à fé católica, o Governo não pode permitir que eles pervertam a moral e a religião dos outros países."

            Os livros foram confiscados pelo Santo Ofício, que tomou a si o poder absoluto de juiz e carrasco, sem sequer reembolsar o proprietário no que dizia respeito aos direitos aduaneiros.

            Allan Kardec - declarou Henri Sausse - teria podido levantar uma ação diplomática, obrigando o Governo espanhol a devolver as obras. Mas os Espíritos o dissuadiram disso, aconselhando que seria preferível, para a propaganda do Espiritismo, deixar essa ignomínia seguir o seu curso.

            9 de Outubro de 1861! À esplanada da Cidadela de Barcelona, de triste memória, verdadeira cópia da Bastilha de Paris, erguida no mais florescente bairro da cidade, o de La Ribera, já pela manhã o povo afluía para assistir ao auto-de-fé das publicações espíritas incriminadas pela Igreja. Essa odiosa Cidadela espanhola, de forma pentagonal, com cinco baluartes e rodeada de fossos sobre os quais se lançavam pontes levadiças, fora mandada construir pelo rei Filipe V, em 1716, no terreno ocupado por 1262 casas, casas cuja demolição ele ordenara, após a sua entrada triunfal na cidade semidestruída.

            Na imensa fortaleza, que pelos tempos afora sufocara nas prisões de sua famosa Torre de Santa Clara, ou suprimira pelo cutelo e pela forca, os gritos de liberdade de milhares de barcelonenses, ia ser coroada a obra nefasta de Filipe V.

            O efeito que tal acontecimento produzia nos assistentes era de estupefação em uns, de riso em outros e de indignação entre o maior número. Às palavras de aversão àquele ato arbitrário, partidas de mais de uma boca, misturavam-se as zombarias e os ditos chistosos e mordazes dos que apenas queriam divertir-se.

            De acordo com a descrição que Allan Kardec recebeu de Barcelona, a inquisitorial cerimônia se efetuou com toda a solenidade do ritual do Santo Ofício, às dez horas e meia da manhã, justamente no local onde eram condenados os criminosos à pena de morte.

            Trezentos volumes espíritas substituíam os "hereges" que a Igreja já agora não podia queimar vivos, "hereges" que, no passado, "perfumavam a atmosfera com os aromas dos ossos torrados". Empilhavam-se, silenciosas e impassíveis, as seguintes publicações francesas: "O Livro dos Espíritos", "O Livro dos Médiuns", "O que é o Espiritismo", todas de Allan Kardec; coleções da "Revue Spirite", dirigida e editada por Allan Kardec, e da "Revue Spiritualiste", redigida por Piérard; "Fragmento de sonata", ditado pelo Espírito de Mozart ao médium Sr. Brion Dorgeval; "Carta de um católico sobre o Espiritismo", pelo Dr. Grand, antigo vice-cônsul de França; "História de Joana d'Arc", ditada por ela mesma à Srta. Ermance Dufaux, de 14 anos de idade; e, por fim, "A realidade dos Espíritos demonstrada pela escrita direta", do Barão de Guldenstubbé.

            Presidiu àquele espetáculo de fanatismo um cura revestido dos trajes sacerdotais próprios para o ato, tendo numa das mãos uma cruz, e na outra uma tocha. Acompanhavam-no um notário, encarregado de redigir a ata do auto-de-fé; o ajudante do notário; um funcionário superior da administração aduaneira; três serventes (mozos) da Alfândega, incumbidos de atiçar o fogo; e um agente da Alfândega representando o proprietário das publicações que o bispo condenara ao batismo do fogo.

            A grande multidão, que atravancava os passeios e enchia a vasta esplanada onde se levantara a pira ardente, assistia, espantada, àquele ridículo processo que o século não mais comportava, e, quando o fogo acabara de consumir os trezentos volumes e o cura, com seus auxiliares, se ia retirando, essa mesma multidão cobriu-os com assuadas e imprecações, aos gritos de - "Abaixo a Inquisição!"

            Um certo Capitão Lagier, comandante do grande vapor "El Monarca", teve a oportunidade de presenciar aquele auto-de-fé, e conta ele que, ao ver muitas pessoas se acercarem da fogueira extinta e recolherem parte das cinzas e algumas folhas não inteiramente destruídas, com o objetivo de conservá-las como testemunho da violência clerical, não pode conter-se e exclamou em alta voz: "Eu vos trarei, na próxima viagem de Marselha, todos os livros que quiserdes." E dessa forma, através dos navios que frequentemente aportavam em Marselha, muitos exemplares das obras de Kardec entraram na Espanha, vendidos ou distribuídos gratuitamente pelos comandantes e subordinados.

            Kardec disse ter recebido um punhado daquelas cinzas históricas, nas quais ainda se via um fragmento de "O Livro dos Espíritos", havendo sido ainda presenteado com uma aquarela, feita in-loco por um distinto artista, representando a cena do auto-de-fé. As cinzas e os restos de folhas queimadas, ele as conservou numa urna de cristal, que foi destruída pelos nazistas na 2ª Grande Guerra.

            Com a gravidade, a clareza e a concisão que lhe eram peculiares, o insigne Codificador do Espiritismo escreveu na "Revue Spirite", de 1861, admirável artigo a propósito desse auto-de-fé, mui sensatamente ponderando:

            "Se examinarmos este processo sob o ponto de vista de suas consequências, desde logo vemos que todos são unânimes em dizer que nada podia ter sido mais útil para o Espiritismo. A perseguição foi sempre vantajosa à ideia que se quis proscrever; por esse meio exalta-se a importância da ideia, chama-se a atenção para ela, e faz-se que seja conhecida daqueles que a ignoravam. Graças a esse zelo imprudente, todos na Espanha ouvirão falar de Espiritismo e quererão saber o que ele é, e isto é o que desejamos.      
            "Podem queimar livros, mas não se queimam ideias; as chamas das fogueiras as superexcitam, em vez de extingui-las. Ademais, as ideias estão no ar, e não há Pireneus bastante elevados para detê-las; e quando é grande e generosa uma ideia, encontra milhares de corações dispostos a almejá-la. Façam o que quiserem, o Espiritismo já possui numerosas e profundas raízes na Espanha; as cinzas dessa fogueira as multiplicarão. Não é só na Espanha, porém, que se obterá esse resultado: os efeitos da repercussão do fato o mundo inteiro os sentirá."

            Concluindo, o mestre lionês proclamou:

            "Espíritas de todos os países! não olvideis esta data de 9 de Outubro de 1861. Ela ficará memorável nos fastos do Espiritismo, e que seja para vós um dia de festa, não de luto, porque constitui o penhor do vosso próximo triunfo!"

            Na França, o auto-de-fé das obras espíritas pareceu aos olhos de muitos tão inconcebível naquela época, que certos jornais, às primeiras notícias vindas da Espanha, chegaram, a princípio, a pô-lo em dúvida. Outros, entretanto, como o "Siécle" de 14 de Outubro, levaram o caso, sério e lamentável sob qualquer aspecto, para o gracejo e a comicidade, havendo ainda os que dele se desinteressaram inteiramente, ou que apenas se limitaram a registar o fato.

            Na Espanha, contudo, a imprensa em geral profligou aquele bárbaro ato de cego fanatismo religioso, e apenas um que outro periódico o aplaudiu, como o "Diario de Barcelona". 'Esta folha ultramontana, a primeira que noticiou a celebração do auto-de-fé, enodoou as suas colunas, ao dizer: "Os títulos dos livros queimados bastam para justificar a sua condenação; está no direito e no dever da Igreja fazer respeitar a sua autoridade, tanto mais quanto maior for a liberdade de imprensa, principalmente nos países que gozam da terrível praga da liberdade de cultos."

            "La Corona", periódico também barcelonense, dissentindo do "Diario de Barcelona", sai a campo em defesa do livre pensamento e fornece ao público extenso relato dos sucessos, afirmando que os partidários do Governo estavam mais desgostosos com o auto-de-fé do que aqueles que lhe faziam oposição.

            Os dois trechos a seguir, extraídos do mencionado jornal, interpretam o desagrado da maioria do povo barcelonês, ante aquela reminiscência dos "quemaderos" da Santa Inquisição:

            "Os sinceros amigos da paz, do princípio de autoridade e da Religião se afligem com essas demonstrações reacionárias, porque eles compreendem que às reações sucedem as revoluções, e sabem ainda que "quem semeia ventos só pode colher tempestades". Os liberais sinceros se indignam de semelhantes espetáculos dados por homens que não compreendem a Religião sem a intolerância, e a querem impor como Maomet impunha o seu Alcorão.
            "Guardamo-nos de emitir opinião sobre o valor das obras queimadas. O que vemos é o fato, suas tendências e o espírito que revela. Daqui em diante, em que diocese se absterão de usar, se não de abusar, de um poder que, ao nosso juízo, nem mesmo o Governo o tem, se, em Barcelona, na liberal Barcelona, assim procederam?
            "O absolutismo é bem sagaz: ele tenta dar um golpe de força em alguma parte, se é bem sucedido, atreve-se a mais. Esperamos, todavia, que os esforços do absolutismo serão inúteis, que quantas concessões se lhe façam não terão outro resultado que o de desmascarar o partido que, renovando cenas quais a de quinta-feira última, mais rápido se precipitará no abismo para onde corre cegamente.
            É o que depreendemos do efeito que esse auto-de-fé produziu em Barcelona."

            Um dos grandes jornais de Madrid, em seu número de 19 de Outubro de 1861, expressava-se dessa maneira, em longo artigo:

            "O auto-de-fé celebrado há alguns meses na cidade de La Coruña, onde foi queimada grande quantidade de livros à porta de uma igreja, havia causado em nosso espírito, e no de todos os homens de ideias liberais, tristíssima impressão. Mas é com indignação bem maior que foi recebida em toda a Espanha a notícia do segundo auto-de-fé, solenizado em Barcelona, nessa capital civilizada da Catalunha, no seio de um povo essencialmente liberal, a quem se fez tão bárbaro insulto, certamente porque nele reconheceram grandes qualidades."

            Não só entre as criaturas encarnadas o auto-de-fé alcançou repercussão. Da Espiritualidade igualmente vieram vários comentários sobre o acontecimento, dados espontaneamente na "Sociedade Parisiense de Estudos Espíritas", a que Allan Kardec
presidia.

            Um deles, assinado por um certo Dollet, que disse ter sido livreiro, afirmava em certo ponto:

            "Quanto mais perseguições sofrer o Espiritismo, mais velozmente esta sublime doutrina chegará ao seu apogeu", terminando com estas palavras: "Tranquilizai-vos; as fogueiras se extinguirão por si mesmas, e, se os livros são lançados ao fogo, o pensamento imortal lhes sobrevive."

            Outro Espírito, que se manifestou com o nome de S. Domingos, provavelmente o fundador da Ordem dos Dominicanos, explicava a importância daquela ocorrência para a propaganda do Espiritismo:

            "Era preciso alguma coisa que sacudisse certos Espíritos encarnados, a fim de que eles se decidissem a ocupar-se dessa grande doutrina que há de regenerar o mundo."

            De ambos os lados da vida as inteligências mais perspicazes prenunciavam, como consequência do auto-de-fé, um impulso inesperado das ideias espíritas na Espanha e mesmo no mundo todo. Isto realmente sucedeu. A atenção de muita gente, que nunca ouvira falar de Espiritismo, convergiu para o "fruto proibido", sobretudo pela importância mesma que a Igreja lhe dispensava. "Que podiam, pois, conter esses livros, dignos das solenidades da fogueira?" E a curiosidade abriu, assim, para inúmeras mentes, um novo mundo até então delas desconhecido.

            Como bem destacava Allan Kardec, ao se referir a essas perseguições, "sem os ataques, sérios ou ridículos, de que é alvo o Espiritismo, contaria este com um número dez vezes menor de adeptos". A Espanha não desmentiu essa observação do Codificador, e mais de um adversário reconheceu isso, deplorando o ato em que a Religião Católica nada teve a ganhar.

            Precisamente nove meses após o auto-de-fé de Barcelona, que fora seguido por um outro, na cidade de Alicante, desencarnou, a 9 de Julho de 1862, o Dr. Antonio Palau y Termens, o bispo que tentara consumir pelo fogo o ideal espiritista.

            Esse príncipe da Igreja dias depois se manifestava inesperada e espontaneamente a um dos médiuns da "Sociedade Parisiense de Estudos Espíritas", respondendo com antecedência a todas as perguntas que desejavam fazer-lhe, e antes que fossem enunciadas.

            Entre outras, a comunicação contém esta bela passagem:

            "Auxiliado pelo vosso chefe espiritual, pude vir instruir-vos com o meu exemplo e dizer-vos: Não repilais nenhuma das ideias anunciadas, porque um dia, um dia que durará e pesará como um século, essas ideias entesouradas clamarão como a voz do anjo: Caim, que fizeste do teu irmão? que fizeste do nosso poder, que devia consolar e elevar a Humanidade? O homem que voluntariamente vive cego e surdo de espírito, como outros o são do corpo, sofrerá, expiará e renascerá para 1'ecomeçar o labor intelectual que sua indolência e seu orgulho o fizeram esquecer. E essa voz terrível me disse: Queimaste as ideias, e as ideias te queimarão.

................................................

            "Orai por mim; orai, porque é agradável a Deus a oração que a Ele dirige o perseguido a bem do perseguidor.

            "O que foi bispo e que agora mais não é do que um penitente."

            Allan Kardec remeteu a mensagem completa a José Maria Fernández Colavida - a quem se deve a primeira tradução para o castelhano das obras fundamentais do Codificador e o estabelecimento da primeira Livraria espírita de Barcelona -, avisando-o de que o Espírito do bispo, Dr. Palau, estaria presente quando ela fosse lida no Centro, o que de fato sucedeu, segundo a declaração dos médiuns videntes, mui especialmente a de um jovenzinho, que tinha excelente clarividência.

            O bispo manifestou-se ali a, depois de incentivar a todos, profetizou que na Cidadela cedo se cultivariam jardins, os quais de certo modo apagariam as tristes recordações do lugar onde tantos crimes se perpetraram.

            Anos mais tarde, em 1869, atendendo a instâncias do povo de Barcelona, o Governo decretava a demolição da velha fortaleza, em cujos terrenos foram construídos os belos jardins do Parque da Cidadela, ou Parque Municipal, que chegou a ocupar uma área de 307667 m2. Sobre ele escreveu um cronista do século XIX:

            "Cruzado por frondosos paseos, anchurosas glorietas, bosques de encantadora perspectiva, fuentes, lagos, cascadas, grutas, etc., es un maravilloso sitio de recreo, donde la magnolia y el álamo, el tilo, y el geranio y el pino y el naranjo y mil variedades de flores y arbustos y gigantes árboles crecen y se desarrollan maravillosamente y con increíble profusión. En este Parque, donde todo es espléndido, donde todo es grandioso..."     

            Cumprira-se a profecia do Espírito do bispo! Do antigo conjunto de edifícios bélicos surgira belíssimo Parque, muito frequentado pelas crianças e pelos velhos, e que foi, em 1888, pacífico recinto para célebre Exposição Universal.

            Embora a Espanha continuasse oprimida pela mão forte do romanismo, que, inimigo declarado da liberdade e do progresso, não se cansava de granjear a animadversão pública para os espíritas, assoalhando pela imprensa, pregando de seus púlpitos que o Espiritismo não passava de uma doutrina malsã, inspirada pelo diabo, apesar de tudo isso, cresceu ali o número de adeptos, de todas as classes sociais, ampliando-se, de maneira bastante significativa, a propaganda, tanto que a Espanha chegou a ser, ainda no século XIX, a nação europeia com maior abundância de periódicos espíritas e com a mais vasta bagagem de obras publicadas.

            Aos infatigáveis e gloriosos pioneiros como Fernández Colavida, Manuel González Soriano, Manuel Sanz y Benito; Joaquín Bassols y Marañon, César Bassols, José Amigó y Pellicer, Joaquín Huelbes Temprado, Fernando Primo de Rivera, Salvador Sellés Gosálvez, Antonio Torres-Solanot y Casas, Manuel Ansó y Monzó, Amalia Domingo y Soler, Francisco Loperena, Miguel Vives e tantos e tantos outros venerandos discípulos de Kardec, se juntaram com o correr dos tempos os nomes não menos gloriosos de Antonio Hurtado y Valhondo, José de Navarrete y Vela-Hidalgo, Dámaso Calvet de Budallés, Facundo Usich, Quintin López Gómez, Juan Torras Serra, Jacinto Esteva Marata, Jacinto Esteva Grau, López Sanromán, José Maria Seseras y de Battle e muitos mais, que com desassombro lutaram e sofreram para manter vivos os sublimes ideais da Terceira Revelação.

            Em 1888, quis o Destino que justamente a Barcelona, "cabeça e coração da Catalunha", onde se consumara o primeiro auto-de-fé contra obras espíritas, coubesse a honra de celebrar o "Primeiro Congresso Espírita Internacional", cuja alma principal foi o Visconde de Torres-Solanot, a figura apostolar do Espiritismo na Espanha.

            Por ocasião do quarto centenário do descobrimento da América, em 1892, realizou-se, agora em Madrid, o 3º Congresso Espírita Internacional, que, por ter sido organizado um tanto tardiamente, não pode apresentar o brilho dos anteriores.

            Em Setembro de 1932, a "Federación Espírita Española" dirigiu ao povo barcelonês longa mensagem de esclarecimento e, ao referir-se ao auto-de-fé de 1861, salientou:

            "A Federação Espírita Espanhola diz hoje ao público de Barcelona, e ao de todo o mundo, que aquela fogueira histórica, em vez de prejudicar o Espiritismo, lhe fez um bem, qual o de lhe impulsionar, como que por um passe de mágica, o desenvolvimento, fato que podemos demonstrar, dando a conhecer que, se então apenas existiam nesta cidade dois ou três pequenos grupos espíritas, atualmente, em Barcelona e na província de que é ela a capital, se contam mais de vinte sociedades, devida e legalmente constituídas, e cerca de uma centena no resto do país."

            A prova maior do progresso do Espiritismo na Espanha foi dada em 1934. Nesse ano, celebrou-se em Barcelona, no grandioso salão do "Palacio de Proyecciones", o 14º  Congresso Espírita Internacional, o segundo verificado naquela cidade.

            Grande repercussão junto aos meios católicos teve esse conclave, do qual participaram representantes espíritas de todas as partes do Mundo, inclusive representações do Governo da Catalunha e da Municipalidade de Barcelona.

            Amadeo Colldeforns, deputado do Parlamento catalão, falando em nome do presidente da Generalidade de Catalunha, enalteceu o belo movimento de amor e fraternidade dos espiritistas, declarando, ainda, que à Humanidade se oferecia, através daqueles estudos, a demonstração clara e convincente da sobrevivência humana. Suas palavras finais, dirigidas a todos os congressistas, foram estas:

            "Deus permita que possais conseguir grandes vitórias dentro desse campo de estudo e experimentação vastíssimo, e que estes triunfos vos facilitem o trabalho de emancipação espiritual da Humanidade. Eu vos auguro estes triunfos, porque caminhais acompanhados da ciência que vos faculta o controle e a demonstração desses fenômenos espíritas, demonstração científica essa com que podereis alcançar a vitória completa dos vossos ideais e das vossas humanitárias aspirações, contra a indiferença dos homens."

            Triunfos foram realmente conseguidos em várias nações, especialmente no Brasil, onde o Espiritismo tomou um alento deveras surpreendente. Na Espanha, porém, aglutinaram-se as forças das Trevas para uma investida destruidora contra os alevantados ideais de paz e fraternidade, de liberdade e igualdade, pregados e exemplificados pelos espiritistas.

            Aquela parte da península ibérica pouco depois do referido Congresso entrava num terrível período de lutas intestinas. Duas facções contrárias, respectivamente constituídas pela Frente Popular, de fundo socialista-comunista, e pela Falange Espanhola, de fundo fascista, dividiam a nação em 1936. Entrechocavam-se as forças da direita com as da esquerda. Irrompia uma nova "época do terror". Excessos de toda a sorte eram cometidos, tendo sido incendiadas e saqueadas dezenas de igrejas e centros religiosos, com o cruel assassínio de milhares de sacerdotes.

            A guerra civil progride com inominável violência. Põe-se à frente da Falange Espanhola o "caudillo" Francisco Franco, com o apoio de todo o clero católico.

            Barcelona, "patria de los valientes", é duramente bombardeada, sendo afinal invadida pelas tropas falangistas. A sangrenta luta fratricida, que em várias ocasiões assume aspectos verdadeiramente trágicos, vai dando vitórias ao Generalíssimo Franco, que, em discurso pronunciado em 1938, já evidenciava claramente o caminho que o seu governo iria tomar: "É preciso reafirmar o fundo sentido e a fé religiosa que acompanhou, desde as suas origens, o povo espanhol e que, capítulo por capítulo, ficou impressa em sua História. Com rapidez e energia se fará, pois, a revisão de toda a legislação laica que pretendia inutilmente apagar de nossa Pátria o seu profundo e robusto sentido católico e espiritual."

            Passo a passo, ainda durante a guerra, à Igreja Católica de Espanha foram sendo concedidos inúmeros dispositivos de franca regalia. Privilégios, vantagens, poder e imunidades vieram entronizar o clero, resultando no cerceamento total aos direitos das demais religiões.

            Terminada, em 1939, a dolorosa guerra civil, o Generalíssimo Franco se torna o senhor absoluto e vitalício da Espanha, chefe único da Falange, enaltecido e abençoado pelos Papas Pio XI e Pio XII.

            Apoiada a César, a Igreja Católica passa a ser a senhora absoluta da veneranda Pátria de Fernández Colavida (o Kardec espanhol), com a abolição da liberdade de crença e de outras liberdades tão caras ao homem livre. Aos espíritos divergentes, ela exigia a adesão, ou o silêncio.

            Em 27 de Agosto de 1953, mediante a Concordata assinada entre a Santa Sé e o Governo, ficou reafirmado que a Religião Católica, Apostólica, Romana, continuaria a ser a única da nação espanhola, reconhecendo-lhe o Estado o caráter de sociedade perfeita e a personalidade jurídica internacional da Santa Sé e do Estado da Cidade do Vaticano.

            Esta Concordata, que, como todas as demais, é "um pacto leonino em que a Igreja empresta ao despotismo o seu prestígio, e o despotismo vende à Igreja a soberania civil", acabou, afinal, através de uma série de artigos monopolizadores da liberdade de consciência, por entregar a Espanha às mãos do clericalismo. Hoje, é ela, em verdade, um vasto convento...

            Há mais de vinte anos que o Espiritismo ali se acha sacrificado às forças intolerantes e opressoras, impedido de vir à luz, eclipsado nas sombras do ultramontanismo. Sendo, porém, "um livro imenso aberto nas alturas", conforme a feliz expressão do grande poeta alicantino, Salvador Sellés, o Espiritismo só aparentemente se detém ante o obscurantismo dos homens. Temos fé que chegará, mais cedo do que se espera, a sua hora de libertação,
pois, como disse com sabedoria o nosso grande Rui Barbosa, "de todas as liberdades sociais, nenhuma é tão congenial ao homem, e tão nobre, e tão frutificativa, e tão Civilizadora, e tão pacífica, e tão filha do Evangelho, como a liberdade religiosa".

            O Espiritismo, na Espanha bela e nobre, está curtindo os amargos transes de um prolongado auto-de-fé. Quando nos horizontes ibéricos raiar a aurora da liberdade, qual fênix renascida dentre as cinzas o Espiritismo ressuscitará na valorosa Pátria de Cervantes, para novos voos de gloriosa jornada emancipadora do espírito humano.

            Do Blog: Francisco Franco desencarnou em 20 de Setembro de 1975. O processo de democratização começou em 1966. Juan Carlos, ainda príncipe, foi apresentado como sucessor de Franco em 1969. Juan Carlos é neto de Afonso XIII.

            Da Wikipédia anotamos:  A maior parte da população da Espanha (76.0%) se declara católica, embora a porcentagem de praticantes é muito inferior. Os 20.3% da população não se reconhece em nenhuma religião (definindo-se como ateus ou não crentes). Existem também minorias muçulmanas, protestantes e ortodoxas, cujo número foi-se incrementado recentemente devido à imigração (que somam em torno de 2,1% da população), assim como outros grupos, como judeus, budistas, baha'is ou mórmons, entre outros. Entretanto, a população espanhola é atualmente pouco praticante em seu conjunto: segundo uma pesquisa realizada pelo CIS em julho do ano 2009, 58,2% dos auto definidos como crentes de alguma religião dizem não ir a missa ou a outros ofícios religiosos nunca ou quase nunca e os 17,0% dizem ir várias vezes ao ano, enquanto 13,3% dizem acudir a ofícios religiosos quase todos os domingos e dias festivos, com uns 2,0% indo várias vezes por semana.

            Ainda da Wikipedia: O Artigo 16 da Constituição espanhola, diz que: Garante a liberdade ideológica, religiosa e de culto dos indivíduos e as comunidades sem mais limitações, em suas manifestações, que a necessária para a manutenção da ordem pública protegida pela lei.
            Ninguém poderá ser obrigado a declarar sobre sua ideologia, religião, crenças ou tráfico.
            Nenhuma confissão terá caráter estatal. Os poderes públicos terão em conta as crenças religiosas da sociedade espanhola e manterão as conseguintes relações de cooperação com a Igreja Católica e as demais confissões.
            Esse artigo da constituição espanhola foi fruto de um consenso para solucionar a questão religiosa na política, abandonando a forma da confessionalidade do Estado, tradicional na história espanhola.”






Os Autos-de-fé cotidianos

Leopoldo Cirne
por W Vieira
Reformador (FEB) Outubro 1961


            Moisés foi o portador da Primeira Revelação; Jesus nos trouxe a Segunda; Allan Kardec codificou o Espiritismo - a Terceira Revelação -, que divulga os elevados propósitos dos Pioneiros da Luz, e que se impessoalizou para ultrapassar o âmbito individual em direção à Humanidade Maior.

            Na manhã de 9 de Outubro de 1861, aqueles que crucificaram o Senhor - os fariseus de todos os tempos -, não podendo então sacrificar alguém para sufocar a nova ordem de ideias, afoitaram-se em carbonizar-lhe os repositórios em forma de livros. Assim, o Auto-de-fé em Barcelona surge às nossas considerações como sendo a primeira crucificação do Consolador, no ataque inquisitorial contra as obras dos precursores.

            Queimaram-se apenas alguns corpos da ideia para que as almas da ideia se libertassem... As chamas que consumiram os livros, avivadas pelas mãos do carrasco, na praça pública, saltaram de alma em alma, a crepitar por centelhas de ideal renovador, ateando o fogo da verdade, de consciência a consciência, e a luz dessa fogueira resplende sempre mais, vitoriosa e irradiante, atraindo e cingindo legiões de criaturas.

            Da esplanada em que se flagelavam os criminosos, os trezentos volumes incinerados, quais flamas redivivas, se multiplicaram aos milhões nos idiomas do mundo inteiro.

            A Causa Espírita é imperecível: ninguém pode abafar a fé raciocinada. O seu ensinamento instrui pelos fatos da Vida Imortal. O Espírito sopra onde quer. Asfixiada a voz da realidade, hoje e aqui, amanhã e em toda a parte alçar-se-á mais potente por milhares de outras bocas.

            Mas, em pleno Centenário do Auto-de-fé, é natural relembremos também os pequeninos autos-de-fé cotidianos que forjamos por nossa imprevidência, queimando, através de ações a desmentirem convicções, os ensinos da Doutrina Libertadora que nos fortalecem as almas.

            O Espiritismo é o Fanal da Imortalidade que recebemos de nossos antecessores do Espaço ou do Plano Físico, mensagem de consolação que nos cabe levar adiante, de ânimo inarrefecível, clareando o caminho. Empunhemos o facho sublime de esperança no rumo da Nova Terra - a Terra da Regeneração!

            Sigamos esses mesmos livros que foram calcinados há um século é que, não raro, repontam moralmente destruídos por nossa conduta inadvertida e contrária aos ditames amorosos do Cristo.

            Recomendou o Mestre: "Brilhe a vossa luz diante dos homens, para que vos vejam as boas obras e glorifiquem o Pai que está no Céu."

            Recorda que serás sempre, onde estiveres, a lição ambulante do Espiritismo. És a síntese viva da Codificação! Se o templo espírita consola, o teu coração testemunha! Se a tribuna espírita esclarece, a tua palavra conduz! Se o livro espírita ilumina, o teu exemplo é a força que arrasta!





Um auto-de-fé
Amalia Domingo Soler
Reformador (FEB) Outubro 1961

Quemaron los libros? - Sí;
los dejaron hechos trizas.
- No importa, de sus cenizas
cuántas llamas brotar ví!

Puede quemarse el papel,
más lo que en él había escrito
grabado en el infinito
dejó del tiempo el cinzel.

Los libros los destruyeron,
pero su esencia quedó;
Ia, materia se quemó,
pero Ias ideas vivieron.

Pueden de un modo cruento
destruirse cuerpos y cosas;
pero quedan vigorosas
Ias alas del pensamiento.

No alcanza un auto de fe
a destruir lo inmaterial;
hay un algo potencial
que se siente y no se vé.

De Ia grandiosa enseñanza
de Kardec nada hay perdido;
que el fuego no ha destruído
ni el amor, ni Ia esperanza.

No importa, pues, que hecho trizas
los volúmenes quedaran;
y a gran altura volaran
sus impalpables cenizas.

Lo que no puede morir
resiste el poder del fuego;
y está loco y está ciego
quien 10 quiera destruir.

Kardec, tus libros sagrados
a polvo los redujeron;
pero sus cenizas fueron
el pan de los desgraciados.

Muchos que querían morir
los hiciste progresar;
y llegaron a esperar
en Dios y en el porvenir .

. Gloria, Kardec! Gloria a ti...
tú calmaste mís congojas;
de tus libros en Ias hojas
mundos de luz brotar ví!

(Extraído da revista barcelonesa “La Luz del Porvenir")




Kardec
e o auto-de-fé em Barcelona
Vianna de Carvalho
por Divaldo Franco
Reformador (FEB) Novembro 1961

            A manhã de nove de Outubro surgiu perfumada e radiosa.

            Na esplanada de Barcelona, 300 exemplares de livros e opúsculos devem morrer.

            A Idade Média ainda se demora na dourada terra de Espanha. O Santo Ofício trucida e envenenado pela intolerância, sentindo o soçobro que se aproxima, destila ódio e violência, tentando manter a soberania.

            A autoridade eclesiástica lê o libelo burlesco.

            Archote fumegante aparece e, em breve, ousadas línguas de fogo transformam-se em labaredas, devorando as páginas grandiosas dos livros libertadores.

            Temperamentos audazes atiram-se sobre as chamas que diminuem de intensidade, e arrancam páginas chamuscadas que se transformarão em documentos preciosos do crime. Emocionado pintor, desejando eternizar o ato de barbaria sob a inspiração do momento, regista em cores e traços vigorosos o atentado à liberdade de consciência.

            As cinzas e a tela são endereçadas ao Codificador.

            Em Paris, Kardec dobra-se sob o peso da própria dor.

            O gigante lionês tem a alma ferida. O vigoroso coração, parecido a corcel fogoso, agora exaurido, trabalha dominado pelo gigantismo do sofrimento.

            Mentalmente, recorda a figura martirizada de João Huss, o Apóstolo queimado vivo no século XV por sentença do concílio de Constança, apesar do salvo-conduto que o imperador Sigismundo lhe havia dado...

            A impiedade e o despotismo da fé em decadência queimá-la-iam agora, Se o pudessem. E nessa impossibilidade tentam destruir lhe a obra, já que nada podem contra as ideias.

            Todavia, recolhido à oração salutar, parece lhe escutar as Vozes dos Céus - aquelas mesmas que o conduziram na compilação dos primeiros trabalhos - que lhe dirigem expressões de alento e vigor.

            “Ninguém poderá destruir o edifício da Fé imortalista - tem a impressão de ouvir na intimidade da mente.
            "Os imortais estão de pé no campo de batalha.
            “A Doutrina Espírita é Jesus Cristo de retorno aos corações, acolitado pelas legiões dos Espíritos Eleitos, abrindo as portas para o acesso à verdadeira vida.
            “É mister que o trabalhador experimente o suplício e tenha os braços atados à cruz dos testemunhos necessários, para que Ele triunfe.
            "Jesus não se fizera respeitar pelos contemporâneos, e através dos tempos, pelo que ensinou, mas pelo legado da renúncia e do sacrifício.
            “Assim também, a Doutrina Espírita, reivindicando as luzes da Imortalidade do Senhor e da renovação dos conceitos evangélicos na Terra, deveria experimentar o guante das mesmas dilacerações... "

            Era indispensável sofrer de pé, confiando, imperturbável...

            Allan Kardec, vitalizado pelo fluxo da misericórdia divina e encorajado pelo tônus celeste, levanta-se, outra vez, fita os cimos dourados que a vida lhe reserva, renova as disposições do espírito e, jubiloso, continua a luta.

            A Doutrina Espírita se lhe afigura, então, um anjo de luz dilatando as asas sobre a Terra inteira e vestindo-a de claridade...

*

            Mestre! Cem anos depois de Barcelona, o Brasil, que te guarda a mais profunda gratidão, ergue-se em louvor, através das mil vozes dos beneficiários do teu carinho, para te agradecer os sacrifícios.

            Contempla, dos Altos Cimos, a colossal legião de servidores do Cristo, seguindo as tuas pegadas e espargindo o aroma da tua mensagem, em toda a parte,

            Barcelona vive em nossos corações reconhecidos.

            As obras incineradas se multiplicaram e levam a mensagem vibrante dos Espíritos da Luz à Humanidade toda.

            Ninguém pode paralisar tuas mãos no sacerdócio da escrita nem força alguma silenciou os teus lábios no ministério da pregação...

            Quando a corpo se negou a prosseguir contigo, extenuado pelo trabalho infatigável, já o mundo compreendia a Mensagem de Jesus com que enriqueceste a Terra.

            E hoje, quando ameaças se levantam em toda a parte, dirigidas à paz das criaturas, em forma de intranquilidade e pavor, a Doutrina que nos legaste, como bandeira de vida, é o penso consolador nas mãos de Jesus-Cristo, medicando as feridas de todos os corações.

            Glória a ti, desbravador do Continente da Alma!

            A Humanidade espiritista, renovada e feliz, edificada no teu trabalho eficiente, rende-te o culto da gratidão e do respeito.

            Salve, Allan Kardec, no dia Nove de Outubro, cem anos depois de Barcelona!