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quarta-feira, 31 de março de 2021

Simples tributo

 


  Simples tributo 

(...a Pedro Richard por ocasião de seu desencarne)

por Geminiano Barboza

Reformador (FEB) Novembro 1918

 

            Prezado irmão... Prevista estava a tua breve partida: e Deus o sabe quanto sentimos não poder de algum modo auxiliar-te em teus últimos momentos.

            Não foi surpresa para nós o teu passamento, tua migração espiritual; foi apenas motivo de saudade e alarme à nossa gratidão, da qual tão nobre e dignamente te fizeste credor... Jamais esquecerá o signatário destas linhas a frase paternal e consoladora que em certo delicado momento lhe dirigiste:

            “- O fazer bem é sempre fácil, quando há boa vontade; custa tão pouco!"

            Pois bem; de homem a homem, não passei de um mal amigo, um ingrato!.. Deixa, pois, que te fale hoje de Espírito a Espírito, certo de que me compreenderás.

            Não se trata de um panegírico, fantasia de que não carece teu Espírito que, mercê de Deus, soube colocar-se muito acima do convencionalismo humano; isto nada mais representa que “simples tributo de gratidão”, que meu irmão certamente não recusará, agora que melhor poderá perscrutar a sinceridade do coração humano.

            Partiste!.. Nós ficamos, preenchendo nosso destino... Praza aos Céus que os teus bons exemplos de espírita convicto e disciplinado possam aproveitar a nós outros, tão sujeitos ainda às fracas contingências da matéria... Que ao menos os sirva de incentivo a tenacidade e dedicação com que te entregavas ao santo labor, no cultivo da Vinha do Senhor, no desdobramento da bendita Seara de Jesus.

            Partiste!.. Mas partiste triunfante, porque, na humildade do teu Espírito, na docilidade de teu coração e na fé inquebrantável que conservaste até ao fim; encontraste sempre a energia, a paciência e a resignação de que precisavas para vencer a tua prova final!

            Partiste!.. Mas as bênçãos daqueles a quem consolaste, a quem amparaste, a quem serviste, voam em turbilhão para o teu Espírito; impelindo-o para o Alto!

            Felizes os que partem como tu, deixando como única dor a dor da saudade e como único sentimento o da gratidão.

            Pedro Richard, que a paz de Jesus seja contigo e a benção do Pai celestial baixe sobre o teu Espírito, eis o voto do teu irmão.

segunda-feira, 29 de março de 2021

Os mais novos argumentos contra Roustaing

 Bezerra de Menezes

 Os mais novos argumentos contra Roustaing

por Luciano dos Anjos

Rio de Janeiro - 1990

Jean-Baptiste Roustaing: Nascimento: 15 de outubro de 1805

Desencarne: 2 de janeiro de 1879 (73 anos)

Luciano dos Anjos: Nascimento: 14 de fevereiro de 1933

Desencarne: 3 de maio de 2014 (81 anos)

Newton Boechat: Nascimento: 25 de julho de 1928

Desencarne:  22 de agosto de 1990 (62 anos)

Carlos Imbassahy: Nascimento: 9 de setembro de 1883

Desencarne: 4 de agosto de 1969 (85 anos)

Zêus Wantuil: Nascimento: 6 de outubro de 1924

Desencarne: 1 de setembro de 2011 (86 anos)

Wilson Garcia: Nascimento: 1949.

 

Dedico este folheto à memória do inesquecível tribuno Newton Boechat, 

um dos mais ardorosos defensores da obra de Roustaing.

             (Enquanto redijo este folheto, estou recebendo a notícia da desencarnação do meu grande amigo Newton Boechat, meu companheiro no Grupo dos oito e um dos maiores tribunos espíritas, competente defensor de J. B. Roustaing. Dedico a ele, portanto, este modesto trabalho. Sei que vai gostar.)

            Passaram-me às mãos um exemplar do “Correio Fraterno do ABC”, de São Paulo, que circulou em julho último, no qual há uma inserção de dois longos artigos abordando a questão do corpo fluídico de Jesus. O primeiro é tão débil que, apesar do tamanho, quase escapa despercebido. Expõe a própria ab-reação desgostosa do proteu Henrique Rodrigues, antigo devoto de Roustaing; e, pelo visto, lhe revela também o repúdio tardio ao fundador do Cristianismo, a quem nivela ou subordina às figuras menores do orientalismo. (“O Livro dos Espíritos” não lhe é nada familiar, pois desconhece toda a clareza da questão 625.) Tenho arquivados os arquivos anteriores, nos quais ele argumentava na defesa do corpo fluídico de Jesus. Agora, em dramática confissão, renega a velha crença, que teria abraçado porque ex-amigos o enganaram (?!). No entanto, quem o leu outrora se dá conta de que, antes, ele era bem mais convincente; atualmente, está aturdido nas mesmas entediantes razões dos patéticos inimigos de Roustaing, que jamais leram a obra ou, se a leram, nunca a entenderam, em sua habitual paralexia. Pois são estes que acabam de cooptar uma nova voz, para ampliar a barulhenta cacofonia de sempre, irresistivelmente desafinada. A fim de impressionar seus leitores, o articulista narra, em português macarrônico (“frequentemente frequentado”), as mudanças de opinião que andou fazendo pelo caminho de seus alvorotados estudos. São tantas as mudanças, que ninguém pode ter certeza de que agora, ele tenha acertado. Será que os amigos de hoje não o estão enganando também? Não duvido nada de que, com mais uns anos de encarnação, ele retorne serelepe a Roustaing, quando perceber seu papel de “grand raté (*) (reprovado) ... Seja como for, o repertório é muito fraco e não vale maior atenção. Já me estendi até demais.

                               (*) Todos os grifos são do autor.

 

             Quanto ao segundo artigo do jornal, é corroborado por um box, de bom tamanho, em que eu sou citado nominalmente. De algum tempo a esta parte, não me tenho preocupado em replicar as “sottises” (absurdos) tautologicamente (redundantemente) veiculadas pelos antagonistas de Roustaing, todas elas já definitivamente atomizadas pela rigorosa lógica de “Os Quatro Evangelhos”. No entanto, desta feita, afinal, apareceu um “reforço” através do qual se pretende desmoralizar a obra com a informação – que teria sido prestada por mim mesmo – de que ela “encalhou” e foi “um fracasso editorial na França”. Bem, esse contraponto realmente é novo e visa, sem mais dúvida, a oxigenar a campanha que, por ridícula e ineficaz, vinha se depauperando, com o passar dos anos. E por ser novo, talvez valha a minha disposição de reaquecer as teclas da velha máquina de escrever, ou do redator dos acréscimos explicativos colocados no box (não sei se, apesar do tom, a mesma pessoa redigiu os dois). Certo é que essa denúncia do “encalhe” surgiu em 1981, no bojo do livro “O Corpo Fluídico”, de Wilson Garcia, precedido de um texto atoleimado de Jorge Rizzini. Ali se introduziu, ainda, um arremate épico, sobre a “a falsa conversão do Dr. Carlos Imbassahy”. Tirante esses dois enfoques, tudo o mais, no livro, é carbono dos que apareceram antes, sem nenhuma novidade (tenho-os todos, em minha biblioteca particular). No meu trabalho “A Posição Zero” há um capítulo especial analizando as obras que atacam Roustaing. A de Wilson Garcia, embora repetitiva, não podia ser relegada e ali eu a reduzo à sua real desentoação. O autor, pelo que me informam (não o conheço pessoalmente), é ainda muito jovem. Sendo espírita, devo presumir que é um homem de bem. Mas, tendo resolvido entrar na liça como um novo campeão, logo se viu que suas melhores lições ele as aprendeu com Herculano Pires, o herói que, nesse assunto, mais mentiu e mais deturpou a verdade. Era o autêntico Rambo do anti-rustenismo, cujos escritos sempre acompanhei com o mitológico bom humor do carioca, inclusive suas empolgadas pregações do marxismo.  De qualquer forma, eis que o autor de “O Corpo Fluídico”, desviando-se do rotineiro dejavismo (do Google: ‘déjà-vu’ = ilusão que ocorre na memória e faz com que uma pessoa acredite já ter visto ou vivido alguma coisa, ou circunstância, nova e que nunca chegou a acontecer), afinal acrescentou algo de novo á discussão: a obra de Roustaing encalhou; e Carlos Imbassahy não era mesmo rustenista. Da primeira novidade aproveitou-se, célere, o redator do jornal paulista. Há mais de quarenta anos milito no movimento espírita e nunca havia sequer ouvido falar no nome de Antonio Espeschit, que assina o artigo, fortalecido com o box alusivo a mim. No entanto, ganhou dua amplas páginas, com ilustração, para escrever sobre o docetismo (do grego dokein. Afirma que Jesus apenas aparentava ser humano) Nesse passo, mostra-se bastante preocupado com a bibliografia citada por Zêus Wantuil, no Apêndice ao livro “Elos Doutrinários”, de Ismael Gomes Braga, a qual considera muito raquítica. E então, apresenta a sua, numa coluna de alto a baixo, destinada a sustentar o triunfalismo da sua autoridade de pantólogo (diz-se de quem sabe tudo).  

  Ismael Gomes Braga

            É óbvio que é sempre bom e legítimo conhecer as fontes de qualquer trabalho. Mas é melhor, ainda, que esse trabalho traga substância á altura das fontes, além de ser conveniente não se perder a noção de proporção. Mo caso presente, o autor leu muito (será que assimilou?), mas não acrescentou nada àquilo que todo mundo já conhece a respeito do docetismo. Aliás, com tanta bibliografia, com tanto conhecimento, acabou se tumultuando todo e confundindo Marcion com Bardesano, como se fossem a mesma pessoa... E, em última análise, que é mesmo que pretendeu? Simplesmente anunciar, com base nas suas 35 fontes, que as ideias do docetismo se encontram nas páginas de “Os quatro Evangelhos”. Ora, descobriu a pólvora, 2000 anos depois dos chineses... Todo o seu histórico, de cerca de 2400 palavras (fora o box e a bibliografia), é para dizer o que todo mundo já disse, em evidente exagero culturalista. (Curioso é que não aparece, na sua bibliografia, a obra de Roustaing, o que faz desconfiar de que não a tenha lido, como todos os que a combatem gratuitamente. E, mais do que curioso, é decepcionante que também não conste a mais moderna e considerada a mais importante obra sobre o assunto: ”The Gnostic Gospels”, de Elaine Pagels, 1979, traduzida por Carlos Afonso Malferrari (“Os Evangélicos Gnósticos”). Nosso articulista precisa, urgentemente, atualizar a sua heurística... (investigação)). Como seu colaborador de uma Enciclopédia de volumes, imagine o leitor em que tentação me vejo, nesses instante, de juntar a este simples artigo uma bibliografia com as centenas de autores que li, só porque o filósofo jônio Anaximandro, por exemplo, também concebeu o Universo visível mais ou menos nos mesmos moldes da queda espiritual explicitada em Roustaing... No mais, embora a bibliografia de Zêus Wantuil seja bem menor, é fácil constatar que seu estudo é muito mais substancioso do que o de seu excitado crítico.

 

Enfim, depois de massagear as emoções dos melhores intelectuais do kardecismo ultra ortodoxo, seu artigo se resume numa advertência quase escatológica, no sentido de que o chamado neodocetismo, representado pelos maquiavélicos adeptos de Roustaing, visa agora a apoderar-se do Espiritismo. Para concluir isso, convenhamos, bastava ter redigido o último parágrafo. E receberia também uma única resposta, numa única frase: ninguém quer apoderar-se do Espiritismo, simplesmente porque a doutrina exposta por Roustaing – como disse Kardec – é o Espiritismo. Da mesma forma que Kardec não quis apoderar-se do Cristianismo.  Fora isso, advertências desse jaez são tão pirotécnicas quanto os fogos de artifício, que se fazem com muito pouca pólvora...

 Manoel Quintão


             Mas, vamos à história do “encalhe” de “Os Quatro Evangelhos”. Na verdade, Wilson Garcia adora números. Tanto que em seu livro também se reporta ao plebiscito feito em 1931, por Mariano Rango d’Aragona (o tal, que era conde...), para saber quantos kardecistas e quantos rustenistas havia no Brasil. Diga-se, desde logo, que Wilson Garcia só conhece essa façanha estatística porque eu a divulguei pela imprensa, quando antecipei alguns capítulos de “A Posição Zero”. Nunca houve o propósito de esconder nada. Naquela época, o Conde teria chegado à conclusão deque havia 3175000 kardecistas e apenas 3600 rustenistas. Jurava que o levantamento fora “controlado meticulosamente” e brandia toda a esquizofrenia da sua vitória. A própria Federação Espírita Brasileira ocupou-se do assunto, arguindo, com justa razão, a validade daquela burlesca consulta popular. Quem estabelecera os “meticulosos controles”? O próprio Conde. Quem apurara os votos? O Conde. Quem divulgara os resultados? O Conde. Quem detinha a lista dos eleitores? O Conde. Quem sabe quantas foram as abstenções, diante dum plebiscito tão ridículo, do qual, sem dúvida, os espiritas sérios não teriam participado? O Conde. Quem arquivou os votos, para efeito histórico, mas que ninguém sabe até hoje onde estão?  O Conde.

            Ora, se eu quiser, faço agora mesmo um novo plebiscito, com meus “controles meticulosos”, e apresento resultado diametralmente oposto. Basta querer brincar e ter a coragem de forjar. E coragem é o que menos escasseava no nosso Conde, pois através dele foram divulgadas as mais fantasiosas e sensacionais manifestações mediúnicas contra Roustaing. Uma delas é famosíssima, assinada pelo próprio Roustaing e “recebida” pelo médium Carlos Gomes dos Santos, no Centro onde o Conde era diretor-fundador.  Sempre esconderam o nome do livro onde essa mensagem foi incluída. Somente depois que eu o revelei – “Páginas de Além Túmulo” – é que não puderam mais mantê-lo em segredo. Que objetivo tinham com o mistério? Tão somente evitar que fossem à fonte, para verificar. Mas, agora é fácil e, quem o fizer, terá a oportunidade de se inteirar das demais mensagens “recebidas” por aquele grande médium. Há de tudo, em matéria de celebridade. Maria, João, Tomé, etc. A última – que nem se sabe por que está misturada com gente tão famosa – é a de Roustaing. O homem, pois, era um craque. “Recebia” toda a corte celestial (Roustaing, é claro, foi uma exceção), Só faltou “baixar” o próprio Jesus para opinar definitivamente sobre o seu corpo. (A história desse médium, dessa mensagem e do Centro onde foi recebida está analisada em meu livro “A Posição Zero”). Certo é que o resultado do plebiscito foi tão piramidal que o Conde não se deu conta de que, àquela época, a população total do Brasil era de 33 568 000 habitantes. Pois ele conseguira os votos e nada mais nada menos do que 10 por cento dessa população! E 10% de espíritas que estavam perfeitamente a par da controvérsia sobre o corpo fluídico de Jesus. Sem dúvida, um sucesso, digno do Barão von Munchhausen. Se não fora uma grande mágica. David Copperfield não faria melhor, embora, é natural, sendo mais escrupuloso, jamais apresentaria resultados em números redondos como os redondíssimos números do Conde...

            Pois Wilson Garcia faz questão de dar destaque a essa estatística, com o que verifico – e isso é tão grave quanto aquela coragem do Conde – que ele se encanta com os números, ainda que provavelmente não seja pitagórico, por medo da proximidade com Roustaing..  Quer dizer: seu critério de verdade é o das maiorias. Por aí se vê que ele ignora que os católicos são maioria, no Brasil; que os umbandistas são maioria; que a maioria, diante de Pilatos, escolheu Barrabás; que o verdadeiro Espiritismo não há de estar preocupado com dados quantitativos, mas exclusivamente qualitativos. Ainda que o plebiscito do Conde fosse sério, que peso teria para efeito de saber quem está com a razão? É preciso ser muito pobre de entendimento quando se defende essa postura plebiscitária, capaz de valer, a seus entusiastas, perigosa erosão de autoridade doutrinária. Nunca é demais reler a lição bíblica, da Vulgata latina: “Stultorum infinitus est numerus”. (O número de tolos é infinito).

                E é justamente porque está engolfado no critério dos números que Wilson Garcia saiu em campo com suas conclusões em torno da minha informação de que “Os Quatro Evangelhos”, em 1882, ainda estavam à disposição do público. Gritou, eufórico, no que foi acolitado, agora, pelo articulista de São Pulo: a obra encalhou! E gastou 5 páginas de seu livro para provar a asserção, baseando-se em estudo meu. Todavia, como veremos, foi traído pela amadorística inexperiência e pela corte aos métodos de Herculano Pires (aquele que defendia a criação das faculdades pagas de Espiritismo, com fornecimento de diplomas, vestibular e... professores registrados e muito bem remunerados). Quando advir-lhe o tempo da maturidade, Wilson Garcia perceberá que os rustenistas não são bastante tolos como supõe, e que é preciso examinar bastante os prismas de qualquer argumentação, antes de cultiva-la com antiquados empenhos. Fazer coo Herculano Pires, que tentava desmoralizar Roustaing com a versão falsificada dos “criptógamos carnudos” (que ele não entendeu ou fingiu não entender), é derrapar nas esquinas da honestidade e da ética. Senão, vejamos.

            Wilson Garcia quer medir, com esquadro assimétrico, a excelência de um trabalho inicial do público. Nesse caso, que mérito teria, por exemplo, genialidade de Van Gogh? Enquanto viveu, só conseguiu vender 1 único quadro! Que valor teria a grandiosidade de “La Traviata”, cuja estreia, em 1853, foi um fiasco calamitoso? O próprio Verdi considerou-a “um fracasso total”. E se a matéria é literária, que dizer do extraordinário Franz Kafka, que não vendeu nenhum livro até à morte? Mas não é só: como interpretar a infinita diferença de vendagem – em todos os tempos – entre as obras espiritualistas e as pornográficas, cujas edições se multiplicam muito mais aceleradamente? Os grandes sucessos de bilheteria, não há quem ignore, são precisamente dos filmes eróticos e mais deprimentes. Entretanto, nem precisaríamos desses exemplos para delir essa mais nova diatribe contra “Os Quatro Evangelhos”. Bastaria levantar uma questão preliminar: quantos exemplares foram impressos da obra de Roustaing e quantos de “O Livro dos Espíritos”? Ninguém sabe. Se da primeira tivemos, eventualmente, 100 mil e, do segundo, apenas 10 mil, é claro que aquela demoraria mais tempo para se esgotar. Além disso, há sempre os festejados autores clássicos como Flammarion, Denis, Delanne e tantos outros, impressos mesmo modestamente, pala Federação Espírita Brasileira (que outra editora se aventuraria?), os quais são pouquíssimo lidos e suas edições ficam nas prateleiras por mais de 20 anos! Seriam obras fracassadas? Sinceramente, com esse tipo de oposição os anti-rustenistas não vão conseguir sufragação em nenhum plebiscito sério. Se fossem políticos, jamais chegariam ao poder...

            Aí está a minha resposta ao artigo e ao box do jornal paulista. Para dá-la, como disse, tive de reportar-me ao livro do Wilson Garcia (Por falar nisso: nesses 10 anos, desde que foi lançado, quantos exemplares foram vendidos do “O Corpo Fluídico”?) Agora vou aproveitar para abordar aquele segundo argumento, também novo em matéria de divulgação contra Roustaing: a chamada conversão de Imbassahy. Fui exatamente eu quem publicou longo artigo no “Reformador” de maio de 1972, pág. 105, intitulado “Carlos Imbassahy e Roustaing”, com vistas a provar (note bem: provar) que o grande lidador espírita e meu amigo particular sempre fora a favor de “Os Quatro Evangelhos”. E tratava-se apenas de parte do texto de meu livro “A Posição Zero”, o qual, completo, ainda é mais acachapante. Seu filho, irritadíssimo com minha iniciativa, veio a cena me dando iraquianas botinadas e gritando, exacerbadamente, que eu mentira e que eu não privava da intimidade da casa de seu pai. Mas, fazer a contraprova, ele não a fez. Xingou muito, mas não pode desmentir uma única vírgula do meu trabalho. Chegou a estampar uma nota de família, pela imprensa, com versão absolutamente fraudada de fatos ocorridos comigo e Imbassahy, numa palestra pública que fiz em Barra Mansa, com centenas de testemunhas e cuja gravação existe até hoje para ser ouvida por quem tenha dúvida. Quanto a minha intimidade na casa de Imbassahy, eu jamais a afirmara. O que disse e repito é que privava da sua amizade, o que é bem diferente. Assim, o máximo que conseguiu foi evidenciar que... não conhecia as obras do pai. (Aliás, em matéria de conhecimento doutrinário ele é requintadamente bisonho senão folclórico). Pois o que o filho não logrou, pretendeu, depois, o Wilson Garcia. E desenterrou uma história de ajuda que Guillon Ribeiro desejara dar a Carlos Imbassahy, emprestando-lhe a obra de Roustaing, a qual teria sido lida e logo rejeitada. A partir e então, Imbassahy passara a “polemizar, intramuros, com os próprios companheiros da FEB”, e seus livros não foram mais editados. Aí, Imbassahy, foi buscar, em 1950, alguns originais novos, tomando-os de Wantuil de Freitas.  Não satisfeito, escreveu um artigo intitulado “O Corpo Fluídico” – inédito – “que só foi encontrado após o seu desencane”. E segue-se, no livro de Wilson Garcia, a transcrição desse “artigo”, que “elimina, definitivamente, qualquer tentativa que se queira fazer para torna-lo rustenista.”

            Bem, vamos por partes. Em primeiro lugar, posso assegurar que toda essa história é falsa. Duvido que me apontem onde ela s encontra narrada pelo próprio Carlos Imbassahy ou mesmo por alguém que atenha divulgado enquanto Imbassahy estava encarnado. Cantilena transmitida por terceiros, ainda que sejam familiares, não vale nada. Quero a versão escrita pelo próprio Imbassahy. Se me for apresentada, juro que que acreditarei, sem vê-la, para mim não passa de fantasia, de intriga mesquinha. Posso testemunhar, como íntimo frequentador da FEB, que as tais polêmicas nunca existiram. Não houve, de fato, a publicação de novos livros, mas os anteriores continuaram a ser reeditados seguidamente. Os originais que ele teria ido buscar com Wantuil de Freitas representam outra invencionice. Nem Imbassahy nem Wantuil nunca me falaram disso. Ninguém testemunhou isso. E, como, ao contrário do inocente Wilson Garcia – que, sem apurar, foi passando a novela para frente – costumo provar tudo quanto digo, aqui vai a prova de que jamais existiu qualquer animosidade entre Imbassahy e a FEB. Basta refletir, dentre tantos outros, dois exemplos facílimos de serem constatados.   Em 1952, a Federação Espírita Brasileira do Paraná (nem foi a FEB) lançou o livro de Manoel Quintão intitulado “Cinzas do meu Cinzeiro”. Foi solicitado um Prefácio a Carlos Imbassahy, que logo o preparou, em julho daquele ano. A págs. 12 e 13, ele depõe, na sua irreprochável sinceridade:

“Também militamos na Federação Espírita Brasileira. Discordamos, às vezes, daqueles que nos pareciam de inabalável ortodoxia doutrinária.

            Chegamos a pensar em transportar-nos a outra comunidade. Força é confessar que não achamos fora dali gente tão honesta, tão sincera, tão digna. Um a um daqueles antigos companheiros e amigos, se foi retirando pelo reclinatório da sepultura, como diria Camilo Castelo Branco.”

            (A discordância a que chamava “ortodoxia doutrinária” era exclusivamente no que respeitava à tolerância com a Umbanda, que Carlos Imbassahy defendia e a FEB ainda não se dispusera a fixar   rumos com mais objetividade, senão os que emanavam do Conselho Federativo Nacional, definindo Espiritismo e Doutrina Espírita. Essa história eu também a conheço bem, mas fica para ser narrada, com mais detalhes, se for preciso, noutra oportunidade. O que é óbvio é que Imbassahy – se discordasse de Roustaing – não poderia estar pensando nele, ao falar de “ortodoxia doutrinária”. Pensava nos rigores kardecistas e, então, numa abertura de ideias. No que, de resto, ele estava com a razão.)

            Assim, concretamente ali estava a confissão de Carlos Imbassahy, no sentido em que, fora da Casa de Ismael (e isso é que, no momento, importa) não conseguiu encontrar “gente tão honesta, tão sincera, tão digna.”

            Dir-se-á que o evento é de 1952, muito antigo. Pois vamos ao segundo, registrado em 1962, dez anos depois do primeiro e, também, mais de uma década desde quando aquele “on-dit” (ouvi dizer), recordado por Wilson Garcia (1950), teria acontecido. Abramos o “Reformador” de julho de 1962, págs. 151, e leiamos a súmula da reunião do Conselho Federativo Nacional, do qual Imbassahy já não fazia parte, mas a que ainda comparecia, convidado ou espontaneamente. Diz o texto, logo no início:

            “Saudando o confrade Dr. Carlos Imbassahy, presente à reunião, o Presidente enaltece o valor do visitante, antigo membro do Conselho e dedicado trabalhador da Doutrina”.

            Eu estava presente a essa reunião. E todos nós conversamos animadamente. Quer dizer: mesmo sem cargo, Imbassahy aparecia de vez em quando e era sempre muito bem recebido. Esse clima de amizade nunca deixou de existir. E se ele ia é porque lhe aprazia. Ou, então, seria muito hipócrita, atributo que não condizia com aquele notável espírita. Portanto, as informações em contrário são mentirosas. O que não me surpreende. O forte dos anti-rustenistas é a inverdade, no livre exercício da imaginação comprometida com a odiosidade. Se Imbassahy não gostasse da FEB, jamais apareceria por lá. Seu desligamento do “Reformador” – por ele pleiteado – aconteceu exclusivamente devido a divergências pessoais com outro confrade da Redação. 

            Quanto ao tal artigo contra Roustaing, inédito, é a choradeira mais picaresca dos últimos tempos. Imbassahy desencarnou em 1969. Em nenhuma biografia póstuma apareceu a história. Depois que publiquei, no “Reformador”, em 1972, as provas de que ele era rustenista, seu filho, como já disse, deu cambalhotas para me desmentir, sem consegui-lo, é claro. Ora, é incrivelmente insustentável que ele houvesse deixado passar a grande oportunidade de estampar o tal artigo. Este, porém, só vai aparecer, triunfalmente, no livro de Wilson Garcia, em fins de 1981 (12 anos após a desencarnação!), embora houvesse sido encontrado entre os seus papéis. Pelo visto, só arrumaram a casa 12 anos depois... E, atualmente, onde se acha esse fantasmagórico original? Informa o próprio Wilson Garcia, em nota de rodapé, num registro todo envergonhado: “em poder de um amigo da família, cedido que fora pela viúva”. Quem é esse amigo, não foi dito. Por que não ficou com o filho, que é espírita e estaria eternamente eufórico com tão precioso legado ninguém sabe. Por que Imbassahy escondeu essa reviravolta doutrinária até à desencarnação (quereria transferir, covardemente, sua polêmica para a família?), não se sabe também. Mistérios que certamente só os anti-rustenistas conseguem desvendar, mas que não apenas mais um dado no inflacionado balanço da violência doutrinária contra os adeptos de “Os Quatro Evangelhos”.

            Porém, vamos dar de barato que o tal original existia mesmo, até com a letra do Imbassahy. O que é chamado de artigo (será que Wilson Garcia não sabe exatamente o que quer dizer artigo, dirigindo, como dirige, um jornal espírita?) não passa da enumeração, de 1 a 15, sem qualquer comentário, de argumentos contra o corpo fluídico de Jesus. Isso é que teria sido encontrado entre os papéis de Imbassahy, mais de 1 década após a sua desencarnação e até hoje ocultado. Estaria redigido de próprio punho. Pois bem; e daí? Trata-se duma simples relação de argumentos contra o corpo fluídico de Jesus. Imbassahy pode tê-la preparado com o exato propósito de rebater aqueles argumentos, por sinal, os mesmos que todo mundo conhece. Nem ao menos são mais brilhantes, à altura da inteligência do pretendido autor. Alguns são primaríssimos, de desmaiada mediocridade. Importante é que não é um artigo, onde teríamos podido conhecer o texto e o seu conteúdo. Sem isso, é impossível afirmar a opinião do autor, seja ele quem for. Seria pró ou contra? Se eu desencarnar, amanhã, vão encontrar, entre os meus papéis, uma relação contendo rigorosamente os mesmos itens, com a diferença, apenas, de que é bem maior. Fui registrando, ano após ano, todos os argumentos suscitados pelos inimigos de Roustaing, para refutá-los em meu livro “A Posição Zero”. Se essa relação cair nas mãos do Wilson Garcia, espero que ele não a publique como “prova” de que sempre foi contra Roustaing...

            Para encerrar mais esse episódio em torno da posição de Carlos Imbassahy, devo dizer que seria prudente não insistir nesses contraprovas, que transgridem clamorosamente as regras da decência e do bom-senso. Apenas propiciam-me o espetáculo da mais grotesca comédia, encenada com intenção charlatanesca. Gostaria muito que esses novos argumentos contra Roustaing fossem, afinal, o último prato a enfeitar o cardápio dos intolerantes comensais da festança anti-rustenista. Mas sei, desolado, que isso é quase impossível aos xiitas do Espiritismo, que fazem de “Os Quatro Evangelhos” a sua eterna “delenda Cartago”. Vão viver mordidos, ainda, por muitas encarnações.

            E isso é tudo, por enquanto. Aí estão as razões importantes em torno de uma questão séria. O resto é sucata. “Excussez de peu”... (peço desculpas)

 


Docetismo

por Zêus Wantuil

Fonte: ‘Anexo do livro Elos Doutrinários’’ por Ismael Gomes Braga (Ed. FEB - 1949)

             Os Dicionários e Enciclopédias assim definem o Docetismo: doutrina herética dos primeiros séculos do Cristianismo, variante do Gnosticismo, e que consistia em ensinar a não realidade carnal do corpo de Jesus, não aceitando, por conseguinte, seu nascimento, sofrimento, morte e ressureição, senão em aparência. Alguns estudiosos pensam ter sido Júlio Cassiano (*) o autor dessas ideias; contudo, isso não se pode provar, por falta de dados positivos. Os seguidores dessa doutrina denominavam-se docetas ou docetes (fo grego dókesis – aparência), e professavam o mais puro monoteísmo.

                 (*) Depois de composto o trabalho, tivemos a ventura de tomar parte de uma reunião íntima com o médium Francisco Cândido Xavier, em Pedro Leopoldo, no dia 30 de Outubro de 1948. O médium descreveu-nos a presença de um espírito muito luminoso, de elevada esfera, que lhe deu o nome de Júlio Cassiano, e manifestou sua aprovação pelas atividades de nosso jovem confrade Zêus Wantuil, de quem disse ter sido instrutor no século segundo. Por lamentável falta de memória, nenhum de nós, no momento, se recordou do nome de Júlio Cassiano, que, naquela ocasião, já estava escrito e composto para o “Reformador” –Ismael Gomes Braga.

             Parece ter sido a primeira ‘heresia’ cristã conhecida, pois São Jerônimo, o autor da Vulgata, diz que o “sangue de Cristo estava ainda fresco na Judéia, quando o seu corpo foi considerado como tendo sido um fantasma”. 


            
O nome Docetismo aparece citado, pela primeira vez, no século II, conforme os documentos que se conservaram, num manuscrito do bispo de Antioquia, Serapião, embora seja a doutrina anterior a essa época, conforme tudo parece confirmar.  Até hoje é ignorado se o Docetismo designava uma seita, como o pretenderam Clemente de Alexandria e Teodoreto, ou, simplesmente, uma opinião muito difundida, sobretudo entre os gnósticos, como afirmaram Epifânio e Filástrio.

            Os docetas reconheciam na pessoa do Cristo apenas a natureza divina, não negando, contudo, a realidade de seu corpo, que consideravam aparente, aéreo, como um “fantasma”, e, por esse corpo, explicavam os fatos da encarnação e morte do Filho do homem. 

            Inteligência de primeira ordem, de pureza perfeita – refletiam eles -, o Cristo não podia diminuir-se e tomar um envoltório de matéria corrompida, opinião esta generalizada em todas as doutrinas gnósticas. O termo Gnosticismo não tem uma definição específica; foi mais um nome coletivo que abrangeu as mais variadas seitas e ideias que floresceram pelo menos até ao século V da era cristã, estando em contradição, sob vários pontos, com as reflexões católicas.

            É justo anotar que do Gnosticismo saíram os primeiros exegetas cristãos, com a finalidade de tornar mais claro ao povo o sentido obscuro das Escrituras.


Antonio Wantuil

            No sentir dos gnósticos, Jesus não veio somente para salvar os homens, ou seja, para os instruir e esclarecer; ao desempenho desse fim, eram-lhe suficientes as aparências da natureza humana. Para salvar os homens – expunham os gnósticos – tornava-se apenas necessário a sua instrução, visto que a corrupção e o apego dos homens à Terra provinham da ignorância em que se achavam acerca de sua própria grandeza, dignidade e destino.

            Desde que as almas das criaturas estavam ligadas, aprisionadas aos órgãos corporais, somente por mediação dos sentidos se lhes podia esclarecer o espírito. Por isso, Jesus teve a necessidade de tomar as aparências de um corpo, assemelhando-se aos homens, para com eles conversar, esclarecendo-os e instruindo-os; ele, porém, observavam os gnósticos, não estava unido a esse corpo “fantástico”, como se acha unida a nossa alma ao corpo humano, pois semelhante união, além de desnecessária na instrução aos homens, teria degradado o Salvador. Em vista disso, inferiam que a obra da redenção, trazida pelo Mestre à Terra, ligava-se unicamente a um ministério de instrução. Podemos observar, nesses ensinos, reflexos doutrinários atualmente incluídos no Espiritismo.

            Santo Atanásio, ilustre doutor da Igreja grega, no seu tratado da “Encarnação do Verbo” apesar de a ortodoxia não levar em consideração, sem motivo plausível, o seu pensamento, ensina que, em Jesus, não houve duas naturezas diferentes, conforme ficou firmado mais, tarde, nos Concílio de Éfeso (431), de Calcedônia (451) e de Constantinopla (680),e, sim, a única natureza divina encarnada; em outros termos: que a natureza humana não foi senão um instrumento para o Logos (Verbo).  Assim professava a Escola de Alexandria, que fazia desaparecer, por conseguinte, na natureza divina a natureza humana, reduzida esta, desse modo, a uma simples aparência ou a uma matéria inerte. Em suma, tal Escola tinha a ideia dominante, de tendência platônica, de que do Deus Supremo havia saído uma inteligência perfeita, denominada Verbo, ou Espírito, e que a sua elevada condição tornava-lhe impossível unir-se à matéria ou revestir-se da natureza humana. Veem-se também traços de Docetismo até na grande ortodoxia dogmática de S. João Damasceno.

            A “heresia” em questão foi bem recebida pelos espíritos mais cultos e filosóficos, e uma das provas disso é a “Epístola de Santo Inácio aos Esmirneanos”, no século I, na qual, referindo-se aos docetas, o bispo de Antioquia, condenando-a, diz:  “Os poderes celestes, os anjos, os príncipes, sejam visíveis, sejam invisíveis, não permanecerão sem punição, se não crerem no sangue de Jesus-Cristo. Ninguém deve orgulhar-se de sua posição ou do posto que ocupa.”

            Uma interpolação, em tais cartas, talvez feita pelo próprio autor, trás, na passagem acima citada, a paráfrase seguinte, ainda mais frisante: “Quer seja este um rei ou um sacrificante, quer príncipe ou particular, senhor ou escravo, é em vão que ele se apoiará em sua classe, na sua dignidade ou nas suas riquezas.”

            Tais revelações trouxeram aos estudiosos a conclusão de que muitos dos docetas ocupavam altos postos na Igreja e no Governo.

            Beausobre, conceituado teólogo protestante, autor de várias obras de crítica religiosa, em sua “Histoire Critique de Manichée et du Manichéisme”, muito falou sobre o Docetismo, sistema por ele considerado interessante a prol do melhorlig entendimento da religião cristã, tornando-a mais plausível. Conta-nos, então, esse autor que, segundo os docetas, Jesus não tinha abandonado aos seus algozes senão um “fantasma” que se assemelhava.

            Se bem que não davam muito crédito ao Velho Testamento, em todas as suas partes, serviam-se, nas suas discussões sobre o corpo aparente de Jesus, das aparições de Jeová ou de anjos a Abraão, a Moisés e a tantos outros profetas. Constantemente, alegavam eu Jeová havia aparecido a Abraão sob a forma humana na planície de Mamre, tendo o Senhor concordado em receber alimento, comendo e bebendo, em aparência pelo menos, o bezerro, opção e o leite que Abraão preparara (Gên., 18:1 a 8). Seguem-se, ainda, a convivência dos dois anjos com Lot, na casa deste (Gên., 19:1 a 22) e  muitos outros fatos semelhantes. Apoiavam-se os docetas, igualmente, em o Novo Testamento, citando diversas passagens dos Evangelhos e das Epístolas de Paulo.

            Raciocinavam dizendo que um corpo humano é sempre visível, sempre palpável e com um peso proporcional à quantidade de matéria que o compõe; que ele não pode penetrar através de outros corpos, sem ser penetrado. Ora, acrescentavam eles, o corpo de Jesus não possuiu nenhuma dessas propriedades. Não era visível senão pela vontade do próprio Jesus, e não por natureza; por isso é que ele passou despercebido através de uma multidão furiosa que, levando-o ao cume de um monte, resolvera precipitá-lo dali. (Lucas, 4:28 a 30); ainda devido à sua constituição especial é que ele desapareceu repentinamente diante dos olhos dos dois discípulos que o reconheceram em Emaus (Lucas, 24:30 e 31), o mesmo sucedendo em outras ocasiões.  

            Ora, semelhante raciocínio, para ambos os casos citados, mostrasse-nos inteiramente confirmável pela Doutrina Espírita, raciocínio que o Codificador, apoiado nos fatos, externou em “Obras Póstumas”, ao dizer que “o Espírito pode atingir tangibilidade real, deixando-se então tocar, apalpar, oferecendo a mesma resistência e o mesmo calor qual se fora um corpo vivo, mas isto não o priva de desfazer-se coma rapidez de um relâmpago.




            Diziam, ainda, os docetas: Jesus não possuía um corpo inerente à matéria, pois que andou sobre as águas do mar da Galileia, sem se afundar (Mateus, 14:25 e 26); não tinha solidez permanente, pois penetrou, estando as portas fechadas, na casa onde os discípulos se reuniram por duas vezes (João, 20:19 e 26).

            É preciso considerar esses argumentos em conjunto e não insuladamente, pois, desta forma, poderiam conduzir a raciocínio diverso e parcial.

            “Notamos, disse Beausobre, que os antigos heréticos defendiam sua doutrina pelos mesmos testemunhos da Escritura e pelas mesmas razoes de que se serviu a Igreja Católica, nos séculos posteriores, para defender a presença real de corpo de Jesus-Cristo na eucaristia.”

            Acompanhamos o raciocínio desse teólogo; - Se nos primeiros séculos os cristãos houvessem admitido o dogma da presença real, os docetas disso se aproveitariam, retirando uma objeção invencível e, certamente, diriam aos seus adversários; “Tudo o que subsiste, sem nenhuma das propriedades do corpo humano; por conseguinte, não é ele mais um corpo humano.”

            Sustentavam os docetas – repetimos – que Jesus pareceu possuir um corpo humano igual aos nossos, se bem que, na verdade, de forma alguma o possuísse. Comentando, prossegue Beausobre; “Ora, sob que direito e sob que pretexto os Padres, admitindo a presença real do corpo de Jesus na eucaristia, teriam podido rejeitar aquele milagre semelhante que continuava a perpetuava-se na Igreja, do qual a prova e o exemplo a todo momento se apresentavam aos olhos dos fiéis? Que absurdo ai havia em dizer que o Senhor, durante o curso do seu ministério, parecia ser aquilo que não era, ele que, após a sua ascensão ao céu, não cessou de aparecer?

            “Como na eucaristia o corpo de Jesus tem todas as aparências do vinho e do pão, sem ser nem um nem outro, outro, do mesmo modo o corpo aéreo teria as aparências de realidade carnal, ainda que se constituísse de uma substância puramente espiritual.”

            Bergier, conhecedor profundo de Teologia dogmática, refutando tais comparações, diz que, certamente, os Padres assim teriam respondido: “Tudo que subsiste, sem nenhuma propriedade sensível ou insensível do corpo humano, já não é corpo humano. Ora, o corpo de Jesus, na eucaristia, privado das propriedades sensíveis, conserva, contudo, as propriedades insensíveis: logo, é um corpo humano, senão no seu estado natural, pelo menos num estado sobrenatural e miraculoso.”   

            Vemos que essa resposta de Bergier em si mesma nada diz ou prova. Partindo de premissas inconsequentes, senão dogmáticas, conclui nesta base, de maneira dessarroada e pueril.

            Comentando, ainda, o assunto em foco, Bergier declara que, se o dogma da presença real de Jesus na eucaristia é aceito, ao passo que é rejeitada a opinião dos docetas, isso não o é por considerar-se uma dessas questões menos absurda ou menos impossível a Deus que a outra! Assim se acredita, prossegue o explanador, por dois motivos: 1º) “A presença real é formalmente ensinada na Escritura Santa, ao passo que, contrariamente, a opinião dos docetas é ali formalmente reprovada”; 2º) “O dogma da presença real de maneira nenhuma conduz às consequências falsas e ímpias que se seguiriam  à opinião dos docetas, isto é, a do corpo aparente e fantástico do Cristo.”           

            A primeira razão derivou e continua derivando da interpretação literal dos textos escriturísticos que se referem a tais pontos. Apesar da recomendação de Paulo de tudo examinarmos à luz do espírito, os homens prosseguimos na mesma rota de adaptação ao nosso eu material das coisas do espírito.                   

            A segunda digressão, imediatamente verificamo-la não ser verdadeira, pelo menos atualmente, quando a obra de Roustaing, impregnada daquelas ideias docetistas, cada vez mais eleva o nome do Senhor, criando em nós uma admiração e um respeito bem mais profundos pelo filho de Maria.         

            O distinto eclesiástico cita os testemunhos epistolares de Santo Inácio e de São Policarpo, que estabelecem ser verdade o “mistério” da encarnação, a realidade da carne e do sangue de Jesus, servindo-se também do 1º versículo da 1ª Epístola de João – versículo que em nada desaprova o corpo fluídico do Mestre, pois os próprios docetas não negavam trem os apóstolos visto, ouvido ou tocado o Senhor; seja ante, seja após a ressureição; ressalvavam apenas que, aos sentidos deles, era dada a ilusão da carne real.

            Santo Irineu, bispo de Lião, discípulo de São Policarpo, combateu o Docetismo no seu “Tratado contra as heresias”, servindo-se, porém, dos mesmos fracos e parcos argumentos de que os demais Padres se utilizaram. Deste modo, refere-se à genealogia de Jesus por Mateus e Lucas, esquecendo-se o replicador das palavras textuais do próprio Mestre, contrárias a tal genealogia, constantes em Mateus, 22:41 a 45 e João, 11 a 18, bem como as de Paulo na Epístola aos Hebreus, 10:5.

            “Se Jesus não fosse semelhante aos homens (exceção feita ao pecado!) – continua Santo Irineu – não poderia ser chamado homem nem Filho do Homem; viria apenas para nos iludir, inutilmente, pois, se somente tivesse tomado no exterior todos os sinais e caracteres da natureza humana; se realmente não houvesse sofrido não nos teria remido. Indigno do título de Salvador da Humanidade, seria simplesmente um impostor, e não aquele predito pelos Profetas. Ainda mais, a ressureição da nossa carne tornar-se-ia impossível, e não receberíamos, na eucaristia, a sua carne e o seu sangue, etc...”

            O inteligente leitor poderá verificar, por si mesmo, a mediocridade desses argumentos. Desejamos fazer referência à questão do “Filho do homem”, que melhor poderá ser compreendida em Daniel 7:13. Além disso, a expressão homem bem pode supor a ideia da Humanidade em geral, compreendendo todos os seres da espécie humana, significação que já era citada pelo notável jurisconsulto romano, Gaio, que viveu no século II. Ainda poderíamos acrescentar o significado dado pelos antigos egípcios, relativo ao grau de saber. Doutro lado, não se refere o “homem” a José, pois Jesus nascera do Espírito Santo.

            Prendendo-se, frequentemente, à imprescindível necessidade do sofrimento material, carnal, de Jesus, os contraditores dos docetas esqueciam-se do inenarrável sofrimento moral ou espiritual do Mestre. Ainda mesmo que o Cristo nada sofresse dos homens, bastaria, para nos remirmos, a sua vinda ao abismo escuro da minúscula Terra, com todas as suas angústias que essa vinda deveria acarretar-lhe ao Espírito, a fim de trazer-nos a sua palavra iluminada.

            Atualmente, os espíritas, estudantes da Terceira Revelação, aceitamos, por bem provável, o sofrimento material de Jesus, visto que este, possuindo um envoltório fluídico condensado (se assim nos permitem exprimir), e portanto matéria em si, se tornava, por conseguinte, suscetível aos choques da matéria.

            É bom não esquecermos de que tal matéria condensada é tão sensível que, ao ser tocado um Espírito materializado, sem a permissão deste, nas seções de experimentação, comumente a ação se reflete dele para o médium, que a sofre intensamente; assim, pois, podemos asseverar que tal matéria é sensível, sensibilíssima mesmo.

            Ao contrário dessas materializações “artificiais”, de laboratório, em geral imperfeitas e dificultosas, cumpre refletir atentamente sobre as aparições espontâneas, perfeitíssimas, quase diríamos carnais, distintas mesmo daquelas outras, e em tudo nenhuma relação parecendo mostrar com determinados médiuns, antes nos deixando supor a completa independência de sua formação, inclinando-nos a admitir que elas, as aparições, apenas se utilizaram dos recursos extraídos da Natureza.

            Nestes últimos “fantasmas”, a que chamamos agêneres, é admissível que os choques materiais, por eles recebidos, não se reflitam no exterior, qual se verifica com os Espíritos materializados em nossas sessões, os quais, quando o permitem, se deixam tocar pelos circunstantes vivos, sem isso trazer qualquer perturbação ao médium.   Assim, se o Espírito materializado pode conservar em si mesmo a ação do choque, é admissível e lógico que o agênere igualmente poderá sentir o choque, sem o transmitir. Dessa forma, não vemos por onde negar a priori que os seres fluídicos (agêneres) sejam insensíveis à dor. (**)

 (**) Por outro lado, temos de refletir sobre os fatos hoje conhecidos da exteriorização da sensibilidade e da sua anulação, como vemos nas práticas de hipnotismo. Com seu ilimitado poder sobre a matéria e o magnetismo, mesmo que tivesse um corpo material, gerado, Jesus poderia torna-lo insensível, como fazem hoje médicos e dentistas em operações cirúrgicas. Portanto, o argumento que considera a dor como condição necessária à missão de Jesus é inconsistente, como tantos outros que pretendem igualar aquele Espírito sublime aos nossos de calcetas do pecado e da dor. – Nota de Ismael Gomes Braga

             Em vários dos chamados “livros apócrifos”, encontram-se ideias docetistas. Antes de mencioná-los, vejamos a significação precisa da denominação que lhes foi dada.

            O Protestantismo considerava apócrifos os chamados deuterocanônicos do Catolicismo. Os católicos reservam o nome – apócrifos – aos escritos que a Igreja rejeita do cânon ou catálogo público das Escrituras, por nele encontrarem “coisas corrompidas” e contrárias a verdadeira fé (católica, é claro!). Existem, ainda, os apócrifos cujo motivo da exclusão do cânon é desconhecido. Tais livros, dizem mais, dados por seu título ou teor como obra de autores inspirados, não podem ser justificados neste sentido, ainda que sejam admitidos como inspirados por algumas Igrejas particulares ou por heterodoxos.   A bem dizer, nem todas essas obras foram impugnadas por alguns venerandos Padres e Doutores da Igreja, que se consideravam ligadas à inspiração divina.

            Comentando esses apócrifos, disse Orígenes: “De modo geral, não devemos rejeitar em bloco tais obras, das quais podemos extrair alguma utilidade para esclarecimento de nossas Escrituras. Demonstra tal proceder a ausência de um espírito sábio em compreender e aplicar o preceito divino: Provai tudo e retende o que é bom.”

            Foi num concílio realizado no século V, em Roma, que parede ter sido decretado, pela primeira vez, sob o papado de S. Gelásio, um catálogo de livros canônicos, cuja compilação definitiva crê-se ter sido terminada no começo do século VI. Esse papa, já possuído da “heresia da dominação”, na expressão de Arnaud, perseguiu os maniqueus na cidade de Roma, expulsando-os e queimando seus livros.

            Os deterocanônicos, obras que por muitos séculos foram postas em dúvida quanto a sua autenticidade, surgindo mesmo discussões entre os Teólogos e entre os Padres da Igreja, receberam, mais tarde, a sua inclusão no cânon, por conseguinte após as obras já nele existentes, e daí a origem de sua denominação de deuterocanônicos. Entre muitas delas, temos as seguintes: o livro de Tobias, o de Judite; o Eclesiastes, as Epístolas de Pedro; a Epístola aos Hebreus; a 2ª Epístola de João; o Apocalipse de João, etc.

            Antes dessa época, os Evangelhos e os Atos apócrifos eram largamente espalhados e consultados entre os cristãos.

            Na Epístola de Barnabé (apócrifa), obra considerada autêntica por Orígenes e S. Clemente de Alexandria, no versículo 12, há: “O Senhor diz que a influência da carne dele é deles.” Parece aí haver uma ideia docética, como pensa Harnack, se bem que outros não aceitem o mesmo.

            Serapião de Antioquia proibiu a leitura do Evangelho de Pedro, na suspeita de nele haver corruptelas por parte dos docetas, talvez por conter o versículo 10 uma referência a Jeus, na cruz, nos seguintes termos: “Mas ele permaneceu mudo, como alguém que não sente dor alguma.”

            Exceto os Atos de Paulo, todos os demais Atos apócrifos – dizem os ortodoxos – encerram mais ou menos ideias docetistas.  Alguns desses foram reunidos numa coleção, na segunda metade do século II, por Leucius Charinus que, segundo Santo Epifânio, bispo de Constância, fora um discípulo de João, o Evangelista, e tal coleção foi ainda assinalada pelo bispo de Astorga, no século IV.

            Nos Atos de João conta-se que, na Última Ceia, João, o apóstolo, encostando-se no peito do Cristo, sentiu-o não resistente; ao ser sepultado, o corpo de Jesus estava por algum momento aparentemente sólido, e logo em seguida ele se tornou “imaterial e incorpóreo como se nada fosse.” Ainda os mesmos Atos dizem que a crucificação foi somente em aparência, e que o Cristo apareceu a João, no Monte das Oliveiras, e lhe explicou o fato.

            Os Atos de Pedro relatam que Deus enviou seu Filho “através da virgem Maria.” Considerando aparente a Paixão, diz que “o sofrimento que se manifestou na Paixão do Cristo foi totalmente diferente do que em geral se supõe.”

            Os Atos de André relatam que Jesus é “imaterial, puro, imponderável”, etc..

            Nos Atos de Tomé, frequentemente é evidenciada a antítese entre matéria e espírito, de sorte que a expressão neles existente – “Jesus é espírito – parece contar uma ideia de fundo docético. S. Cirilo de Jerusalém, referindo-se ao termo espírito, diz que, de um modo geral, assim se denominava todo aquele que não possuíam corpo pesado e denso.

            Um ilustre sacerdote de Letchworth (Inglaterra), estudioso de tal assunto, observa que, fora esses pontos de resto todas essas obras apócrifas falam de Jesus muito semelhantemente aos livros canônicos, convindo, entretanto, frisa ele, “sejam lidas somente nos círculos ortodoxos, não devendo parar em outras mãos, por causa de sua tendência herética.”

            O nome geral de docetas foi dado a representantes de várias seitas, aos discípulos de Simão, de Menandro, de Saturnino, de Basilide, de Valentim, de Dositeo (discípulo de João, o Evangelista) etc., visto que todos eles concordavam na mesma ideia a respeito do corpo de Jesus, ainda que estivessem divididos entre vários pontos de doutrina.

            Basilide, morto no ano 130, redigiu um comentário sobre o Evangelho, primeira obra desse gênero de que se tem conhecimento. Esposava ele ideias interessantes com relação ao porquê do sofrimento da Humanidade terrena. Dizia, então, que o homem sofre neste mundo porque sua alma pecou em vida anterior à sua atual união com o corpo, sendo essa união um estado de expiação de que ela somente sairia depois de se haver purificado em passando sucessivamente de corpo em corpo, até o cumprimento da justiça divina, que não dava outros castigos, mas que, anexada à teoria do corpo “aparente” de Jesus, recebia igualmente a pecha de heresia.

            Simão, o Mago, que se acreditava ter sido aquele citado nos Atos dos Apóstolos, disse que Jesus viera entre os homens como um homem, se bem que não fosse de forma alguma um homem.

            No século II, Valentim, Bardesana, Apeles, Marinus e outros admitiam o corpo de Cristo, embora fosse um corpo espiritualizado, depurado, e que somente passou através de sua mãe, mas não foi formado por ela.

            Valentim ensinava que Jesus possuía um corpo “psíquico”, especial, não sujeito à destruição e às leis normais da matéria. Nasceu de Maria, passando através dela, que permaneceu virgem, como a água passa através de um conduto, sem nada receber ou modificar, visto já possuir ele um corpo “lá de cima”. Valentim afirmava ter recebido esta doutrina de um discípulo de Paulo.

            Heracleon, discípulo de Valentim, escreveu comentários sobre os Evangelhos de Lucas e de João. O comentário a respeito desse último era bem conhecido de Orígenes que, se bem não concordasse inteiramente com a exegese de Heracleon, considerava-a, pelo menos, com respeito.

            Bardesana, tido pelos Padres de sua época como homem cheio de talentos e virtudes, negara a ressureição carnal. Reconhecia a imortalidade da alma, a onipotência e providência de Deus, e dizia que Jesus tivera um corpo espiritual. Parece haver crido na existência de satanás ou do demônio, que não era, porém, criatura de Deus, nem administrava parte alguma do mundo. Buscava Bardesana essa saída para poder explicar a origem do mal, que de Deus não poderia resultar. Para ele, o mundo e o homem foram criados por Deus, mas o homem, no princípio, não era um ser revestido de carne e, sim, uma alma unida a um corpo sutil e conforme à sua natureza. Essa era, pois, a alma que fora formada à imagem de Deus e que, enganada pelas astúcias do demônio, havia transgredido as leis do mesmo Deus, o que obrigava o Criador a expulsá-lo do paraíso e a liga-la a um corpo carnal, uma espécie de prisão, que Bardesana dizia serem as túnicas de pele com que Deus havia coberto Adão e Eva, depois do pecado.

            Malgrado essas ideias estarem crivadas dos sentimentos e da compreensão vigentes naquela época, são elas merecedoras de acatamento.

            Judiciosamente, em conclusão à doutrina esposada, Bardesana diz que a união a um corpo carnal é, pois, consequência do mesmo pecado e, em vista disso, Jesus, espírito puro, imaculado, não poderia ter tomado um corpo carnal. Igualmente, prosseguia ele, devido ao mesmo princípio, não ressuscitaremos com o mesmo corpo que temos sobre a Terra, mas sim, com um corpo sutil e celeste, que deve ser a habitação normal de uma alma pura e inocente.

            Harmonius, filho de Bardesana, mais claramente que o pai, afirmou a reencarnação. Marinus prosseguiu com o ensino dessas doutrinas.

            Segundo Apeles, Jesus realmente não nasceu da virgem Maria; todavia, não se manifestou sem um corpo real. Dizia, então, que Jesus, servindo-se do material das estrelas e “das mais altas substâncias da Natureza” compôs um corpo e nele habitou durante o tempo que passou neste mundo. Ressurgido depois de três dias, mostrou aos discípulos as marcas das mãos e o lado, a fim de convencê-los de que era ele mesmo em pessoa, em carne e osso, e não um fantasma – prossegue Apeles, argumentando. Após aparecer, durante quarenta dias, com essa carne, o Cristo, tendo rompido o laço que o prendia a semelhante corpo, restituiu a cada dos elementos aquilo que lhes pertencia, retirando-se, em seguida, para o Pai. Assim fazendo, ele não quis conservar nada de estranho, pois apenas se servira daquela carne, momentaneamente, enquanto dela tinha necessidade.  

            Em verdade, Apeles teve razão ao considerar o corpo de Jesus uma verdadeira carne e esta é a mesma impressão que temos com os Espíritos materializados, que às vezes se nos apresentam perfeita e legitimamente “carnais”.

            Marinus e outros, seguindo a Bardesana, diziam que o Cristo possuíra um corpo “celeste”, “astral”, não tendo, pois, nascido de mulher.

            O docetismo radical, de que nos fala o teólogo protestante Harnack, negava toda a realidade do corpo de Jesus; este não nascera absolutamente em nenhum sentido, e durante toda a sua vida humana foi um perfeito fantasma.

            Embora Saturnino e Cerdo, os mais radicais, tenham aventado tais ideias, estas, bem analisadas, tinham razão de ser, pois Jesus não passara pelo nascimento normal na Terra e o seu corpo participara dos caracteres de um “corpo fantasma”.

            Saturnino, gnóstico do século I, dizia, segundo Santo Irineu, que o Salvador não foi nascido, foi incorpóreo, sem matéria real, sine figura (sem forma), assemelhando-se a um homem aos olhos da Humanidade.

            Antes de continuarmos, devemos lembrar aos leitores que a maior parte das questões em estudo não provém dos escritos dos docetas, escritos que, embora produzidos, ou se perderam ou sofreram a destruição.  Quase tudo que relatamos nos foi legado por alguns dos primeiros Pais da Igreja (Inácio, Irineu, Tertuliano, Hipólito, Epifânio, etc.) que se insurgiram contra tais ideias e, assim, é bem provável que eles tenham, consciente ou inconscientemente, deturpado, algumas vezes, o sentido oculto do pensamento dos docetas.

            Cerdo (ou Cerdon) explicava que o “Cristo, o Filho do Deus Altíssimo, manifestou-se sem nascer de Maria, ou seja, sem nenhum nascimento na Terra à semelhança dos homens”.

            Para Marcion, zeloso cristão, Jesus não fora, de maneira alguma, um homem, pois não tinha um corpo real; apareceu, ao contrário, “sob a semelhança de um homem” (Epístola aos Filipenses, 2:7). E diz ainda: “O Cristo pareceu sofrer e ser sepultado”. Há também referências sobre Marcion em que este se baseia em Mateus, 12:48, na Epístola aos Romanos 8:3, além de outras passagens, em apoio do Docetismo.

            Contra Marcion escreveu Tertuliano, para provar que o Cristo não teve um “corpo fantástico”, embora este Padre acreditasse que os anjos possuem um corpo que lhes é próprio, passível de se transfigurar em carne humana, tornando-se, por algum tempo, perceptíveis aos homens, e com este podendo manter relações visíveis.

            Ptolomeu, gnóstico cristão da escola de Valentim, de meados do século II, foi dos que mais circunscreveram as ideias docetistas. Dizia que o Cristo fora, de fato, um homem real, porém a sua substância ou natureza era apenas composta dos elementos psíquico e pneumático, isto é, de perispírito e do espírito propriamente dito, como hoje diríamos.

            O elemento psíquico, mesmo entre os filósofos não materialistas, tinha o sentido de um elemento de natureza física ou animal, formando como que o intermediário entre o espírito e o corpo, e constituía o sopro imortal, o princípio espiritual da vida espiritual ou intelectiva.

            Ptolomeu dizia que a natureza psíquica de Jesus permitiu-lhe sofrer e sentir dor, ainda que nada possuísse de grosseiramente material.

            Abstinham-se os docetas da eucaristia, visto que não reconheciam representar a carne e o sangue de Jesus.

            Os ofitas (é um nome genérico para várias seitas gnósticas cristãs da Síria e do Egito que se desenvolveram por volta do ano 100 d.C.) continuaram com as mesmas ideias que, no século VI, foram retomadas por alguns eutiquianos[GK2]  (Da Wikipedia: Relativo ou pertencente ao heresiarca Eutiques (c. 454), presbítero e arquimandrita 

(Da Wikipedia: Equivalente a monsenhor na igreja ortodoxa) da Igreja Oriental, em Constantinopla.) e monofisistas (Da Wikipedia: é o ponto de vista cristológico que defende que, depois da união do divino e do humano na encarnação histórica, Jesus Cristo, como encarnação do Filho ou Verbo (Logos) de Deus, teria apenas uma única "natureza", a divina, e não uma síntese de ambas).

            O Monofisismo surgiu em princípios do século III, amoldando-se às ideias apolinaristas (das quais trataremos mais adiante). No século VI, sofreram os seus adeptos as mais cruéis perseguições, sendo forçados a emigrar para o Egito. Nessa época, o Monofisismo dividiu-se em duas seitas, pois Juliano, bispo de Halicacarnasso, discordando quanto à natureza do corpo de Jesus, afirmava, então, que era fazer injúria à sua divindade supor que o Verbo se unira a uma carne terrestre e corruptível como aquela dos homens “animalizados” e “mal cheirosos”. O Cristo, em sua passagem pela Terra, tivera o seu sempre incorruptível, como aquele de Adão antes da queda, e igual àquele que os outros o creem ter tomado após a ressureição; foi sempre isento da corrupção e das enfermidades, bem como da punição do pecado. Completando os seus pensamentos, Juliano diz que, se o Cristo sofreu, fez voluntariamente, para salvar os homens, mas não por efeito de sua natureza.

            Os que professavam esta doutrina foram chamados aftartodocetas, em contraposição com os corruptícolas. Procedendo do Egito, os incorruptícolas espalharam-se por várias regiões, tendo sido dominantes na Armênia.

            O Maniqueísmo, que contém ideias docéticas, surgido no século III, sofreu muitas perseguições, conseguindo, contudo, espalhar-se pelo Oriente e pelo Ocidente, declinando somente no século XII, devido à violenta oposição da Igreja.

            Os Maniqueus acreditavam na reencarnação, por julgarem-na indispensável ao progresso do espírito humano, visto que, alegavam eles, não é possível que todas as almas adquiram perfeita pureza no decurso de uma única vida mortal.

            As almas que persistem no pecado, após certo número de revoluções, são entregues aos demônios do ar, para serem alimentadas e domadas. Depois dessa dolorosa penitência, voltam as almas a outros corpos, como que para novas escolas, até que, tendo adquirido o grau de purificação suficiente, se transportam, atravessando a região da matéria, ao lugar a que os maniqueus denominam “coluna da glória”. O Espírito Santo, que está no ar, assiste continuamente as almas, espalhando sobre elas suas preciosas influências.

            O maniqueísta Fausto, entre outros, descreve o corpo do Mestre como não sendo humano, mas, sim, formado de elementos celestiais.

            No século XII floresceu na França meridional a seita neomaniqueana dos albigenses. Admitindo, como os cátaros, os princípios antagônicos – o mau e o bom – diziam que Jesus não podia tomar um corpo genuinamente humano, porque viria debaixo do controle do princípio mau. Por conseguinte, seu corpo era de natureza celestial e com ele penetrou a pessoa de Maria; nasceu dela e sofreu, apenas aparentemente.

            Entendiam, ainda, que a redenção do Mestre não foi “operativa”, mas unicamente instrutiva.

            Inúmeros concílios católicos foram realizados com o fim de dar combate à doutrina dos albigenses, a qual, todavia, se propagava cada vez mais rapidamente. A convite do papa, organizaram-se cruzadas militares sob os auspícios de alguns países, os quais desbarataram os albigenses, cometendo as maiores atrocidades. A Inquisição, instituída para esse fim, prosseguiu no bárbaro trabalho de limpeza, e conseguiu, no começo do século XIV, o quase total desaparecimento dessa seita.

            Além de outras diversas seitas que encerravam ideias docéticas, alguns anabatistas foram docetas; Maomé, no Alcorão, veladamente parece referir-se ao corpo de Jesus, e chega a dizer que “Jesus, o filho de Maria, o Verbo e o Apóstolo de Deus, não foi sacrificado senão em aparência”; e o próprio Budismo, numa de suas seitas, apresentou, com relação a Buda, tendência docética.

            Só agora escreveremos sobre Apolinário, visto que, ao que nos parece, suas ideias não interessam ao estudo a que nos propomos, como veremos.

            Alguns autores, ao tratarem do corpo de Jesus, referiram-se às concepções apolinaristas no que estas dizem ter sido impossível o corpo do Cristo, e que descera do céu ao seio da Virgem, mas que não nascera dela.

            Desejando comprovar a veracidade de tais afirmações, encontramo-las, de fato, no Grande Dicionário Universal do século XIX, de Larousse, e em alguns outros dicionários talvez calcados nessa obra, que, sucintamente, sem trazer qualquer elação bibliográfica, nos pareceu ser a de que aqueles autores se serviram.

            Entretanto, estudando a vida e a obra de Apolinário em outras Enciclopédias, teológicas ou não, que profusamente se referiram a esse bispo, citando a redação dos anátemas proferidos contra a sua doutrina, e com a apresentação final de extensa bibliografia, é desconcertante dizer nada havermos encontrado a respeito daquelas questões inseridas no “Larousse”. Infelizmente, por não possuirmos os livros indicados nas bibliografias como referentes a Apolinário, não pudemos verificar a veracidade ou não da exposição oferecida pelo Grande Larousse. Esperamos, todavia, que outro estudioso mais paciente e dedicado esclareça essa dúvida.

            Apresentamos, pois, a síntese do estudo que levamos a efeito:

            Apolinário (o jovem), bispo de Laodicéia, nascido talvez a 300, e falecido em 390 ou 392, era filho de Apolinário (o antigo), com quem trabalhou na adaptação da Bíblia à literatura profana. Foi mestre de S. Jerônimo, que se julgou diante dele, assim como de Orígenes e outros Padres, “imperitíssimo comparado com eles”. Diz o autor da Vulgata que Apolinário escreveu inúmeros livros volumes sobre a Sagrada Escritura e que os trinta livros contra Porfírio foram muito admirados.

            Apresentou ele refutações ao Arianismo e ao Maniqueísmo, escreveu algumas obras em verso e fala-se de uma versão poética da Bíblia, produzida, parece, somente por ele, sem o auxílio do pai, como pensam alguns autores.

            Sócrates, o Escolástico, referindo-se a ele, disse: “foi um sábio em ciência”. S. Basílio diz que “devido ter ele grande facilidade em escrever, sobre qualquer assunto, conseguiu encher o mundo com seus livros”.

            Acredita-se ter sido 360 o ano que Apolinário iniciou o ensino de uma nova concepção a respeito da natureza do Cristo. Sofrendo a oposição da Igreja, desta por fim se separou, surgindo assim a seita dos apolinaristas.

            Mesmo depois de seu afastamento dos Pais ortodoxos, estes continuaram a trata-lo com respeito e até com certa afeição.

            Santo Epifânio conta que ele próprio, bem como Santo Atanásio e “todos os católicos”, muito amaram o “ilustre e venerável ancião Apolinário de Laodicéia”, e que, ao ouvirem falar de sua heresia, não puderam acreditar que tão grande homem houvesse caído em semelhante erro.

            O Sínodo de Alexandria (362) parece ter conhecimento das ideias de Apolinário, rejeitando-as, não mencionando, porém, o nome do autor. No Sínodo romano (374), foi Apolinário julgado herético e condenado, não sendo, contudo, nominalmente incluído nos cânones. Outras reuniões eclesiásticas condenaram a doutrina apolinarista.  O Sínodo de Antioquia (378) lança o anátema contra aqueles “que dizem que o Verbo de Deus habitou na carne humana, em substituição à alma racional e inteligente”. O papa Dâmaso, no Concílio de Roma (380), lançou idêntico anátema. O primeiro cânon do Concílio Ecumênico de Constantinopla (381) registra também a condenação.

            Serviu-se Apolinário, para sua concepção, dos três elementos componentes da natureza humana, segundo a escola neoplatônica, a saber: o corpo; a alma; (“anima animans”), princípio que atua e informa o corpo, sendo comuns aos homens e aos animais, tornando-os em seres vivos; e a mente ou espírito, agente do pensamento, da razão, da consciência, da vontade livre, em síntese: a essência da personalidade humana. Em apoio dessa divisão, citava passagens das Escrituras, como por exemplo, a “Primeira Epístola aos Tessalonicenses”, 5:23 – “e o vosso espírito, alma e corpo sejam conservados completos, irrepreensíveis”. Desses três elementos, o corpo e a alma formavam o ser “natural” (a máquina, teria dito Platão) controlado e guiado pela razão ou espírito. Mas – comentava Apolinário – o espírito no homem é transformável, falível, cheio de pecados inerentes à natureza humana e, por isso, não deve tomar lugar no Cristo, o que tiraria o valor à Redenção.

            Raciocinando ontológica e psicologicamente, Apolinário criou, então, a doutrina que admitia, na pessoa do Cristo, o corpo humano e a alma, mas não a mente racional humana.  Esta é o Logos ou este lhe toma o lugar, ornando-se, assim, o centro racional ou espiritual.

            Atribuiu-se a Apolinário o haver sustentado que a divindade (Logos) sofrera, morrera, etc.; porém, isto são mais consequências tiradas dos princípios de Apolinário que propriamente opiniões do bispo, comentam estudiosos católicos.

            Baseando-se em algumas passagens do Novo Testamento, para Apolinário foi Jesus realmente um ser de natureza humana, por possuir alma e corpo, embora controlado e guiado pelo Espírito divino que lhe constituía a natureza divina. O Cristo não foi, pois, um Homem-Deus e sim um ser partilhando do homem e de Deus; nem inteiramente homem nem inteiramente deus.

            Os Padres ortodoxos contemporâneos, rejeitando a teoria de Apolinário, não estão muito interessados, declara um escritor eclesiástico, sobre a verdade ou a inverdade contida de três elementos, questão que foi levantada na Idade Média, e que vem tem suscitado veementes discussões entre os teólogos. Os primeiros contraditores de Apolinário escandalizaram-se principalmente com a asserção de que ao Cristo faltou um elemento de completa natureza humana.

            Diante de toda essa análise, podemos concluir que Apolinário      foi um trabalhador cristão, admirado por seus contemporâneos, e que a sua doutrina, nada tendo a ver com a do corpo fluídico de Jesus, foi fruto natural da época, quando diferentes ideias surgiam no afã de explicar a tese católica da união divina à humana.

            Dissemos acima que Apolinário combateu o Arianismo, doutrina do presbítero Ário, apresentada no princípio do século IV, contrária à da S. S. Trindade, e que chegou a abalar os alicerces do Catolicismo dominante, que desapareceria se não fossem as lutas e perseguições violentíssimas movidas contra os sectários da doutrina mencionada. Baseado nos Evangelhos, Ário dizia que, se o Filho está subordinado ao Pai, não é, pois, absolutamente Deus; não é consubstancial com o Pai, portanto não é coeterno com Este, não O igualando em dignidade e poder. Logo, Jesus não é eterno e sim, concluía Ário, uma criatura gerada antes da criação do mundo por ato da vontade de Deus, e deste não tem a mesma essência ou natureza, apesar de ser criatura tipo, a mais perfeita. Esta perfeição é tal – considerava Ário – que, para os terrestres, Jeus poderia mesmo ser um Deus. A doutrina arianista reapareceu, sob outros nomes, em parte, nos séculos XVI, XVII, XVIII, bem como, em parte, qual a do Docetismo, foi revelada, revivescida, pelos Espíritos que nos trouxeram a Terceira Revelação.    

            Com a ânsia espontânea e nobre de esclarecer a Humanidade, aqueles homens foram incompreendidos e passaram a sofrer perseguições dos quase que se sentiam com o privilégio da iluminação de Mais Alto. Que esses exemplos de incompreensão cristã, do passado, não revivesçam, perturbando a marcha evolutiva do pensamento humano. Os homens de responsabilidade doutrinária deverão reconhecer a necessidade de nos respeitarmos uns aos outros, lembrando-nos de que o livre-arbítrio, ou melhor, a liberdade de crença é uma das maiores, senão a maior conquista de século, por permitir a cada um procurar as luzes que o auxiliem a vencer a jornada terrena e satisfaçam à inteligência e ao raciocínio próprios.

            O professor de Escritura Sagrada, Arendsen, de uma das Universidades inglesas, num estudo do Docetismo, anota um renascimento de ideias docéticas em círculos espiritistas, embora, - diz ele - menos fantásticas e extravagantes que as do passado. Sim, confirmamos nós outros, a obra de Roustaing ressuscitou o pensamento fundamental do Docetismo - o corpo fluídico de Jesus. Cumpriu, destarte, o Paracleto uma das facetas do seu infindo programa esclarecedor, e, realmente, sem qualquer extravagância.

            Ao deliberar a confecção deste trabalho, assaltou-nos apenas o desejo de trazer uma explanação menos imperfeita das ideias que se prendem ao Docetismo, visto que este termo é encontrado em importantes obras espíritas e comumente é referido nas conversações entre espiritistas.

            Trabalho sem valor, já o sabemos; todavia esperamos que outros, mais cultos e dispondo de obras cuja raridade não nos ensejou um estúdio mais profundo, possam melhor desenvolver o assunto, trazendo-nos as luzes a que todos aspiramos.

  Bibliografia

Grand Dictionnaire du XIXe Siècle - M. Pierre Larrousse.

La Grande Encyclopédie.

The Catholic Encyclopedia - Various editors.

Encyclopedia of Religion and Ethics - Edited by James Hastings.

Encyclopédie Théologique - Publiée par M. L’Abbé Migne.

Enciclopedia Universal Ilustrada.

Dictionnaire de Théologie Catholique - G. Bareille.

Phylosophumena on Réfutation de toutes les héresies – Hippolyte du Rome.

Dicionário Universal das Heresias, Erros e Cismas – Antônio Gomes Pereira

El legado de Egipto - Publicação da Universidade de Oxford.