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terça-feira, 22 de dezembro de 2020

Obra meritória

 


Obra meritória

A Redação         Reformador (FEB) 3 Outubro 1919

             O Reformador ilustra hoje as suas páginas de uma nova e valiosa colaboração.

                Nosso confrade Dr. Chrisanto de Brito pensou e pensou bem em dar à nossa bibliografia uma obra de incontestável alcance, fixando em vernáculo a personalidade do fundador do Espiritismo - Allan Kardec.

                Respigando, consciencioso, tudo quanto se lia dito e escrito sobre o mestre, e mais - estudando-o em sua própria tarefa de missionário, presta o solicito confrade o melhor dos serviços a causa que ele simboliza e, ao mesmo tempo, a mais bela das homenagens àquele espírito, que, ao contrário do que vulgarmente acontece, avulta ao transcorrer dos anos.

                E por isso mesmo que assim é, o trabalho do nosso companheiro será dos que ficam para as gerações do futuro.

                Sintético, conciso, sóbrio como convém ser em tentames deste quilate, a fim de dar aos estudiosos uma noção impessoal e desapaixonada, mas rigorosamente verdadeira do seu modelo, estamos certos de que o estudo do nosso companheiro, destinado a edição definitiva em livro, será por todos apreciado pela sua imparcialidade e senso crítico do autor.

                Do seu estilo simples e sugestivo, defluindo límpido e sereno como regato em macio álveo, nada diremos para que o leitor melhor o julgue e se delicie com ele.

                E fique, assim, consignado o nosso reconhecimento à preferência que nos deu o autor, para as colunas desta Revista, preferência tanto mais valiosa quanto oportuna, permitindo-nos dar, nesta data memorativa do venerando mestre, os prolegômenos do seu criterioso labor.

                 Ei-lo:

                            Allan-Kardec e o Espiritismo

             Há duas fases na vida de Allan Kardec. Uma anterior à constituição do Espiritismo, mais material, conquanto já superior na ordem moral, outra inteiramente espiritual, em que admitindo e aceitando a doutrina nascente, faz dela a preocupação permanente do resto da sua vida, e tanta elevação e vigor imprime na coordenação, defesa e difusão dos seus princípios que ele a encarna, marcando com a doutrina abraçada a maior data da história da humanidade depois da vinda de Jesus. É sobretudo dessa segunda fase que pretendo falar aqui.                                                                             

             Antes de tudo, é preciso mostrar como o homem em Allan-Kardec se completa nas duas fases da sua vida, como a segunda não seria talvez possível sem a primeira.

            Nascido em Lyon, na França, em 3 de Outubro de 1804, no seio duma família  respeitável pelas suas virtudes, ele recebeu dos pais a educação a mais aprimorada. Pode-se dizer portanto que o meio foi mais propício para o desenvolvimento das suas boas tendências. Todas aa qualidades morais que concorrem para formar o homem de bem, foram logo desabrochando no jovem Hypolitte Rivail, e constituíram sempre o fundo do seu caráter.

            Quando apareceu muito depois o grande movimento espírita, de que ele foi o diretor, ele já era um homem experimentado nas lutas da vida, contando já mais de 50 anos de idade, mas sempre guiado por uma consciência reta. O Espiritismo não veio trazer a transformação súbita do seu caráter. Não veio modifica-lo de chofre, dando-lhe imediatamente qualidades que não possuía. Já o encontrou, por assim dizer, formado. Apenas o lapidou. Ele já era certamente um espírito adiantado, com um longo tirocínio de outras existências e outras missões, perfeitamente aparelhado portanto para desempenhar a nova missão que trazia.

            Na vida, a coragem nunca lhe faltou. Ele não desanimava nunca. A calma foi sempre uma das feições mais salientes do seu caráter. Ficando logo arruinado, perdendo toda sua pequena fortuna no começo da vida, mas sempre exercitando a caridade, e já casado com a mulher que foi depois incansável na propaganda das suas ideias, ele consegue, por meio de um labor obstinado readquiri-la quase toda no ensino, escrevendo, ao mesmo tempo, trabalhos didáticos, fazendo tradução de obras estrangeiras ou preparando a escrituração de estabelecimentos comercias. Ainda assim, não lhe faltava a coragem para fazer benefícios à mocidade pobre, abrindo cursos gratuitos de ciências e línguas. Era essa mesma coragem que ele devia mostrar mais tarde no momento tempestuoso da formação da doutrina, recebendo sempre com a maior serenidade, sem nunca revidá-los, os ataques mais veementes dos inimigos, as injustiças e as ingratidões dos amigos. As cartas anônimas, as traições, os insultos e a difamação sistemática, lembra Leymarie, um seu íntimo, no dia do seu passamento, perseguiam esse homem laborioso, esse gênio benfazejo e lhe abriam moralmente feridas incuráveis. Tudo porém ele sabia perdoar.

            Ele nunca fugia às discussões, ao contrário, as desejava sempre, não por espírito de combatividade, mas para elucidar os assuntos. Nós queremos a luz, venha donde vier, dizia ele. O que quer dizer que não era homem orgulhoso. Ele nunca procurava impor suas opiniões a ninguém. Ele discutia sempre lealmente e naquilo que não constituía ainda uma questão já resolvida pelos Espíritos numa concordância geral, os seus esclarecimentos eram mantidos como uma opinião meramente individual, eram emitidos apenas como sua maneira de ver. E sempre estava disposto a renuncia-la desde que ficasse demonstrado que

estava errado. Todos os homens podem enganar-se, dizia ele uma vez a Jobard, (1) mas se há grandeza em reconhecer os erros, há sempre baixeza em se perseverar numa opinião que se reputa falsa.

 (1) Revue Spirite, 1858, pag. 198

             Dessa ausência de orgulho provinha necessariamente a tolerância. Assim como não pretendia impor suas opiniões a ninguém, também respeitava a dos outros, inclusive as crenças. Sempre ele praticou o que alegou depois em 1868: “A tolerância sendo uma consequência da moral espirita, ela nos impõe o dever de respeitar todas as crenças. Não se atirando pedras em ninguém, desaparece o pretexto das  razão os outros acabarão por pensar como eu; se eu não tiver razão acabarei por pensar como os outros.” E essa tolerância sendo um dos vestígios da sua elevação moral, não era somente aplicada nos atos da vida pública como nos da vida privada.

            De um humor as vezes alegre, na intimidade ele era um causeur despreocupado mas brilhante, tendo um talento especial, refere um seu biógrafo, para distrair os amigos e convidados que os tinha sempre em casa, dando alguns vezes um certo encanto às reuniões.

            Quem contempla hoje um retrato de Allan Kardec, não pode ter ideia portanto do que foi o seu caráter, não pode imaginar que naquela figura vigorosa, de fisionomia tão austera, aparentando antes uma rigidez exagerada de sentimentos, pouco disposta a  perdoar faltas, escondia-se uma alma tão boa, tão simples e tão generosa.

            O princípio enfim que constitui para o Espiritismo o fundamento da sua moral: “Fora da caridade não há salvação.”, pode-se garantir que foi sempre na vida a sua bandeira: “Faço o bem quando me permitem as minhas condições” já dizia ele num antigo documento encontrado entre os seus papéis, “presto os serviços que posso; nunca os pobres foram enxotados de minha casa, nem tratados com dureza, antes são acolhidos sempre com benevolência. Nunca lamentei os passos dados em favor de ninguém. “

            “Continuarei a fazer o bem que me for possível mesmo aos meus inimigos, porque o ódio não me cega; estender-lhes hei sempre a mão para os arrancar aos precipícios, quando para isso se me oferecer ocasião.” (1)

 (1) “Obras Póstumas”, pag. 302

 


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