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quinta-feira, 31 de dezembro de 2020

Como é bom ser bom

             

Como é bom ser bom

José Brígido (Indalício Mendes)   Reformador (FEB) Junho 1963

             - Deixe disso, Tiago, deixe disso. Tenho tanto que fazer e você ainda quer que eu vá perder a noite para ajudar a quem não conheço?

            - Não vejo nada demais nisso. Eu também trabalho muito e sempre que posso “dou uma mãozinha” a quem precisa mais do que eu.

            Depois de curto diálogo, Macário ficou pensativo. As palavras do seu amigo Tiago lhe ficaram dançando no cérebro, o dia todo.

            Afinal - monologava -, que ganharei com isso? Tempo é dinheiro. A gente faz o bem e recebe o quê? A vida está difícil, tenho de “dar duro”, porque, se eu não ganhar dinheiro, ninguém terá pena de mim...

            Dizendo isto, de si para consigo, Macário decidiu definitivamente esquecer o apelo de Tiago. E os dias se passaram.

            Por outro lado, o amigo, que se esfalfava no trabalho diário pelo pão da família, ainda se dispunha, nas horas de folga, a ajudar um pouco aos que necessitavam mais do que ele. Se não podia dar dinheiro, dava cooperação, procurando com outras pessoas, melhor arrumadas na vida, um meio de auxiliar os infelizes.

* * *

            Alguns anos se passam sem alteração no ritmo da vida dos dois amigos. Tiago, humilde e prestante; Macário, ativo, ambicioso e egoísta, seguiam paralelamente o seu destino. O primeiro, modesto, progredira o suficiente para dar à família um pouco mais de conforto; o segundo, entretanto, alçara altos postos no comércio e já estava em situação magnifica, morando em apartamento luxuoso, no Leblon, com três automóveis, lancha a gasolina, casa de campo ampla e vistosa em Nova Friburgo. Ganhara notoriedade e de quando em quando seu nome surgia com elogios nos Jornais e o Rádio e a TV disputavam a sua palavra sobre questões de economia e finanças.

            Tanta felicidade, tanta grandeza, tanta projeção: entretanto, não duraram muito tempo. Certa vez Macário, ao regressar longa visita ao estrangeiro, encontrou o filho gravemente enfermo. Isto não o preocupou muito tempo, porque tinha dinheiro e com dinheiro seria fácil convocar luminares da Medicina para debelarem o mal que ameaçava a vida do menino.

            0s dias, porém, foram-se passando e os luminares não conseguiram positivar a origem da moléstia que entristecera o lar de Macário. Não desanimando, ele fez vir dos Estados Unidos vários especialistas, que, tanto quanto os médicos nacionais e europeus, se mostraram incapazes de uma ação realmente efetiva.

            Enquanto isto ocorria, a mulher de Macário, dona Mirtes, se acabava de sofrimento. Não largava a cabeceira do filho. Ainda que corajosa, percebia que o filho morreria dentro de alguns meses. A alegria que, antes, morava naquele lar, desertara. Poucos amigos acompanhavam com sincero interesse a doença de Silvio. Muitos e muitos, entretanto, faziam visitas convencionais, porque não podiam deixar de agradar a Macário, de quem dependiam. Como negócios são negócios, era mister dar presença em casa de Macário, telefonar-lhe, mostrar, enfim, que estavam também preocupados com a moléstia do menino.

            E tudo corria assim, num ambiente de hipocrisia, porque eles precisavam da influência do prestigioso homem de negócios. Só uns poucos amigos acompanhavam os desvelos de dona Mirtes e a ajudavam, permitindo pudesse ela repousar alguns instantes, sem comprometer o horário da medicação prescrita pelos médicos.

            Macário não tinha muito tempo para estar com o doente. Os negócios o absorviam. Só à noite, quando chegava, bastante fatigado, ia vê-lo e sentir, então, mais de perto, a dor que realmente o acabrunhava, mas que a febre dos negócios atenuava nas agitadíssimas horas de todo o dia.

***

            Mas, vejam vocês como as coisas acontecem nesta vida. Macário só andava de automóvel. Uma tarde, no entanto, bem próximo da estrada de Tairetá, zona de trabalho de Tiago, eles se encontram, quando o automóvel de Macário enguiçou.

            Macário não pareceu lembrar-se logo do antigo amigo. Subira tanto, tanto, que as antigas amizades humildes pareciam ter-se apequenado a ponto de desaparecerem da sua lembrança. Como acontece quando se sobe num avião. A princípio, tudo é visto em suas normais proporções. Depois, à medida que o avião se eleva no espaço, tudo vai diminuindo, diminuindo, que acaba por se sumir à nossa visão limitada. Os campos, as casas e as pessoas vão ficando reduzidas, parecem brinquedos infantis, de tão pequenos, e logo após se apagam à nossa vista.

            - O Macário! Há quanto tempo não vejo você! - exclamou, alegre e feliz, o modesto o Tiago.

            No primeiro instante, Macário olhou com indiferença o homem que a ele se dirigiu com tanto entusiasmo e maior intimidade. Como é que se julgava com o direito de lhe falar daquele jeito? Depois, a memória lhe permitiu identificar Tiago e, então, discreto, respondeu:

            - Ah, Tiago! Como vai?

            - Na boa luta de sempre ... E você?

            - Sempre muito ocupado e preocupado. Tenho um filho, o Silvio, que está muito doente...

            Na sua simplicidade, Tiago o interrompeu:

            - Sinto que posso ajudar-lhe, Macário. Permite-me que o vá ver?

            - Muito obrigado. Agora, não. Ele está em mãos de médicos excelentes. Muito obrigado.

            Tiago percebeu a distância que os separava. Assim mesmo, cedendo a um impulso íntimo, ofereceu-lhe a casa:

            - Olhe, Macário. Eu moro ali, naquela casinha branca e de grades azuis. Quando passar por aqui e nos quiser dar a honra de tomar um cafezinho feito na hora...

            - Obrigado, Tiago. Raramente passo por aqui. Meu automóvel “afogou” e por isso tivemos a oportunidade deste encontro. Se precisar de alguma coisa, procure-me. Tiago, no Pa1âcio do Comércio, na Esplanada do Castelo.

            E se separaram.

            Macário depressa se esqueceu do encontro. Preocupava-o a conclusão de importante negócio entabulado com capitalistas norte-americanos. Não queria atrasar-se, porque tempo é dinheiro.

            Tiago, porém, ficou parado na estrada, vendo o carro sumir-se na poeira do caminho. Sorria um sorriso tímido e melancólico, pensando consigo mesmo: - Pobre amigo: sempre preocupado em ganhar tempo...

***

            Naquela noite, no humilde centro espírita que dirigia, Tiago consultou o Guia a respeito do estado e saúde do menino.

            - Não é bom. Até agora os médicos, apesar de competentes e dedicados, não acertaram com o diagnóstico. O que ele tem é menos material do que espiritual. Mas o organismo está sendo minado por um obsessor. Nada poderemos fazer de longe.

Precisamos penetrar o ambiente em que vive a família, para melhor realizarmos a tarefa. Ele, além das responsabilidades que trouxe da reencarnação anterior, sofre os efeitos do materialismo do pai; cuja frieza tem causado muitos males e desapontamentos, atraindo sobre ele as mais negativas vibrações.

            - Desconfio, entretanto, que não poderemos ser úteis, pois a família não nos dará acesso, quando souber que somos espíritas.

            - Tente, Tiago. Há lá uma criatura boníssima, que sofre muito. É católica, mas não intolerante. Procure falar-lhe. Quem sabe se não concordará em nos auxiliar em favor do filho? O amor de mãe pode tudo, Tiago.

***

            Já no dia imediato, Tiago, depois de haver conseguido localizar a residência de Macário, o que não foi difícil, dada a sua projeção na sociedade, bateu à porta.

            - Desejo falar à senhora do Dr. Macário.

            - A quem devo anunciar? - perguntou o criado.

            - Peço dizer que Tiago Vilares deseja falar-lhe a respeito do menino Sílvio.

            Depois de admitido à sala de visitas luxuosa e confortável, Tiago compreendeu a situação de ampla prosperidade do amigo. Imediatamente, apareceu dona Mirtes, simples, distinta, bastante abatida, mas de olhar brilhante.

            - Sim, senhor... Tiago. A que devo sua visita?

            - Minha senhora: durante muitos anos fui amigo do seu marido, o Macário. Há dias o vi e soube do estado de saúde do seu filho, Se me permitir, procurarei ajudá-la.

            - O senhor é médico?

            - Não, minha senhora. Sou apenas um espírita entregue ao trabalho de ajudar o próximo no que puder. Soube que os médicos até hoje não lograram desvendar a origem do mal do seu pequeno Silvio. A Medicina não poderá curá-lo, acredite. Se confiar em mim...

            - Nada farei sem autorização do meu marido. O senhor compreende a enorme responsabilidade que eu teria de assumir. Falarei com ele.

            - Está bem, minha senhora, está bem. Devo adiantar-lhe que o seu filho está envolto em pesadas influências espirituais. Temos de andar depressa para salvá-lo. Assim, logo que puder, se concordar conosco, queira chamar-nos. Somos obreiros do Cristo. Nada fazemos por nós, que nos constituímos meros instrumentos do Alto.

            Quando Tiago saiu, dona Mirtes ficou pensativa. Não tardou que chorasse muito. Não sabia o que decidir, pois cabia-lhe o dever de dar ciência a Macário do ocorrido.

            Quando este chegou, ao anoitecer, e soube da visita de Tiago, teve um impulso de raiva:

            - Era só o que faltava; deixar de lado médicos eminentes para dar crédito a um bobalhão desses metido em bruxarias. Não, Mirtes, nada disso. Você acha que um sujeito de poucas letras, sem posição relevante no mundo social, pode, por meio de mágicas, restituir a saúde do nosso filho? Não! Não acredito nessas asneiras.

            E tudo ficou como estava.

            No Centro espírita, Tiago não deixava de trabalhar por Silvio, por meio de irradiações frequentes. Isto, no entanto, não poderia curá-lo. Apenas lhe dava um certo alívio porque os bons Espíritos buscavam animá-lo para que pudesse resistir galhardamente à prova a que estava sendo submetido por um obsessor poderoso, contra o qual nada podiam fazer sem que tivessem a ajuda dos familiares do menino.

            Um mês depois, o estado de Silvio se agravou muito. Os médicos foram francos, desenganando-o. Dona Mirtes definhava cada vez mais, suportando mal a tortura que era para ela o sofrimento do filho amado. O próprio Macário chegara a ponto de renunciar a todos os sérios compromissos que o prendiam à vida dos negócios para ficar ao lado do filho.

            Certa noite, Jogo após uma crise de Sílvio, dona Mirtes desfaleceu. Foi um reboliço em casa. Todos ficaram atarantados com a situação. E Macário, tão hábil em sua especialidade, estava apalermado. Enchera a casa de médicos, mas estes não chegavam a um acordo acerca do estado de Silvio. Quando dona Mirtes recuperou os sentidos, mandou chamar Macário:

            - Ouça, Macário: tudo está perdido?

            - Sim, Mirtes. Pelo que afirmam os médicos os dias de Sílvio estão contados...

            - Se assim é, quero que chames aquele teu antigo amigo Tiago, com urgência, para tentar alguma coisa em favor do nosso filho.

            - Mas, como?! Você é católica fervorosa, não pode meter-se com essas bruxarias de espiritismo, não pode ombrear com macumbeiros, Mirtes! Que dirá o padre Alexandre? Em que situação ficarei diante do arcebispo e do cardeal? Você sabe que preciso da simpatia deles para conservar o alto nível das minhas relações profissionais com influentes homens de negócio e com o Governo. Que pretende você fazer?

            - Estou resolvida a tudo, Macário. A vida do meu filho vale mais do que tudo isto. Prefiro ser pobre e viver feliz na mais estrita modéstia, a continuar mergulhada no fausto e trazer o coração despedaçado pela dúvida e pela dor. Além disso, antes de ser católica, sou mãe, Macário. Se a religião me impõe uma atitude de preconceito e intolerância, romperei com ela. Já fiz inúmeras promessas, desde que Sílvio adoeceu. Nada alcancei, não obstante a minha sinceridade e tudo quanto tenho feito pela Igreja. Se tudo está perdido, na opinião do Ciência, deixa-me, agora, fazer eu mesma a minha última tentativa.

            Acabrunhado, Macário, que amava intensamente o filho, acabou concordando. Meteu-se num automóvel e partiu, na noite escura e quente, em busca de Tiago. Este se achava no Centro, em pleno trabalho.

            Quando Macário chegou, disseram-lhe:

            - Faz favor de esperar um pouco, aqui. “Seu” Tiago está falando com o Guia. Vou avisá-lo.

            Nessa mesma ocasião, já o Guia havia prevenido Tiago:

            - Vá; há visita para você, meu irmão. Traga-o cá.

            Para encurtar razões, diremos logo que Macário, muito sem jeito, sentindo-se mal em ambiente tão humilde, se aproximou do Guia, que o recebeu cordialmente.

            - Quanto a você, procure também um médico, antes que seja tarde. O seu caso pode ser resolvido pela Medicina da Terra. Não se descuide. Seu filho ficará bom. Vai custar um pouco, porque demoraram muito. Mas tudo terá de melhorar. Há coisas na vida que valem mais do que dinheiro. Reduza as suas preocupações com os negócios e devote algum tempo aos problemas da alma. Pense um pouco em Cristo meu amigo. Há muita gente que passa fome, que não tom roupa que substitua os farrapos que veste! Há tanta criança precisando de assistência, tantos pais reclamando um emprego para não permitir que os filhos se estingam de inanição! E você sentirá a vida melhor, meu amigo, quando compreender que a vida não tem por finalidade o luxo e que o dinheiro não é o objetivo da nossa vinda à Terra.

***

            Após dois meses de trabalho exaustivo, Tiago e seus companheiros foram recompensados. Silvio ficara salvo. Seu obsessor, devidamente instruído pelos doutrinadores espíritas, acabou por se arrepender do mal que praticava e se mostrou mesmo inclinado a renunciar para sempre à ideia de vingança, incorporando-se aos obreiros do bem que colaboravam com o modesto Centro Espírita dirigido por Tiago.

            De uns anos a esta parte, o nome de Macário não anda nas páginas dedicadas aos altos negócios, nos jornais importantes. Mas é comum vê-lo entre aqueles que, por seu espírito caritativo, concorrem para aliviar as dores do mundo. O homem frio e interesseiro desapareceu. Surgiu nele um outro, mais humano porque mais compreensivo e mais generoso.

            Por isto, com lágrimas nos olhos, abraçado a Tiago, ele confessou com deliciosa humildade:

            - Meu querido amigo Tiago: Como é bom ser bom!




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