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quarta-feira, 26 de fevereiro de 2020

Folha seca de Outono...



Folha seca de Outono
José Brígido (Indalício Mendes)
Reformador (FEB) Fevereiro 1947

            Indicando um jequitibá enorme, que ameigava a terra com a sua sombra confortadora, o ancião, enxugando uma lágrima, que bem podia ser de saudade como de amargura, comentou: - “Aquela árvore que domina a chácara do solar em que nasci, majestosa e serena em sua grandeza, poderia contar muita coisa bela, muita coisa triste, muitos romances encantadores e tragédias inúmeras... Poderia, sim. Mas a sabedoria de Deus não permite que as árvores falem... Talvez para que elas não percam sua beleza, não maculem sua inocência e não a envileçam com a narrativa de atos que fogem à harmonia da Natureza ...” E o velhinho calou-se. E tirou da face, com a mão encarquilhada e trêmula outra lágrima fugidia...  

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            Tudo está certo na vida, até mesmo os erros humanos. Parecerá estranho que assim seja, mas, considerada a diferença de grau evolutivo de cada indivíduo, compreende-se que os erros e agravos de uns, amalgamados aos acertos e ao bom ânimo de outros, formam fases, estádios de progresso, que cada qual vai vencendo na medida de suas possibilidades. Quando a superioridade moral dum homem é exercida no sentido de corrigir a inferioridade de outros, pode-se dizer que o progresso se encontra em marcha. Os mais fortes terão que dar a mão aos mais fracos, sem o que retardarão o próprio desenvolvimento. Quem mais tiver, mais será obrigado a dar; quem der mais, muito mais receberá. Este simples axioma evidencia a necessidade de o homem ser progressivamente menos egoísta, Lá está no Evangelho de Lucas:             "...Perdoai e sereis perdoados. Dai e ser-vos-á dado".

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            - E os homens ainda se queixam da vida, meu filho; ainda a maldizem, esquecidos de que tudo devem, trânsfugas que são do espírito fraterno que deveria unir fortemente as criaturas. São ricos de bênçãos e dádivas, porém pobres, paupérrimos de coração. Mais depressa enxergam o argueiro no olho de seu semelhante, do que a trave no próprio... Ah! se eles fossem como as árvores, que tudo recebem de Deus, nada dos homens, mas a estes dão tudo - sombra, flores, frutos, seiva e lenho - como seriam mais felizes! É o egoísmo que os desgraça, que os atira às guerras, gerando a dor, o ódio, a fome, o luto e o desespero. Todavia, apesar de tantas contradições, tudo está certo no concerto universal, porque Deus escreve direito por linhas tortas. Algum dia o homem vencerá a si mesmo e, então, será mais belo, mais puro, ainda melhor que as árvores!

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            A Verdade anda solta por aí: no céu, nas estrelas, na terra, no mar, nas montanhas, na poeira das estradas, no canto dos pássaros, na glória e na decadência dos povos, no riso e no gemido do homem... Cada qual a admite a seu jeito, a maioria, que é imediatista por vício de educação, quer pôr o dedo em cima dela, como Tomé, para se certificar da realidade sensorial... E quanta coisa, filho meu, escapa ao nosso tato, mesmo a todos os nossos sentidos! É que a Verdade é tão simples que muitos nela não creem... O famoso sonho de Públio Cornélio Cipião, contado por Cícero, nada mais foi que uma revelação estupenda. Vejamos alguns trechos: “A Vida é caminho para o céu e para esta assembleia, dos que já viveram, e que, libertos do corpo, habitam este lugar que estás vendo”, E também: “Esforça-te, sim, e sabe que tu não és mortal, mas apenas teu corpo; nem és o que por tua imagem se parece, mas cada qual é o seu espírito e não essa figura que se pode mostrar a dedo”. E ainda: “Exerce, pois, as forças de tua alma em funções úteis”. E mais: Decerto, vivem - respondeu - todos aqueles que escaparam dos vínculos corpóreos como de cárceres; pois em verdade, aquilo a que chamas vida, é que é a morte”. Nem foi por outra razão que o Cristo disse, de uma feita: “Eu sou a ressurreição e a vida; quem crê em mim, ainda que esteja morto, viverá...”

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            E Pitágoras fala pela palavra de Ovídio em “Metamorfoses”: “Homens assombrados pelo medo da gélida morte, porque temeis o Estige (na mitologia grega, é uma ninfa e também um rio infernal no Hades dedicado a ela), as trevas e as penas de um mundo imaginário, nomes vãos, fábulas dos poetas? Ou consuma a chama os vossos corpos, ou em podridão se desfaçam, não julgueis por isso sofrer mal algum: as almas são imortais! e sempre, deixando um domicílio, vão habitar e viver em outro. Eu mesmo, bem me lembra que era Euforbo Pantoides no tempo da troiana guerra e que me atravessou o peito a pesada lança do Atrida mais moço”. Reconheci há pouco, no templo de Juno, em Argos, o escudo que meu braço trazia.”  E aduz: "Nascer não é mais que começar a ser sob nova figura. E morrer é deixar de existir sob a forma antiga”. Diante de todas essas verdades, é mister que esta outra jamais seja esquecida: “Não se poderá viver sem a pureza da alma”, salientou Lucrécio, ao fazer o elogio de Epicuro.

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            O ancião silenciou. Meditou um instante, fechou os olhos cansados e acrescentou: “Meu filho: aquela velhinha que passa, todas as manhãs, vacilante, mas corajosa, diante da tua janela, é um símbolo. A face macilenta, marcada pelos anos que já viveu, parece uma pobre folha seca de outono... Está na idade em que a alma pode recordar fugazes momentos de uma primavera de luz, mas o corpo já se divide entre um outono triste e um inverno mais triste ainda... Entretanto, ela já esplendeu nos salões iluminados da sociedade; perturbou corações juvenis; fez a alegria e a amargura de muitos admiradores. Porém, de tanto se lembrar de si, esqueceu do próximo... Entrementes, a Lei continuava exercendo seus inexoráveis efeitos, e, um dia, a primavera lhe foi fugindo, fugindo... E quando aquela mulher formosa se apercebeu da situação, o Sol já se escondia atrás do monte e o crepúsculo tingia o céu de tons rubro-violáceos, precedendo a noite. E o tempo passou ... E ela nada fez de útil... Escrava de futilidades, viveu a vida artificiosa da fantasia, desprezando a realidade que a cercava... E assim permitiu que a terra, em seu derredor, permanecesse estéril ...

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            - Meu filho: aquela velhinha é um símbolo. Melancolicamente, um símbolo...



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