A Codificação
e as ideias do Mundo atual
Parte 1 / 2
in Reformador (FEB) Abril, 1957
Ao comemoramos o primeiro centenário da Codificação, seria interessante fazermos uma síntese dos pontos em que a Doutrina Kardequiana difere das doutrinas e práticas correntes que governam o mundo em nossos dias.
O primeiro ponto básico é a demonstração científica, clara, inconcussa da sobrevivência e da responsabilidade individual e coletiva.
A concepção espiritualista da vida foi asfixiada pelas necessidades materiais, e os membros das igrejas passaram a viver esquecidos da vida eterna e só cuidadosos da vida material.
Passou-se a chamar “real” apenas ao material e a considerar a vida da mesma como mero “ideal” nebuloso e secundário.
Baseando-se em fatos bem verificados, Kardec repôs as coisas em seus lugares: demonstrou que a matéria é passageiro agregado, por vezes ilusório, e a grande certeza é a eternidade da vida manifestando-se em formas progressivas, sempre melhorando e embelezando-se em todos os seus aspectos morais e intelectuais. Desta verdade básica parte todo o sistema filosófico de Allan Kardec, com todas as suas consequências e responsabilidades. Ele restaurou a convicção espiritualista fundamental que forma a essência mesma de todas as grandes religiões da Humanidade.
Ainda com alicerce sobre fatos repetidos e comprovados, provou velhos ensinamentos sobre a certeza da salvação universal, em oposição aos dogmas materialistas do nada além da morte e dos ensinos eclesiásticos sobre a condenação eterna de grande parte da Humanidade e do aniquilamento total e eterno de todos os demais seres vivos. Ao contrário de tudo isso, Kardec confirma a doutrina científica da evolução universal que abrange todos os reinos da Natureza, elevando-os à espiritualização através dos tempos e dos mundos; confirma e explica a doutrina religiosa da predestinação para o bem, e nega a predestinação para o mal. Chegando passo a passo à Doutrina do mais absoluto otimismo e anulando o pessimismo de outras crenças e escolas, umas com etiqueta materialista e que ensinam a evolução das espécies pela aniquilação dos indivíduos menos aptos, demonstra Kardec o progresso e o aproveitamento igualmente dos ineptos e desajustados.
Demonstra o erro da doutrina que reconhece o progresso só da sociedade humana e o nega para o indivíduo, e demonstra que o progresso social não é senão o efeito do progresso individual através das encarnações sucessivas.
Condena toda e qualquer forma de retribuição material por serviços espirituais prestados por médiuns, doutrinadores, servidores religiosos de qualquer confissão, e estabelece que tais serviços só podem realmente existir quando prestados por amor e com abnegação, mas nunca contra pagamento de qualquer espécie. Consequentemente só pode prestar tais serviços quem possua alguma meio de subsistência, e só enquanto, impulsionado pela convicção, pela fé, pelo amor, quiser prestar tais serviços, jamais por dever profissional.
Lança por terra o determinismo econômico que tem escravizado o homem através dos milênios e engendrado males incalculáveis em todas as civilizações do passado.
A sede de propriedade, e com ela a de autoridade e predomínio, criou a escravidão com todos os seus horrores; ocasionou guerras apavorantes, revoluções odiosas. Formaram-se castas com privilégios econômicos contra as massas humanas humilhadas e cheias de ódios. Essas castas sempre lutaram para manter seus privilégios; são fidalgos, senhores feudais, sacerdotes, militares despóticos, etc.
O sacerdote, por exemplo, que teria de servir à Humanidade por amor a Deus e ao próximo, tornando-se profissional da religião, passa a servir unicamente a si mesmo. Em tal situação de egoísmo a que é levado pelos interesses econômicos pessoais ou de casta, fica quase sempre abandonado pelos Espíritos superiores e entregue a Espíritos tenebrosos que o levam a todos os crimes como às guerras das Cruzadas, à Santa Inquisição, aos crimes de genocídio contra povos mais fracos ou grupos de convicções diferentes das suas, etc.
Entenda-se que não são os Espíritos superiores que o abandonam e desprezam, é ele mesmo que se atira contra as influências superiores.
Nessa decadência a que é levado pelo interesse econômico, o sacerdote cria partidos políticos, conquista ardilosamente o poder material, filia-se a qualquer forma de governo que lhe assegure o bem-estar material, ainda que seja ao regime fascista.
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Interpretando muito bem os ensinamentos dos Espíritos superiores, a Codificação proíbe qualquer forma de remuneração aos médiuns. Só pode exercer a mediunidade quem tenha alguma profissão e só no tempo livre de seus deveres profissionais. Como todos os homens são médiuns e dependem de inspiração superior, nossos doutrinadores, redatores, escritores e dirigentes de sociedades sentem-se incluídos na proibição e só trabalham por amor. Os poucos que têm tentado violar essa proibição, tem sofrido quedas tremendas que a caridade manda silenciar, mas que todos conhecemos.
O desapego material e absoluto em assuntos de missão espírita já se tornou pedra de toque para distinguir o espírita do mistificador que proceda em nome do Espiritismo.
Todos os grandes médiuns são pessoas extremamente pobres, que exercem profissão modestíssima, mas não aceitam nenhuma espécie de remuneração econômica, mesmo quando esta surja brilhantemente disfarçada.
Os doutrinadores e dirigentes de sociedades exercem as mais diferentes profissões, desde as mais obscuras até as mais elevadas da sociedade, e sempre encontram recursos e meios próprios para ajudarem ao próximo e à divulgação da Doutrina.
Não queremos com isso dizer que haja espíritos perfeitos no mundo hodierno. Justamente o contrário é a verdade: a sociedade humana atual é constituída sobre a propriedade e é mantida pela força. Nenhum homem é livre no meio em que vive. Vivemos contraditoriamente entre duas legislações opostas: a lei moral que manda amar incondicionalmente até o sacrifício, perdoar todas as faltas a todos; e a lei civil, que separa entre bons e maus, nacionais e estrangeiros, empregadores e empregados, pune, faz a guerra e etc.
Não há nem pode haver espírita ou cristão perfeito na sociedade atual. Mas o Espiritismo não é uma revelação limitada ao nosso tempo; é a Revelação progressiva e eterna que terá sua perfeita execução numa sociedade futura que ele mesmo tem de criar, pela compreensão em cada século mais nítida dos verdadeiros interesses do homem.
Um dos princípios da Codificação proclama essa progressividade da Revelação. Kardec a define dizendo que o Espiritismo é a Ciência do Infinito e do Eterno, da qual estamos apenas no A B C.
Os espíritas que tomamos hoje por modelo, os que se consagram inteiramente ao serviço do próximo, com sacrifício próprio, estão ainda sujeitos às contingências do meio que lhes estabelece muitas limitações: não possuem a liberdade nem a possibilidade de fazerem tudo o que desejam. Só num futuro remoto realizarão eles seu próprio ideal de se dedicarem 100% ao serviço da Humanidade, sem injunções do meio em que vivem. Eles anseiam por auxiliar a verdadeiras multidões de sofredores, mas na realidade só prestam serviços e auxilia a um número limitadíssimo de pessoas. Não fazem um milésimo do que seu coração deseja, porque o meio social não os compreendo, é frio e indiferente, quando não mesmo hostil aos seus exemplos e apelos.
Imaginemos um Bezerra de Menezes, recebendo diariamente centenas de doentes paupérrimos que não dispunham de recursos para adquirir remédios nem alimentos de vital necessidade para seu alívio. Receitar drogas, prescrever alimentação e repouso indispensável à restauração da saúde de tais necessitados, sabendo que eles nada poderiam fazer, deveria ser o maior tormento do Médico dos Pobres.
Entretanto nas penitenciárias, o espírita sofre o horror de ver ali as vítimas da sociedade de que ele mesmo faz parte, sociedade que não reconhece nem cumpre seus deveres para com essa multidão de infelizes que nascem nos meios mais viciosos, colhendo em torno de si diariamente exemplos de crimes, sem nenhuma outra educação além daqueles exemplos, sem amparo algum da sociedade. A primeira vez que esta toma conhecimento da existência de cada um deles é para julgá-lo e metê-lo numa enxovia, sem refletir um só momento que o infeliz é produto do abandono em que ela mesma o deixou, que ela é a primeira culpada das desditas dos encarcerados.
A Codificação mostra-nos a responsabilidade social sempre solidária com todos os crimes individuais, porque deixamos o homem sem instrução, sem educação, sem trabalho, sem ideal.
Estudando a lei de trabalho, Kardec nos demonstra que o trabalho é processo absolutamente necessário à evolução normal do espírito. Sem trabalho fica ele estacionário e decai para o vício, para o crime. Daí os perigos da prova da riqueza. O rico recebe meios de trabalhar mais do que os outros nos interesses sociais; mas pode iludir-se e cair na ociosidade, nos gozos, sentindo-se privilegiado detentor dos bens que estão por empréstimo em suas mãos por um curto prazo e que se tornarão sua desventura.
Considerada a necessidade imperiosa de submeter-se o espírito à lei de trabalho, ele peca toda vez que faça uma apropriação sem trabalho: por furto, fraude, jogo, negociatas, sinecuras, exploração do trabalho alheio ou outras formas. Peca contra si mesmo, porque fica estacionado, não progride; e contra a coletividade humana, porque a priva do fruto do trabalho que ele tem o dever de produzir.
O dever do serviço ao próximo que o Espiritismo coloca em primeiro plano, não fica limitado à vida do homem, como em outras doutrinas: vai muito além da morte; Cumpre-lhe recuperar o criminoso desencarnado, reconciliar inimizades, desfazer ódio, estabelecer o amor e harmonia, por meio da educação feita com paciência e abnegação. Aí entram em atividade as sessões de caridade ou socorro a desencarnados, às quais os ingleses dão o nome de rescue circles (círculos de salvação). Ensina a doutrina que os espíritos em baixo nível vibratório, os grandes sofredores, não ouvem nem compreendem a voz dos Espíritos desencarnados que os poderiam educar; só ouvem palavras materiais, porque estão ainda com todas as ilusões da matéria.
Nas sessões bem orientadas são esclarecidos, doutrinados, salvos de situações tormentosas e depois encaminhados a esferas de instrução mais elevadas do que a nossa, verdadeiras multidões de infelizes que se sentiam num inferno.
Nesse domínio há um infinito a fazer-se no mundo. É um serviço de assistência a sofredores e de preciosos ensinamentos para todos nós. Dentre os sofredores que são trazidos a sessões de caridade para receber benefícios, têm saído luminosos trabalhadores, guias espirituais esclarecidos e caridosos.
Desse convívio com os sofredores que recebem esclarecimentos e afeto têm surgido amizades imperecíveis. Há nesse sentido um infinito de trabalho a realizar-se pelos séculos vindouros. Necessitamos de grupos por toda a parte, dirigidos com paciência, amor, abnegação, por pessoas de alto nível moral.
Soubemos da fundação de um grupo destinado a orar exclusivamente pelos suicidas, por serem os maiores sofredores, os mais necessitados de caridade. É uma louvável iniciativa e praza a Deus que o exemplo frutifique por toda a parte.
Os suicidas são inquestionavelmente os mais necessitados, mas há um infinito de outros Espíritos em perturbação, inconscientes de seu estado de desencarnados e que reclamam assistência humana. Quantos milhões de pessoas desencarnam sem conhecimento algum da vida espiritual, ou cheias de ilusões religiosas que se vão transformar em decepções no Além-Túmulo!
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