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sábado, 2 de janeiro de 2021

Carta de Roustaing a Kardec

 

Carta de Roustaing a Allan Kardec

A Redação     Reformador (FEB) Maio 1953

             Esta carta nos foi dirigida pelo Sr. Roustaing, decano dos advogados do Supremo Tribunal Imperial de Bordéus.

            Os princípios nela superiormente expressos, por partirem de um homem da sua posição, hão de fazer refletir, talvez, a muita gente que se presume privilegiada do bom senso e vai, por isso, colocando todos os adeptos do Espiritismo no rol dos imbecis.

 

            “Caro Sr. e venerando chefe espírita:

             Recebi a carinhosa influência e recolhi o benefício destas palavras do Cristo a Tomé: felizes os que não viram e creram.

            Palavras profundas, verdadeiramente divinas, que nos mostram a senda mais segura e racional e que nos conduzem à fé segundo a máxima de São Paulo, que o Espiritismo completa e realiza.

             Rationabili sit obsequium vestrum.    (um serviço razoável (?) )

             Ao vos escrever em Março p.p., pela primeira vez, dizia: eu nada vi, mas li, compreendi e creio.

            Hoje, venho dizer-vos que Deus me premiou por haver acreditado sem ver, uma vez que posteriormente vi, e ainda bem que vi em condições proveitosas, pois a parte experimental veio, se assim me posso exprimir, animar a fé que a parte doutrinária havia propiciado, fortalecendo-a, vivificando-a.

            Depois de haver estudado e compreendido, eu conhecia o mundo invisível tal como o estudante que conhecesse Paris pelo respectivo mapa; ao passo que hoje, pela experiência, pelo trabalho e aturada observação, conheço esse mundo tal como o forasteiro que percorresse a grande capital, o que não vale dizer que lhe penetrasse todos os recantos.

            Todavia, desde princípios de Abril, graças às relações do excelente Sr. M. Sabo e sua família - gente patriarcal e toda ela composta de bons e veros espíritas, pude trabalhar e trabalhei, ora com eles, ora em minha casa, concorrendo a esses trabalhos outros adeptos convictos da verdade espírita, posto que nem todos ainda efetiva e praticamente espíritas. 

            O Sr. Sabó vos enviou o relatório de nossos trabalhos obtidos a título de ensinamento, quer por evocações, quer por manifestações espontâneas dos Espíritos superiores.

            E creia que sentimos tanto de alegria e de surpresa quanto de acanhamento e humildade, ao receber ensinamentos tão preciosos e sublinhados de Espíritos assim elevados, que nos visitaram ou enviaram mensageiros para falarem em seu nome.

            Ah! Quão feliz me considero em não pertencer, pelo culto material, a esta Terra que, agora o sei, não constitui para o homem mais que um lugar de exílio, propiciatório ele expiações e provas!

            Feliz, sim, por conhecer e haver compreendido a reencarnação em toda a sua latitude e consequências, como realidade e não como simples alegoria!

            A reencarnação, sublime e equitativa fórmula da Justiça Divina, tal como ainda ontem a definia meu Guia, tão bela, tão consoladora pela possibilidade de fazermos amanhã o que não pudemos fazer ontem, e que impele a criatura a caminhar para o seu Criador; - essa lei equitativa e justa na frase de José de Maistre, em comunicação que nos deu e vos transmitimos, é ainda, conforme a palavra divina do Cristo, - o caminho longo e difícil de percorrer para chegar às moradas divinas.

            Agora é que eu compreendo as palavras do Cristo a Nicodemos: "pois quê! Sois doutores da lei e ignorais estas coisas... 

            Hoje que Deus me permitiu compreender integralmente toda a verdade da lei evangélica, a mim mesmo eu pergunto como a ignorância dos homens, doutores da lei, pode resistir nesse ponto à clareza dos textos e produzir destarte o erro e a mentira, que geraram e entretiveram o materialismo, a incredulidade, o fanatismo ou a covardia.

            Pergunto como essa ignorância, como esse erro puderam produzir-se, quando o Cristo tivera cuidado de proclamar a necessidade de reencarnar, dizendo: - importa-vos nascer de novo e, daí, a reencarnação como único meio de ver o reino de Deus, o que aliás já era conhecido e ensinado na Terra, tanto que Nicodemos deveria sabê-lo.

            Sois doutores da lei e ignorais essas coisas.” É verdade que o Cristo acrescenta a cada passo – “quem tiver ouvidos de ouvir, que ouça” e mais – “eles têm olhos e não veem, têm ouvidos e não ouvem nem compreendem" - o que se pode aplicar tanto aos seus contemporâneos como aos que lhe sucederam.

            Eu disse que Deus na sua bondade me recompensara pelos nossos trabalhos e pelos ensinamentos que permitiu nos fossem ministrados por seus mensageiros, missionários devotados e inteligentes junto aos seus irmãos, no intuito de lhas inspirar o amor do próximo, o esquecimento das injúrias e o culto devido ao Ente Supremo.

            Eis que agora compreendo as palavras do Espírito de Fenelon, referindo-se a esses mensageiros divinos – “eles viveram tantas vezes que se tornaram nossos mestres.”

            Eu lhes agradeço humilde e alegremente, a esses mensageiros divinos, o nos terem vindo ensinar que o Cristo está em missão sobre a Terra, para propaganda e êxito do Espiritismo - essa terceira explosão da bondade divina, que colima a última palavra do Evangelho – “Unum ovile et unus pastor.” (um rebanho, um pastor)

            Agradeço-lhes, sim, o nos virem dizer: “nada temais, pois o Cristo (que denominam também O Espírito da Verdade é o maior e o mais legitimo missionário das ideias espíritas.” Aliás, essas palavras me haviam impressionado vivamente e eu conjeturava onde poderia estar o Cristo em missão na Terra.

            “A Verdade dirige – diz então o Espírito de Marius, bispo dos primeiros tempos da Igreja - essa coorte de Espíritos enviados por Deus, em missão, para propaganda e êxito ao Espiritismo.”

            E que doces e puras alegrias derivam desses trabalhos espíritas pela caridade feita aos Espíritos sofredores!

            Que consolo é o de nos comunicarmos com os que da Terra se foram, parentes ou amigos, ouvindo-lhes a confissão de que são felizes ou aliviando--os se o não são!

            E, como é viva e radiante a luz desses mesmos Espíritos, os quais na veracidade integral da lei do Cristo nos dão a fé pela razão, nos fazem compreender a onipotência do Criador, sua grandeza, sua justiça, sua bondade e misericórdia infinita e nos colocam, assim, na deliciosa necessidade de praticar a divina lei de amor e caridade.

            Sublime, a ilação de tais ensinos, compreendendo nós que os seus divinos transmissores, fazendo-nos progredir, progridem também eles e vão aumentar a falange sagrada dos Espíritos perfeitos!

            Admirável, divina harmonia que nos mostra a unidade de Deus e a solidariedade de todas as suas criaturas, como nos mostra essas mesmas criaturas sob a influência e impulso dessa solidariedade, dessa simpatia, dessa reciprocidade, chamadas a gravitar e gravitando - não sem faltas e quedas, de começo - na longa e alta escala espiritual a fim de, finalmente, degrau a degrau, atingir- partindo do estado de simplicidade e ignorância originais à perfeição intelectual e moral e, por essa perfeição - a Deus.

            Admirável e divina harmonia que nos mostra esta grande divisão da inferioridade e superioridade, pela distinção dos mundos de exílio onde tudo é prova ou expiação, e dos mundos superiores, morada dos bons Espíritos, onde só lhes cumpre progredir para o bem.

            A reencarnação, bem compreendida, ensina aos homens que eles aqui estão neste baixo mundo apenas de passagem e que são livres de a ele regressarem, uma vez que se esforcem para isso; ensina que o poder, as riquezas, as dignidades, a ciência, não lhes são dados senão a título de provas, como meio de caminhar para o bem; que tudo isso lhes vem às mãos como simples depósitos e meios de praticarem a lei de amor e caridade; que o mendigo é irmão do potentado perante Deus, e talvez o fosse mesmo perante os homens; que esse mendigo poderia ter sido rico e poderoso e que a atualidade miserável de sua condição representa a falência de suas provas, lembrando assim aquele apotegma do ponto de vista social – não há mais que um passo do Capitólio (templo dedicado para a Tríade Capitolina, ou seja, para Júpiter, Juno e Minerva) a Rocha Tarpeia, (era, na Roma Antiga, um local onde eram feitas execuções, com as vítimas sendo lançadas desta rocha para a morte) com a diferença, porém, que, pela reencarnação, o Espírito se levanta da sua queda e pode, remontando o Capitólio, dali projetar-se às cumiadas celestes, à mansão esplêndida dos bons Espíritos.

            A reencarnação, ensinando aos homens que, conforme o concerto admirável de Platão, não há rei que não descenda de pastor, como não há pastor que não descenda de rei, amortece lhes todas as vaidades humanas, segrega-os do culto material, nivela, moralmente, todas as condições sociais.

            Em uma palavra: a reencarnação constitui a igualdade, a fraternidade entre os homens, tanto quanto entre os Espíritos, em Deus, e perante Deus.

            E constitui também essa liberdade que, sem amor e caridade, não passa de utopia, como bem no-lo disse há pouco o Espírito de Washington.

            No seu conjunto o Espiritismo veio dar aos homens a unidade e a verdade em todas as conquistas intelectuais e morais, nessa tarefa sublime de que somos apenas os mais humildes obreiros.

            Adeus, meu caro senhor; depois de um silêncio de três meses, eis que vos amofino com esta assaz longa carta.     

            Respondei-me quando puderdes e quiserdes.

            Propunha-me ir a Paris para ter o prazer de vos conhecer pessoalmente, para vos apertar fraternalmente a mão, porém a minha precária saúde me tem impedido até o presente.

            Desta, podeis fazer o uso que vos aprouver, na certeza de que me honro de ser devotado e publicamente espiritista.

            Vosso mui dedicado

                                   Roustaing, advogado. “

           Os leitores podem, como nós, apreciar e apreciarão certamente a exatidão dos conceitos expressos nesta carta.

            Por ela, se vê, de fato, que não obstante recentemente iniciado na Doutrina, o Sr. Roustaing tomou-se mestre na interpretação.

            A verdade é que ele a estudou profunda e seriamente, o que lhe permitiu coligir em pouco tempo todas as consequências deste grave problema do Espiritismo e, ao contrário de tanta gente, não se deteve à superfície.

            Nada havia ainda visto, di-lo, e já era um convencido porque lera e compreendera.

            Muitos, como ele, assim o tem feito, e nós temos reparado que, em regra, os que assim procedem, longe de serem superficiais, são os que mais refletem.

            Prendendo-se mais ao fundo que à forma, a parte filosófica é para eles o principal e os fenômenos propriamente ditos o acessório.

            Então, dizem, mesmo que os fenômenos inexistissem, não deixaria de haver uma filosofia que resolve, só por si, problemas insolúveis até agora, única que dá sobre o passado e o futuro do homem a teoria mais racional.

            E a preferência se lhes impõe entre uma doutrina que explica, e uma doutrina que mal ou nada explica.

            Quem quer que raciocine, compreende muito bem que se poderia fazer abstração das manifestações, sem que a doutrina deixasse por isso de existir.

            Elas, as manifestações, vêm corroborar, vêm confirmar a doutrina, mas não são a sua base essencial e disto é prova o discurso de Channing (?) que acabamos de citar, pois cerca de vinte anos do desdobrar das manifestações na América, o só raciocínio o conduzira às mesmas consequências.

            Mas há um outro estalão (medida) pelo qual se pode aferir a seriedade do espírita.

           Pelas citações que o autor da carta faz de pensamentos contidos em comunicações que recebeu, prova de que se não limitou a admirá-las como belos tropos (tropeços) literários, dignos de qualquer álbum, mas que as estuda, medita e aproveita.

            Infelizmente, muita gente existe para a qual este alto ensinamento representa letra morta, gente que coleciona as belas comunicações como certos bibliófilos colecionam belos livros... sem os ler.

            Outra coisa pela qual devemos felicitar o Sr. Roustaing, é aquela declaração com que encerra a sua carta, pois desgraçadamente nem todos têm, como ele, a coragem das próprias convicções e é isso que afoita os nossos adversários.

            Contudo, devemos reconhecer que, neste ponto, as coisas se hão modificado de algum tempo a esta parte.  

            Há apenas dois anos muitas pessoas não falavam de Espiritismo senão por olhares significativos os livros, compravam-nos em segredo e guardavam-se bem de os colocar em evidência.                .

            Hoje, a coisa é diversa: já nos familiarizamos com o epíteto (alcunha) de incivis (deseducados) dos zombeteiros e rimo-nos em vez de corarmos.

            Ninguém mais teme confessar-se publicamente espírita, tal como se não temem outros de se confessarem prosélitos desta ou daquela filosofia, do magnetismo, do sonambulismo, etc.

            Sobre a matéria discute-se com o primeiro adventício como se faz com os clássicos e os românticos, sem temor de humilhações reciprocas.

            Eis um progresso imenso, que prova duas coisas: o progresso das ideias espíritas em geral e a inconsistência dos argumentos adversos.

            E a consequência disto será o silêncio destes últimos que só se julgam fortes por se acreditarem mais numerosos; mas, quando de toda parte encontrarem com quem discutir, não diremos que se convertam, mas que saberão ser mais comedidos.

            Conhecemos uma pequena cidade da província, na qual, há um ano, o Espiritismo contava apenas um adepto, que, se o conhecessem como tal, seria apontado a dedo como um animal curioso ou, quem sabe, destituído do seu cargo e até deserdado.

            Hoje, a Doutrina conta ali numerosos adeptos, eles se reúnem francamente sem se preocuparem com o que deles possam dizer e quando no seu meio viram autoridades municipais, funcionários públicos, oficiais de patente, engenheiros, advogados, tabeliões, etc., que não ocultavam as suas simpatias pela causa, os zombeteiros calaram seus remoques (sem insinuação maliciosa) e o jornal da terra, redigido por um espírito forte com premissas de ensaios e aprestos de pulverização da nova doutrina, recolheu-se aos bastidores.

            Esta história, é a de muitas outras localidades e se generalizará à medida que os partidários do Espiritismo, cujo número cresce diariamente, erguerem a voz e a cabeça.

           Porque fácil é abater uma cabeça que se mostra, mas quando há vinte, quarenta, cem cabeças, que não temem falar alto e bom som, o caso e diferente.

            Demais, isso também dá coragem a quem não na tem.


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