Wantuil
um exemplo imperecível
“Trabalhai,
não pela comida que perece, mas pela comida que permanece para a vida
eterna, a
qual o Filho do homem vos dará; porque sobre ele imprimiu o selo do Pai,
que é
Deus." Jesus (João,
6:27)
Deixando em
nossos corações o rastro indestrutível da saudade, partiu Antônio Wantuil de Freitas para a Espiritualidade, depois de haver
dado ao mundo sublime exemplo de amor e fidelidade ao Cristo de Deus, no
mandato que recebeu ao adotar a Doutrina codificada pelo ilustre mestre Allan
Kardec.
Homem
inteligente, arguto, dinâmico, possuía admirável acuidade mental e clarividência
no trato com as criaturas humanas, antecipando, não raro, as conclusões de
fatos que mal se definiam aos seus olhos. Não estamos dizendo que o nosso Wantuil haja sido um profeta, no sentido
vulgar do termo, mas, efetivamente, tinha intuições que geralmente escapavam ao comum dos homens. Foi absolutamente consciente do
papel que deveria representar na vida terrena e intransigente quanto aos
deveres com Deus e Jesus. Habituou-se muito cedo ao trabalho severo e aprendera
que jamais se recupera o tempo perdido com inutilidades. Assim, sempre
encontrava um meio de valorizar o tempo, sem se desumanizar, sem se negar ao
contato e troca de ideias com outras pessoas, ocasiões que considerava como
pausas indispensáveis à reconquista da energia despendida no labor estrênuo.
Parecia que em sua mente lúcida estava sempre aberta e iluminada a sentença do
Mestre: "Meu pai trabalha até agora, e eu trabalho também" (João,
5:17).
Muito lhe devemos
pelo muito que recebemos na amizade que nos uniu neste período encarnatório, e
talvez jamais possamos saldar esse débito. Todavia, onde quer que esteja, o Wantuil estará sempre disposto a nos
conceder generosas moratórias, seguindo os passos de Jesus
na tolerância e na indulgência que levam ao perdão. Grande espírita cristão, grande
amigo!
Quiseram as
circunstâncias que nos encontrássemos ausente do Rio quando ele se desprendeu
dos laços físicos, reingressando na Senda dos Espíritos. Não lhe pudemos dar o
adeus de corpo presente, mas, por certo, ele já deve ter sentido a manifestação
da nossa saudade através do instrumento telecomunicativo da prece. A última vez
que nos faláramos, pelo telefone, ao perguntarmos por sua saúde, respondera-nos, no
tom discreto peculiar ao seu temperamento, que ia relativamente bem. Não era
homem de lamúrias. Compreendia a precariedade da vida terrena e encarava o
fatalismo biológico da morte como acontecimento verdadeiramente natural,
consoante o ponto de vista espírita.
Caráter franco,
habitualmente comedido no falar, Wantuil
aprendera a divergir sem ferir, a dizer não, quando necessário, sem machucar,
sem magoar. Mas não iludia ninguém, não fazia promessas enganosas. Como
Helvetius, achava que a verdade não pode ser nociva. Procedia, como se diz em
nossa terra natal, minha e dele: "mata a cobra e mostra o pau", quer dizer: sempre que era forçado a discordar de uma ideia ou de
uma proposta, explicava por que o fazia, pondo o máximo de sinceridade em seus
argumentos. A sua autoridade pessoal consolidou-se porque jamais pisou o
terreno falso do farisaísmo, Por mais desfavoráveis que fossem as situações,
mantinha o ânimo sereno e forte, contagiando os que o cercavam.
Era bom sem ser
piegas e a sua justiça se baseava nos Evangelhos, convencido de que a fraqueza
humana decresce de intensidade e pode até anular-se, quando escorada pelo Alto.
Naturalmente modesto, cordial e humilde, buscava nos Evangelhos e na prece os
esclarecimentos de que necessitava nos momentos de aguda crise, em face de
problemas angustiantes. Jamais quebrou a linha de austeridade que vem sendo
apanágio dos dirigentes da Casa de Ismael. A Federação Espírita Brasileira foi
a "menina dos seus olhos", o coração de sua alma de lúcido cultor do
Espiritismo cristão. Podemos situá-lo, sem exagero e sem que nossas palavras
sejam suspeitas, em virtude da longa e sólida amizade que nos ligava, entre os
maiores Presidentes que já passaram pelo Templo de Ismael.
Trabalhou,
trabalhou muito, trabalhou sempre, sem horas limitadas para os parcos lazeres
que conheceu. Deve ter guardado na memória esta frase dos Espíritos em a
"Revelação da Revelação", que devemos à fé e à pertinácia de Roustaing: "A oração agradável a Deus é o trabalho: trabalho da inteligência,
trabalho do corpo. Cada um de vós deve trabalhar conforme à tarefa que lhe está
confiada. Cada um de vós deve, pois, orar continuamente.
Trabalhai, eis a oração; vigiai, isto é, garanti-vos, exercendo constante
vigilância sobre vós mesmos. Assim, vossa carne se tornará forte e não mais temereis
a tentação. VIGIAI E ORAl, irmãos nossos. O Mestre conta convosco."
E o Mestre deve
estar satisfeito com o servo diligente e responsável, que fez quanto podia para
corresponder à sua confiança. Os que conheceram de perto a Antônio Wantuil de Freitas sabem que estamos sendo justo ao
relembrar-lhe o vulto do companheiro valoroso, do administrador probo,
vigilante e esclarecido. Nunca transferiu a ninguém suas responsabilidades.
Pelo contrário. Fez-se solidário, não poucas vezes, com as responsabilidades de
outros, dando sua colaboração constante para preservá-los. Procedia, portanto, como um espírita cristão, solícito no aplacar as atribulações
dos que a ele recorriam, buscando as luzes da sua experiência e dos seus
conhecimentos.
Ao sentir-se
acuado por questões difíceis, concentrava-se e orava. Punha-se, em seguida, a
analisar os assuntos, ponto por ponto, e, finalmente, tomava a decisão
definitiva, quando tudo parecia sugerir o contrário do que iria fazer; Disso fomos
testemunha e vimos os nossos temores se esboroarem diante da sua segura
determinação. Foi um lutador, na boa acepção do termo.
Relacionar-lhe
toda a obra seria estender demais este artigo. Citemos, contudo, o importante
papel que representou na edificação e conclusão do Pacto Áureo, sonho de Bezerra de Menezes, destinado a unificar a
família espírita do Brasil; os esforços gigantescos que desenvolveu, em 1944,
no chamado "Caso Humberto de Campos", que teve extraordinária repercussão,
dentro e fora do nosso País, e o qual terminou favoravelmente à Federação
Espírita Brasileira, amparada pelas forças espirituais e defendida, nos Tribunais,
pelo culto e respeitável confrade Dr. Miguel Timponi, além da valiosa
colaboração de outros abnegados correligionários, em vários setores de ação.
Era preciso, porém, que a têmpera espirítico-cristã de Wantuil
de Freitas fosse submetida a outra prova dificílima. Em 1945, o Espiritismo
começou a sofrer restrições cada vez maiores, inclusive perseguições a
espíritas e instituições espíritas. Wantuil, com o tato admirável que nunca lhe
faltou, procurou ter entendimentos com altas autoridades da República e a
verdade foi a duras penas restabelecida, como restabelecida foi também a
liberdade que a Constituição assegura a todas as religiões.
Lembremos também
o desenvolvimento do Departamento Editorial, organização sem similar no
Espiritismo brasileiro e estrangeiro. Recordemos o lançamento dos selos
espíritas, apesar de todos os obstáculos criados pela ação da intolerância e do
desamor à harmonia.
Quanto lhe deve o
Espiritismo! Quanto lhe devemos nós, partícipes da sua laboriosa vida
doutrinária! Na pálida homenagem que tentamos prestar a esse grande companheiro
do Espiritismo brasileiro, pomos nela todo o espírito de justiça que se faz
imprescindível. Iríamos longe, muito longe, se esmiuçássemos o trabalho de Wantuil de Freitas, como, por exemplo, a
campanha acirrada de alguns poucos irmãos mal esclarecidos contra Roustaing,
querendo negar à FEB o direito de respeitar o legado de Bezerra de Menezes e
sua inspirada determinação de estabelecer, na Casa de Ismael, o estudo regular
de "Os Quatro Evangelhos", como o faz com as obras da Codificação
Kardequiana.
Cercado de
companheiros leais, imbuídos da mesma disposição, pôde ele levar a bom termo as
tarefas que se impôs.
Em 1969,
ponderara aos que iam decidir a renovação da Diretoria que se sentia enfermo e
exausto. Compreendia que a FEB crescera muito e exigia dele e de todos uma soma
progressivamente maior de atividade. Era tempo, afirmava, de passar o bastão de
comando, para que os altos interesses da FEB não sofressem nenhuma
intermitência. Mesmo assim, foi reeleito. Não pudera vencer o ponto de vista dos que insistiam
em sua continuação. Mas, em 1970, suas condições físicas pioraram e só a
energia do seu espírito permitira que se desincumbisse dos deveres
multiplicados. Antes da Assembleia, reafirmou a resolução de afastar-se, com
palavras que significavam mais ou menos isto: "Se vocês querem bem à Federação,
não me reelejam desta vez. Fiz o que pude. Estou doente, sem condições
para continuar dando à FEB o que ela precisa. Não é justo que, me
reconduzam à Presidência, comprometendo as necessidades da Casa de
Ismael."
E fomos todos
para a Assembleia conformados com a decisão do devotado Wantuil, certos, porém, de que do Alto viria, como veio, a solução
que mais conviesse aos interesses do Espiritismo brasileiro. Isto aconteceu em
22 de agosto de 1970. Cessou, nessa data, a sua participação administrativa na
FEB, começada em agosto de 1936, quando assumira a Gerência dá "Reformador". Entretanto, não se admita sequer
que Wantuil se tenha desligado mentalmente da Federação. Acompanhava com
carinhoso interesse a nova fase, iniciada por seu discípulo Armando de Oliveira Assis, que, durante
mais de vinte anos, seguia-lhe os passos, como vice-presidente da FEB.
Mantinha-se atualizado quanto ao movimento espírita, ao ser derrubado pela
enfermidade que determinou a sua libertação da carne.
Aí está, em
relatos superficiais, sem roteiro cronológico, algo desse espírita extraordinário,
desse companheiro que, simples e humilde, apesar do seu grande valor, marcou
uma época invulgar no Espiritismo brasileiro. Não obstante os pesados encargos
que absorviam o tempo de que dispunha, ainda "fabricava" algum tempo
para escrever e publicar artigos no "Reformador", sob pseudônimos, e
algumas obras de magnífico conteúdo doutrinário e evangélico, em português escorreito,
em linguagem simples e acessível a todos os níveis de instrução, como "Ciência,
Religião e Fanatismo", "Os Milagres de Jesus" e "Síntese do
Novo Testamento". Esta última, então, de manifesta utilidade para os
estudiosos dos
Evangelhos, contém valioso índice por versículos e o resumo de
todas as passagens das Escrituras Sagradas, dos ensinamentos deixados por
Jesus. E, acrescentemos, sempre fiel a escrupuloso critério ético. São dele as
seguintes palavras, ao terminar o preâmbulo da obra citada:
"O Novo
Testamento, revelação divina por instrumentos humanos, quais o foram os seus
autores, apresenta-nos muitos degraus da revelação e conhecimento, somente
acessíveis pela evolução com o tempo e pela iluminação com o esforço próprio;
uma só LUZ - em filtros diversos." E a assinatura, que é um testemunho da
sua personalidade verdadeiramente humilde, embora dinâmica e fecunda: Mínimus.
Que o dileto
amigo, hoje ao lado de outros grandes trabalhadores do Espiritismo cristão, na
vida imaterial, como Bezerra, Bittencourt Sampaio, Sayão, Pedro Richard, Cirne, Quintão, Guillon, Paiva Júnior, Ismael Gomes Braga, Fred. Figner, Ignácio Bittencourt, José
Augusto Romero e tantos outros, recomece lá o trabalho redentor que o fez
digno do salário recebido, pois, na Terra, cumpriu conscientemente sua missão e
em nenhum momento tirou a mão do arado nem olhou para trás; nunca depôs no chão
a enxada, quando a terra adusta e
endurecida exigia mais esforço, mais paciência, mais tenacidade,
menos repouso. E foi assim que o eito ingrato, umedecido pelo bendito suor do
trabalho, foi sendo transformado em leiras férteis e produtivas.
A obra que deixou
aqui é imperecível pelo exemplo de como se pode servir a Deus e ao Cristo,
plantando o bem, colhendo o bem, distribuindo o bem!
por Indalício Mendes
in Reformador (FEB) Maio 1974
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