“O rico avarento...”
"O
Rico avarento banqueteava-se esplendidamente todos os dias.”
O que Jesus nos
diz do rico avarento e do pobre Lázaro repete-se todos os dias, através dos
séculos e milênios, enquanto a humanidade não passar das baixadas da sua
estreita consciência individual, telúrica, para as alturas duma vasta
consciência universal, cósmica. Repete-se esta cena em dois sentidos: no plano social
da humanidade e no plano individual do homem.
No terreno
social. Opulentos gozadores se banqueteiam à mesa do lauto festim da sua
prosperidade material, luxuosamente vestidos, fartamente alimentados - enquanto
milhares e milhões de Lázaros, seus irmãos, deserdados da fortuna, vitimados de
doenças, cobertos de chagas, jazem à porta dos palácios, ansiando por apanhar
alguma das migalhas que caem da mesa dos ricaços, mas nem sempre essas migalhas
lhes são concedidas. Os cachorros passam melhor do que essas ruínas humanas - não
faltam mesmo ricaços, e sobretudo ricaças sentimentais, que adotam cachorros e gatos,
lhes dão casa, cama, mesa, hospital, clínica, e
até lhes erigem suntuosos mausoléus de mármore e bronze - enquanto
milhares de crianças humanas, órfãos, maltrapilhos, famintos, enchem as ruas e
os becos, aumentando a delinquência juvenil de amanhã - tão espantosa é a
cegueira do coração humano! ... Mas os ricaços, egoístas cegos, procuram ignorar as misérias
humanas, e, para anestesiar a sua consciência, frequentam igrejas e serviços
religiosos, e alguns deles jogam, de vez em quando, uma migalha ou um osso a esses
Lázaros famintos, chegando ao ponto de destinar-lhes 10% das suas rendas, enquanto eles guardam para o seu egoísmo
explorador os restantes 90% da sua opulência, adquirida, talvez, com o suor e
sangue das suas vítimas. E, destarte, se embalam na fagueira complacência do
seu heroísmo caritativo e da sua grande virtuosidade, tanto mais que a imprensa
os aplaude e apelida de "benfeitores da humanidade sofredora".
Uma das mais
funestas doenças psíquicas se chama "complexo de heroísmo" ou
"virtuosidade"... É dificilmente curável essa moléstia, porque passa
por saúde e sanidade.
A caridade,
embora boa e necessária, não resolve os dolorosos problemas da humanidade,
porque é filha da miséria, e esta, por sua vez, é filha do egoísmo. O que salva
a humanidade é o amor, porque o amor abole de vez o egoísmo e não permite o
aparecimento e a perpetuação da miséria, que exige a caridade como lenitivo
temporário e incompleto. Onde domina o amor não há terreno propício para o
desamor, o egoísmo; e onde não há egoísmo não existe miséria humana crônica; e,
não havendo miséria crônica, não há lugar para uma caridade habitual, como fenômeno normal da sociedade.
Chegamos assim à verdade aparentemente paradoxal de que onde há amor não há
necessidade de caridade, porque o amor torna a caridade supérflua, uma vez que lhe subtrai o terreno
do egoísmo e da consequente miséria em que a caridade possa medrar. Não negamos
que, em casos excepcionais oriundos de catástrofes da natureza - terremotos, enchentes,
incêndios, epidemias, etc. - seja necessária a caridade, mesmo ao lado do amor;
o que afirmamos é que a caridade como fenômeno normal e habitual da sociedade é
algo inteiramente anormal e mórbido. O Cristianismo genuíno e integral não é
uma "roupa velha com remendo novo", nem um "odre velho com vinho
novo". O Cristianismo não é uma vestimenta rota de miséria precariamente
consertada com lindos remendos de caridade, espécie de colcha de retalhos; o cristão não é um remendador de rasgões em roupa velha, nem tão
pouco um mendigo esfarrapado e ligeiramente remendado para aguentar mais
algumas semanas ou meses - o Cristianismo crístico é algo inteiriço e
totalmente novo, algo virgem, inédito de alto a baixo, por
dentro e por fora; o cristão de verdade não é uma criatura remendada, mas um
homem remido, alguém que se despojou totalmente do "homem velho" e se
revestiu totalmente do "homem novo", que se tornou "nova criatura
em Cristo", sem levar consigo um fiozinho sequer do homem velho que anda
ao sabor das suas velhas concupiscências e do seu inveterado orgulho, mas é
homem 100% novo, feito em verdade, justiça e santidade ...
Mas um homem assim, uma nova criatura
em Cristo, só pode ser criado pelo amor, pelo renascimento do espírito...
A humanidade do Cristo não é uma
humanidade remendada com caridades - mas uma humanidade remida pelo amor. O
homem crístico é como o Cristo, que nunca foi remendado, porque era um remido e
um redentor, no qual não havia miséria, e por isto não necessitava
de caridades, porque era o supremo amor crístico.
É claro, enquanto não tivermos amor
suficiente, vamos praticar caridades em larga escala, porque, uma vez que o
nosso egoísmo criou as misérias humanas, é justo que o nosso altruísmo procure
suavizar o mais possível essas misérias, filhas do nosso egoísmo.
Mas, em caso algum, devemos cair no
erro funesto de pensar e dizer que a caridade possa salvar o homem. A caridade
só pode suavizar os males que o egoísmo produziu, mas não os pode abolir,
porque ela mesma sofre, e quem sofre com o sofredor não pode abolir os sofrimentos
dele. Só o amor é assaz poderoso para abolir não só o egoísmo, mas também as
consequências do egoísmo, os sofrimentos.
Pobres sempre os teremos conosco se
não tivermos conosco o Cristo.
Enquanto houver exploradores haverá
explorados - mas onde domina o Cristo não há exploradores, e, portanto não há explorados. O amor do Cristo torna impossível
o aparecimento de exploradores, e por isto não necessita a caridade de remediar
as chagas dos explorados
porque estes não existem.
Onde o Satanás do egoísmo foi
derrotado pelo Cristo do amor não encontram os anjos da caridade campo para
suas atividades. É este o Cristianismo genuíno e integral, o reino de Deus
proclamado sobre a face da terra.
Mas, enquanto os ricaços continuarem
a banquetear-se egoisticamente, continuarão os Lázaros a agonizar à porta deles
- e deve haver quem se compadeça caridosamente dos infelizes.
* * *.
Entretanto, esse mesmo fenômeno
discrepante do terreno social também ocorre no terreno individual - e até certo
ponto este é causa daquele. Se dentro do próprio indivíduo não houvesse
desarmonia, não haveria desarmonia fora dele, na sociedade. A lei do indivíduo
é a lei da sociedade. O homem é a bitola de todas as coisas.
Dentro de cada um de nós vive um
rico avarento e agoniza um pobre Lázaro, o egoísta do nosso corpo e a vítima da
nossa alma. Damos ao nosso corpo 24 horas diariamente - 8 horas de descanso, 8
horas de trabalhos para o corpo e 8 horas de diversões para o mesmo ricaço. E
quanto tempo para os interesses da alma? Talvez a "vigésima quinta"
hora do dia? Os
poucos que dão à alma 2% do tempo diário, isto é, cerca de meia hora, julgam-se
uns homens extraordinariamente generosos e espirituais. A maior parte, mesmo
entre os cristãos, não está disposta a "perder" meia hora por dia
para tratar exclusivamente das coisas da alma, na oração, meditação, na leitura
espiritual; aprovam a parte de Maria, mas escolhem a parte de
Marta.
Se quiséssemos
"perder" cada dia 2% do nosso tempo para a alma ganharíamos os
restantes 98% para a nossa vida verdadeira e abundante; mas, como queremos
ganhar 100% para o corpo, perdemos tudo, porque tudo quanto fazemos só no plano
horizontal das quantidades externas são outros tantos zeros, cuja soma ou produto
será sempre igual a zero: O x O + O = O. Só se antepusermos a essas filas de
vacuidades negativas a plenitude positiva do fator "1", então todos os
pseudo valores materiais serão valorizados pelo verdadeiro valor espiritual:
1.000.000.
O que acontece
neste terreno do tempo, acontece também no plano do dinheiro. O homem profano
gasta todo o seu dinheiro pela manutenção e intensificação da sua saúde e do
seu bem-estar corporal, e estranha quando alguém lhe sugere uma despesa
qualquer em benefício da alma. O capitalista do corpo, tem direito a lautos
banquetes, três ou mais vezes por dia - mas o mendigo da alma não recebe sequer
uma migalha desse festim.
De maneira que o
homem profano, sem excetuar o cristão, vive num permanente latrocínio e numa incessante mentira
contra si mesmo. É injusto e desonesto consigo mesmo, com seu verdadeiro Eu
divino. "Quem guarda em sua casa
alguma coisa de que não necessita,
e que faz falta aos outros, é ladrão" (Mahatma
Gandhi).
Tipo clássico
desse ladrão mentiroso era aquele magnífico fariseu no templo de Jerusalém do
qual o Nazareno nos deixou tão estupendo retrato: apesar de parecer asceta e filantropo - pois jejuava duas vezes por semana e dava o dízimo de
todos os seus haveres - não deixava de ser um desbragado gozador, porque se banqueteava
pomposamente com a refinada iguaria da sua complacente satisfação de não ser
"como o resto dos homens, ladrões, injustos, adúlteros", nem mesmo
como aquele publicano, seu colega. O mais inebriante de todos os vinhos é o
complexo de heroísmo e virtuosidade, a fagueira complacência com os nossos méritos
e perfeições.
O fariseu, apesar
de não ser ladrão, injusto, adúltero, publicano, apesar de dar para fins de
caridade e religião 10% de todos os seus haveres, voltou para casa "não
ajustado", porque a sua própria virtuosidade o desajustara.
Na parábola do
rico avarento e do pobre Lázaro ocorrem as palavras "há entre nós e vós um
grande abismo, de maneira que ninguém de lá pode vir para cá, nem de cá pode ir
para lá" - palavras em que muitos veem estabelecida a impossibilidade de
uma conversão após a morte corporal.
Esquecem-se eles
de que o rico avarento, quando "sepultado no inferno", não revela
nenhum indício de conversão; quer apenas alívio nos seus sofrimentos. Não tem
vontade de se converter da causa dos seus males, que são suas maldades; quer
libertar-se dos efeitos, e não da causa, e isto lhe é negado. Sendo que os
males são frutos das maldades, enquanto estas persistirem, aqueles não podem
ser extintos, como lhe faz ver a voz de cima.
Seus cinco irmãos
vivos, que viviam nas mesmas maldades, também não se converteriam se um defunto
reaparecesse redivivo, eles que não ouviram a Moisés e aos profetas.
Esse diálogo
entre Abraão e o pecador impenitente não prova, pois, a impossibilidade da
conversão após-morte. A morte não torna ninguém pior nem melhor. A morte também
não destrói o livre arbítrio de ninguém. Pode um defunto continuar a ser
materialista mesmo sem possuir corpo material. O materialismo é uma atitude mental,
que pode persistir também na ausência da matéria, como certamente aconteceu com
o rico avarento, que não se converteu do seu materialismo impenitente, e espera
poder continuar a ser um materialista sem sofrer as consequências desta sua
maldade.
Huberto
Rohden
in “Filosofia Cósmica do Evangelho”
(Edição da Fundação
Alvorada - 1976)
Lendo esta mensagem do Huberto Rhoden, concluo que há muito a fazer para me despojar da matéria desnecessária e não há tempo a perder para colocar-me no caminho certo.
ResponderExcluirPalavras contundentes e verdadeiras!!!!