Pressupostos
Espíritas?
Gilberto
Campista Guarino
Atualmente, temos observado acentuada
tendência para a dogmatização do Espiritismo, "a contrario sensu" do
exposto em "O Livro dos Espíritos", obra basilar no contexto ímpar da
Codificação.
Verificamos, com acentuada preocupação
-- que não é apenas de nossa parte, mas também e principalmente da Espiritualidade
Superior que, indefectivelmente, supervisiona o progresso do movimento espírita
-, o desenvolvimento de uma espécie de predisposição para o emaranhamento de
uma linha que, muito embora não seja a reta original do evolutir no estado fluídico,
fala em si mesma da misericórdia de Deus, exteriorizando-se como concessão em
prol da humanidade. Referimo-nos à inversão de valores e à turbação de princípios
simples ao extremo, esses mesmos princípios que informam o corpo doutrinário espírita.
São frequentes as tentativas de incorporação das mais falsas e insípidas
premissas ao arcabouço em tese; são inúmeras as labutas (porque existe trabalho
secundando esses ideais) no sentido da artificialização do Espiritismo, conquanto
os promotores e incentivadores dessa mesma teoria tenham consciência do erro
que cometem, conforme se depreende das assertivas lúcidas que proclamam, nas
quais - de modo para eles imperceptível -- anatematizam o engano.
Por isso preferimos dizer que existe
consciência em todo o procedimento, mas os apelos
dessa conscientização íntima não logram obstar a efetivação, a realização material
da ideia geradora. E isso, temos certeza, decorre da noção de responsabilidade
diante de toda uma "corrente de adeptos", que luta bravamente pelo
triunfo de seus pressupostos.
Há em todo esse estado de coisas dois
vícios que impedem a aceitação da verdade, sob o influxo da consciência cristã
que anima cada um. Primeiramente, é óbvio que essa aludida noção de responsabilidade
sofreu um forte desvirtuamento, desde suas origens primeiras. A ideia de responsabilidade
transcende o conceito já amplo do mundo profano e adquire proporções inusitadas
no terreno espírita. No Espiritismo, responsabilidade poderia ser tida como
"noção de cumprimento de deveres, nos moldes da diretiva do Evangelho de
Nosso Senhor Jesus-Cristo, entendido em espírito e verdade, com exclusão de
quaisquer falsas concepções provenientes de ideologias incompatíveis com o traçado
doutrinário". Em outras palavras, a responsabilidade, para o espírita
verdadeiro, impõe o selo da razão esclarecida,
da
fé raciocinada, do trabalho do intelecto com vistas à ordem máxima. Ela, para o
cristão autêntico, não é simplesmente a que surge de qualquer ato praticado,
mas sim aquela que já por si só é profilaxia do desentendimento e do absurdo
doutrinário. Em segundo lugar, não deve haver entre nós "correntes de ideias",
a menos que estejamos firmemente dispostos a
mais
uma vez tentar adaptar à Doutrina princípios do mundo profano, que para ela são
bastante esdrúxulos: trata-se de examinar esses princípios e de esclarecê-Ios, mas
não de atrai-Ios a nós para, a seguir, deixarmos que eles nos dominem. Essas "correntes
de ideias" lembram-nos as infindáveis discussões doutrinárias, no campo
jurídico em que vivenciamos, onde cada
autor define os institutos legais de um determinado modo, seguindo uma coordenada
X, retirando de uns e outros as bases para a sua própria construção; criando o
seu sistema próprio. Mas, até mesmo nesse processo todo existe a doutrina
dominante; existe o entendimento jurisprudencial, que pacifica o desentendimento
doutrinário. E paralelamente surgem as célebres teorias bizantinas ... Discute-se
"a cor do cavalo branco de Napoleão"!... Será isso que estamos pretendendo
trazer para o âmbito espiritista?.. Se até mesmo nos assuntos do mundo observamos
uma certa coerência, mesclada com as mais urgentes tentativas de entendimento
global da realidade, que dizer do problema visto pelo prisma da razão e da fé esclarecidas
que nos proporciona o estudo sistemático do Espiritismo?.. Na realidade, não se
trata da apologia da uniformização ... nem do "domínio
doutrinário"... nem da "sede de comando" ... Não é isso o que se
pretende! Falamos simplesmente da necessidade de UNIFICAÇÃO, tema constante da
Espiritualidade Superior, cerne da Doutrina Cristã
(o que pretenderia Jesus quando nos concitou à união em torno da necessidade,
no amparo à humanidade?!); o que quereria dizer o Espírito da Verdade, quando
asseverou: "Espíritas, amai-vos!" Em alguma ocasião os Espíritos
esclarecidos nos aconselharam a que fizéssemos prevalecer sempre o nosso ponto
de vista, ainda que ele contrariasse formal e
intimamente
o bom senso, a lógica? Quando eles nos incentivaram ao abandono dos
preceitos
crísticos e à recusa da Codificação de Allan Kardec, bem como das obras
complementares que formam os verdadeiros preceitos espíritas?
Atualmente, para que se seja
espírita é mister apresentar "boa dose de cultura", quando, não de
"sabedoria" (diferem ambos os conceitos: sabedoria seria o amor mais
a "soma da cultura intelectual dos séculos"). E não há espírito
verdadeiramente esclarecido que corrobore semelhantes métodos! Estão TODOS ELES
preocupadíssimos com as divagações doutrinárias. .. Estão TODOS ELES tentando a
todo momento apagar dentro de nós a sede das mais banais inovações! Estão TODOS
ELES empenhados na restauração da pureza primitiva, que anda muito esquecida,
meus amigos!... No entanto, como grandes amigos e mentores fidelíssimos à
fraternidade e à caridade, toleram ao máximo as nossas impertinências. Mas,
perguntamo-nos: até quando teremos o direito de abusar dessa paciência?.. Até
quando cerraremos os ouvidos (já tão pobres ... ) aos chamamentos do Alto, insistindo
infantilmente em "bater o pé" diante do capricho contestado?.. Até que
momento sobreviverá essa nossa estranha lógica? .. Até quando persistiremos em
ser orgulhosos, ou melhor, até quando disputaremos com o próximo para vermos
quem é mais orgulhoso? ..
Essas perguntas todas são lançadas por
companheiros espirituais, que jamais negaram e jamais negarão esclarecimento a
quem o busque realmente com Jesus no coração. As boas obras aí estão revistas,
anotadas, traduzidas, adaptadas às diferenças estilísticas da época, etc. E jamais
o espírita fugiu tanto ao estudo da verdadeira doutrina! Nunca se viu tanta confusão
em torno de coisas tão simples! E, o que é pior: quanto mais se tenta "modernizar",
menos se sabe como o fazer e mais se banaliza, mais se estereotipa, mais se
confunde! Nunca vimos a mediunidade
tão desvirtuada ... nunca vimos tantas obsessões e tantos processos anímicos.
.. E isso porque buscamos o próprio prejuízo; porque o nosso livre arbítrio
funciona "a todo o pano" e, mesmo que vejamos a tempo o valão à nossa
frente, nele queremos cair! Nós estamos buscando supostas provações que estariam
em nosso destino. Mas essas não são as
verdadeiras provações: são frutos de nossa impertinência. A verdadeira provação
vem a nosso encalço ... essas outras, nós as estamos buscando!...
Todos esses pressupostos que vêm surgindo
com uma espécie de "neo-espiritismo" precisam ser suprimidos o quanto
antes, porque a boa intenção não chega a ser desculpa para o desvirtuamento de
um movimento inteiro.
De
nossa parte - tornamos a dizer -, preferimos ficar com Jesus, com Kardec e com
Ismael. Com Jesus porque é ele o Mestre; com, Kardec porque foi ele o lúcido
Codificador, em cuja obra tudo é lógica (os arrazoados de Kardec, com base
no que revelaram os Espíritos, são belíssimos!): e com Ismael porque é ele o anjo a quem o Senhor delegou poderes
para gerir o movimento no Brasil e no mundo, podemos dizer. Jesus, Kardec e
Ismael são exemplos de humildade, de fé e de entendimento que ousamos citar para
chamamento de todos à realidade do Espiritismo.
‘Reformador’ (FEB) Maio
1974
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