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Enclausurado no egoísmo, não se
considera o homem vinculado por efetivos e duradouros laços senão à família em
que nasceu ou que constituiu. E de tal forma prepondera e se insinua em todas
as manifestações da natureza humana aquele sentimento que à sua influencia aberrativa
nem o amor que por mais santo, no mundo, é reputado - o amor materno - se lhe
subtrai. A mãe ama seus filhos e por eles a todos os sacrifícios se dispõe,
porque o são seus. Outro, porém, é o sentimento que os filhos alheios lhe
despertam.
Não há contudo que estranhar nesse exclusivismo,
sabiamente incluído nas previsões da lei divina. Antes que, pela ascensão a
graus superiores de evolução, que inda nos são desconhecidos, adquiramos o
sublime poder de dilatar o nosso amor á totalidade da espécie, que nos identifica,
e aos demais seres, cumpre nos exercitarmos, a pretexto dos vínculos da carne,
em toda a gama dos afetos pessoais, numa sorte de preparatório adestramento.
É' no ambiente do lar que, com efeito,
pela permuta de carinhosas expansões e de recíprocos desvelos, se estimulam e
afirmam as nossas capacidades afetivas, como é aí também que empreendemos os
primeiros ensaios de renúncia e, mesmo até, de sacrifício uns pelos outros, germens
fecundos que, mais tarde, uma cultura sistematizada em tal sentido podará
converter na plenitude da abnegação, que caracteriza os apóstolos e os santos.
Sem dúvida a carne, considerada em
sua feição peculiar como o mais grosseiro revestimento do espírito, de si mesma
nenhuma virtude ou atributo lhe confere, constituindo antes, como vimos, um
embaraço à livre manifestação de suas faculdades. De tal modo, porém, na
harmonia geral em que se integram todas as coisas, a cada uma é assinalada a
sua utilidade, tudo, ao demais, em nosso mundo inferior devendo ser encarado
pelo prisma da relatividade, que esse mesmo acidente da carne, origem dos mais
funestos arrastamentos para o espirito, se este lhe não refreia os desordenados
apetites, destina-se, entretanto,
a ser um eficaz auxiliar do seu progresso, pelo fato mesmo, a que aludimos, de
criar ou, pelo menos, servir de pretexto para criar laços de afeto entre criaturas
que doutro modo se conservariam na ,perpétua estagnação do sentimento.
Nada há que possa mais profundamente
abalar as fibras da humana sensibilidade - abstração feita dos seres
extremamente evoluídos, cuja vibratilidade emocional, duplicada de altruísmo,
abrange escalas Inacessíveis aos vulgares - que o fenômeno da maternidade e também,
posto que em grau geralmente admitido como atenuado, o da paternidade. O
alvoroço, o transporte de comovido jubilo, só nas lágrimas capaz de traduzir-se,
que um coração de mãe ou pai experimenta ao primeiro choro de um filho recém
nato marca, por assim dizer. o início de
uma transfiguração moral para todo aquele, pelo menos, que por uma espécie de
instinto superior adivinha e aceita, melhor que compreende, a magnitude ,dessa auréola,
por excelência, dignificadora da criatura neste mundo. Ver-se desdobrado,
reproduzido num pequenino ser, que é carne da nossa carne, vida da nossa própria
vida, haver sido por essa forma admitido à participação de um dos atributos
fundamentais do Criador, que a todos os seres a sua vida comunica, não é
somente uma enobrecedora
fonte de emoções, senão principalmente um grave motivo de meditação nas
tocantes responsabilidades de que essa função investe a criatura, daí em diante
incumbida da direção de uma alma, a que os seus próprios atos e lições devem
servir de guia e de modelo.
Mesmo para os que, na ausência de
uma esclarecida educação moral, não abrangem tão largo descortino, os simples
deveres de assistência aos filhos, desde o berço traduzida nos cuidados a lhes
dispensar para a conservação da vida e da saúde; os sobressaltos e as vigílias
a que a sua fragilidade, com frequência exposta a tantos acidentes, dá lugar,
tudo isso que inquieta, mortifica e faz sofrer o coração dos pais, iniciando-os
num sublime e doloroso aprendizado, constitui outros tantos estímulos de maior
e mais enternecido afeto, a tal ponto que um filho enfermiço, defeituoso, ou
aleijado até, vem a ser o mais querido, pela associação da piedade ao amor, que
simultaneamente inspira.
E que dizer dessa outra estrofe do
poema de amor que o lar, contemplado pelo seu nobre e elevado prisma, encerra -
o amor fraterno? - Sob o aparente vínculo da carne, que sentimento haverá mais
doce e espiritualizado que esse que prende irmãos e irmãs, sobretudo se a
identidade de índole e a similitude e elevação de aspirações os aproximam?
O mesmo amor conjugal, sem dúvida, o
mais egoístico de todos, começando numa exaltação dos sentidos, que os atrativos
físicos despertam, não é verdade que termina por se espiritualizar e converter
na estima, respeitosa e inalterável, que a virtude e a fidelidade mútua, de um
lado, e do outro os repetidos testemunhos de dedicação, à medida que os anos
passam, e com eles sobrevêm os trabalhos e sofrimentos suportados em comunhão não
cessam de fortalecer? - Infelizmente raros, destinados contudo Ia se tornar
frequentes, mercê da nova orientação moral que o Espiritismo vem imprimir à
humanidade, tais casos de harmonia perfeita no casal são os que, no verdadeiro
sentido, realizam afortunadamente o bíblico preceito de serem
"dois numa só carne".
Não há, pois, que fulminar censuras
ao acendrado apego em que todos esses laços domésticos se firmam, transitoriamente
necessários que são, a título de exercício, que o espirito é chamado a efetuar,
nas infinitas modalidades do amor, afim de que, por uma sempre maior dilatação
dessa capacidade, se torne apto à fusão no Amor Supremo, que tudo - seres e
coisas - abrange e nada exclui:
Mas, se à luz do critério humano -
imporia ponderar - a família se
restringe unicamente aos que da mesma consanguinidade se originam, o principio
da pluralidade de existências, em virtude do qual os espíritos ora se
encontram, em repetidas encarnações, num mesmo círculo doméstico, ora se
dispersam, para com outros constituir novas famílias, sem de modo algum
quebrantar as anteriores relações de parentesco, antes concorre para lhes
imprimir o cunho de considerável amplitude.
É assim que, entre os que hoje consideramos
estranhos, porque de fato no-lo sejam no que se refere aos vínculos da carne,
pode - quantas vezes - se encontrar um pai, um irmão, irmã ou mãe – seres em
suma extremamente caros - que conosco participaram de vicissitudes e alegrias
em precedente encarnação.
Nem doutro modo se explica a irresistível
simpatia que, ao primeiro encontro, se estabelece entre criaturas que jamais se
tinham visto e que nenhum laço de sangue agora prende.
Essa misteriosa e, por outra forma,
inexplicável atração de alma a alma diferente - não será ocioso advertir - da sólida estima
que prolongada convivência termina por gerar entre pessoas em quem a afinidade
de aspirações e sentimentos coincide, outra coisa realmente não significa senão
que se acham em presença amigos de outro tempo, que uma nova máscara de carne mal
impede de, positivamente, se reconhecerem.
Quando mesmo, porém, não seja esse o
caso e os laços de afeição que, no passado, a outros espíritos nos prenderam
tenham sido assaz fugazes para impedir essa espécie de vago e instantâneo
reconhecimento, esta simples consideração de que no estranho de hoje pode estar
um parente, um amigo, mesmo - quem sabe? - um benfeitor de outro' é de molde a
influir salutarmente nas relações dos homens entre si, tornando-as menos hostis
e exclusivistas, por lhes fazer compreender que os laços da família, sobrepondo-se
ao transitório acidente da carne, para vincular, não corpos, mas espíritos, se
desdobram ampliam através do tempo, abrangendo bem mais dilatado círculo que o
admitido até aqui pela concepção unitária da existência humana.
Certo, não basta o simples fato de
terem uma vez convivido outrora, ou atualmente conviverem, para criar entre
os espíritos a efusiva harmonia de sentimentos que se observa nos seres de uma
mesma ordem evolutiva. É necessário, ou que tais encontros se tenham consecutivamente
repetido, favorecendo cada vez mais íntima aproximação, ou que na índole e nas
disposições morais dos indivíduos existam pontos de similitude e de contato, de
sorte que, desenvolvidos pela repetição dos mesmos atos e fortalecidos pela reciprocidade
de afetuosos testemunhos, venham a estabelecer essa indissolúvel solidariedade,
que nem o tempo nem as vicissitudes têm o poder de destruir.
Essa perfeita harmonia de
sentimentos, entretanto – convém assinalar -- tendo como resultantes a paz e a
cordialidade nas relações individuais, só existe realmente entre os seres que
atingiram um apreciável grau de elevação moral. Entre os retardatários nesse
rumo o que se observa é a comunidade de paixões, a mútua simpatia por suas
próprias inferiores qualidades, donde resulta, quer na livre estância da
espiritualidade, como no capítulo anterior o indicávamos, quer nas sucessivas
migrações terrestres, que tais seres, obedecendo a um natural pendor, nascido
de suas afinidades eletivas, que se traduzem na conhecida formula similia
similibus, se procuram, a constituir núcleos mais ou menos homogêneos,
mas ficam sempre distanciados daquele ideal de pacífica harmonia, que a turbulência
de suas inclinações e atos impede forçosamente de realizar.
É por isso, e porque na terra que
habitamos - região das mais inferiores do universo - predominam os retardatários
daquela natureza, constituindo uma reduzida minoria os seres sequer
medianamente espiritualizados, nos quais a benignidade de sentimentos, aliada à
pureza de costumes, escassamente contrasta com a depressão moral do maior
numero, que o lar doméstico, longe de ser o tranquilo refúgio da felicidade,
que só na paz se pode cimentar, oferece geralmente o espetáculo de rivalidades
e perturbações, apenas dissimuladas, nas classes que de esclarecidas se
presumem, pela compressão, de alguma sorte exterior, da educação ou das conveniências.
Tão raro é que nesta esfera expiatória possa ter lugar a verdadeira união de
espíritos simpáticos!
Não é isso contudo um mal, senão um hem,
reclamado pelas próprias necessidades da evolução humana, que só se pode
vantajosa e mais rapidamente efetuar mediante o contato em que, diretamente
sejam postos espíritos de categorias diferentes, a fim de que aos mais atrasados
seja proporcionada ocasião de auferir os benefícios da direção e assistência
que os mais experientes ou melhores têm por encargo Ihes prestar.
Assim se explica a, de resto, aparente
anomalia, que precedentemente assinalamos, de aparecer no seio de uma família
honrada, homogênea, portanto, nesse ponto de vista pelo menos, em sua composição
moral, um indivíduo que, por suas
pervertidas inclinações, constituindo um motivo de escândalo e desgostos,
denuncia pertencer a uma outra ordem. Vem ali, entretanto, colher ensinamentos e
exemplos que, por inacessível ou indiferente que a eles pareça conservar-se
mesmo no curso da existência inteira, hão de, um dia, no futuro, frutificar em sua
consciência, já seja na erraticidade, já no regresso a uma nova encarnação. Para os que o recebem - é imperativo o corolário
- consistirá o beneficio em aceita-lo como instrumento de acomodação e prova e
conseguintemente, de progresso, tal seja a paciência com que o suportem, tal a caridade
- e é essa uma das suas aplicações mais proveitosos – com que perseverem em lhe
combater, por todas as formas de
persuasão, os pendores desregrados.
A mesma explicação comportam todos os
casos, a que ja nos referimos, de dissemelhanças, incompatibilidades domésticas
e repulsas instintivas entre seres vinculados pelas mais estreitas relações de
consanguinidade, com a ponderável circunstância de frequentemente se tratar não
apenas de espíritos adventícios, aos quais as primeiras oportunidades se oferecem
de fazer juntos a peregrinação terrena, senão de adversários, de rancorosos inimigos
que a Providência, com sapientíssimo desígnio, a cuja execução é indispensável
a pluralidade de existências, se compraz em reunir num mesmo lar.
Qual seja esse desígnio não é difícil
apreender pelos que sabem que o destino da humanidade, regulado por leis inflexíveis,
se encaminha a um ideal de amor e de fraternidade, que não aflora apenas na
mente de sonhadores e ideólogos, mas se afirma, ora bruxuleante e incerto, ora claramente
definido, nas conquistas do Direito e nos documentos da civilização (1), só
podendo, entretanto, consumar-se a preço da extinção de todas as rivalidades que
entre os homens suscita o choque de interesses, oriundo desse espírito de separatividade
que, transitoriamente necessário para a consciente afirmação do ser em seus primórdios evolutivos,
como o veremos oportunamente, a partir de um certo estado necessita ser
vigorosamente combatido, por constituir o máximo obstáculo à realização daquele
plano providencial. Como remover esse obstáculo?
(1) Seria pueril desconhecer, sobretudo em
face das brutalidades que a nossa tormentosa época de transição vem patenteando,
que ainda estamos consideravelmente longe do estado ideal de civilização,
verdadeiramente cristã, em que, banidos da nossa espécie os derradeiros vestígios
da barbaria, a justiça e o altruísmo serão as unidas normas reguladoras das ações
humanas. Se, entretanto, num largo trecho de séculos, compararmos com os do passado os costumes de nossos dias e, principalmente
observarmos os sintomas de repulsa que as violências cada vez mais inspiram,
despertando universais protestos, havemos de reconhecer que, embora lento, o
progressos moral é um fato.
Quem ousaria aprovar hoje as requintadas
atrocidades de um Nero, e onde os inomináveis sacrifícios dos cristãos atirados
às feras encontrariam espectadores bastante destituídos de senso moral para os
aplaudir? O mal existe ainda, sim, em larga escala, mas a consciência universal
o repele sempre com maior veemência, prova de que o nível da moralidade não
cessa de elevar-se. Que quer isso dizer senão que nos vamos tornando
gradualmente aptos para a assimilação e a prática dos divinos preceitos do Evangelho?
Por pouco que tenhamos caminhado em tal sentido, não é desarrazoado prever que
lá finalmente chegaremos.
Se considerarmos, de um lado, a soma
de ódios, de ressentimentos e aversões que, a fúteis pretextos ou por graves
motivos, dividem por toda parte as criaturas e se perpetuam pela reincidência
nas maldades com que não cessam elas de mutuamente se ferir, e se do outro ponderamos
o testemunho, que a doutrina e os fatos espíritas fornecem, no sentido de que a
morte do corpo não põe termo a tais antagonismos, permanecendo muitas vezes, no
espaço, irredutíveis em seus rancores os espíritos que na terra se odiaram, não
será difícil compreender que, para os curvar às injunções da lei do amor, em
cuja plenitude tem que se consumar o seu destino, outro meio mais eficaz não
haverá que coloca-los lado a lado em novas existências,
a fim de que, amortecidas, senão temporariamente extintas, na densidade da
carne, as reminiscências do passado, possam eles, mercê da forçosa aproximação que
a mesma carne estabelece e mediante as permutas de afeto a que se presta;
substituir as repulsas de outrora por uma, ao começo, gradual e por último
definitiva reconciliação.
Para isso não bastará decerto uma única
existência. Tantas vezes, porém, serão "plantados no pó de suas raízes",
tantas sobre suas cabeças brilhará o sol da misericórdia inesgotável, que os
que mais profundamente na terra se odiaram, à força de assinalar por
testemunhos de dedicação as suas múltiplas jornadas, terminarão por se fundir
nos elos da mais inquebrantável e afetuosa solidariedade.
Esse é, entre outros, o objetivo
providencial da vida em comum: proporcionar a espíritos culpados, por outra forma
irreconciliáveis, os meios de reparar anteriores faltas, retribuindo em amor as
suas vitimas de outrora os danos que, através um longo e tormentoso passado, lhes
haviam em maior ou menor escala produzido.
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