Pesquisar este blog

sábado, 19 de maio de 2012

29 - 'Doutrina e Prática do Espiritismo'





29  * * *


            Enclausurado no egoísmo, não se considera o homem vinculado por efetivos e duradouros laços senão à família em que nasceu ou que constituiu. E de tal forma prepondera e se insinua em todas as manifestações da natureza humana aquele sentimento que à sua influencia aberrativa nem o amor que por mais santo, no mundo, é reputado - o amor materno - se lhe subtrai. A mãe ama seus filhos e por eles a todos os sacrifícios se dispõe, porque o são seus. Outro, porém, é o sentimento que os filhos alheios lhe despertam.

            Não há contudo que estranhar nesse exclusivismo, sabiamente incluído nas previsões da lei divina. Antes que, pela ascensão a graus superiores de evolução, que inda nos são desconhecidos, adquiramos o sublime poder de dilatar o nosso amor á totalidade da espécie, que nos identifica, e aos demais seres, cumpre nos exercitarmos, a pretexto dos vínculos da carne, em toda a gama dos afetos pessoais, numa sorte de preparatório adestramento.

            É' no ambiente do lar que, com efeito, pela permuta de carinhosas expansões e de recíprocos desvelos, se estimulam e afirmam as nossas capacidades afetivas, como é aí também que empreendemos os primeiros ensaios de renúncia e, mesmo até, de sacrifício uns pelos outros, germens fecundos que, mais tarde, uma cultura sistematizada em tal sentido podará converter na plenitude da abnegação, que caracteriza os apóstolos e os santos.

            Sem dúvida a carne, considerada em sua feição peculiar como o mais grosseiro revestimento do espírito, de si mesma nenhuma virtude ou atributo lhe confere, constituindo antes, como vimos, um embaraço à livre manifestação de suas faculdades. De tal modo, porém, na harmonia geral em que se integram todas as coisas, a cada uma é assinalada a sua utilidade, tudo, ao demais, em nosso mundo inferior devendo ser encarado pelo prisma da relatividade, que esse mesmo acidente da carne, origem dos mais funestos arrastamentos para o espirito, se este lhe não refreia os desordenados apetites, destina-se, entretanto, a ser um eficaz auxiliar do seu progresso, pelo fato mesmo, a que aludimos, de criar ou, pelo menos, servir de pretexto para criar laços de afeto entre criaturas que doutro modo se conservariam na ,perpétua estagnação do sentimento.

            Nada há que possa mais profundamente abalar as fibras da humana sensibilidade - abstração feita dos seres extremamente evoluídos, cuja vibratilidade emocional, duplicada de altruísmo, abrange escalas Inacessíveis aos vulgares - que o fenômeno da maternidade e também, posto que em grau geralmente admitido como atenuado, o da paternidade. O alvoroço, o transporte de comovido jubilo, só nas lágrimas capaz de traduzir-se, que um coração de mãe ou pai experimenta ao primeiro choro de um filho recém nato  marca, por assim dizer. o início de uma transfiguração moral para todo aquele, pelo menos, que por uma espécie de instinto superior adivinha e aceita, melhor que compreende, a magnitude ,dessa auréola, por excelência, dignificadora da criatura neste mundo. Ver-se desdobrado, reproduzido num pequenino ser, que é carne da nossa carne, vida da nossa própria vida, haver sido por essa forma admitido à participação de um dos atributos fundamentais do Criador, que a todos os seres a sua vida comunica, não é somente uma enobrecedora fonte de emoções, senão principalmente um grave motivo de meditação nas tocantes responsabilidades de que essa função investe a criatura, daí em diante incumbida da direção de uma alma, a que os seus próprios atos e lições devem servir de guia e de modelo.

            Mesmo para os que, na ausência de uma esclarecida educação moral, não abrangem tão largo descortino, os simples deveres de assistência aos filhos, desde o berço traduzida nos cuidados a lhes dispensar para a conservação da vida e da saúde; os sobressaltos e as vigílias a que a sua fragilidade, com frequência exposta a tantos acidentes, dá lugar, tudo isso que inquieta, mortifica e faz sofrer o coração dos pais, iniciando-os num sublime e doloroso aprendizado, constitui outros tantos estímulos de maior e mais enternecido afeto, a tal ponto que um filho enfermiço, defeituoso, ou aleijado até, vem a ser o mais querido, pela associação da piedade ao amor, que simultaneamente inspira.

            E que dizer dessa outra estrofe do poema de amor que o lar, contemplado pelo seu nobre e elevado prisma, encerra - o amor fraterno? - Sob o aparente vínculo da carne, que sentimento haverá mais doce e espiritualizado que esse que prende irmãos e irmãs, sobretudo se a identidade de índole e a similitude e elevação de aspirações os aproximam?            

            O mesmo amor conjugal, sem dúvida, o mais egoístico de todos, começando numa exaltação dos sentidos, que os atrativos físicos despertam, não é verdade que termina por se espiritualizar e converter na estima, respeitosa e inalterável, que a virtude e a fidelidade mútua, de um lado, e do outro os repetidos testemunhos de dedicação, à medida que os anos passam, e com eles sobrevêm os trabalhos e sofrimentos suportados em comunhão não cessam de fortalecer? - Infelizmente raros, destinados contudo Ia se tornar frequentes, mercê da nova orientação moral que o Espiritismo vem imprimir à humanidade, tais casos de harmonia perfeita no casal são os que, no verdadeiro sentido, realizam afortunadamente o bíblico preceito de serem "dois numa só carne".

            Não há, pois, que fulminar censuras ao acendrado apego em que todos esses laços domésticos se firmam, transitoriamente necessários que são, a título de exercício, que o espirito é chamado a efetuar, nas infinitas modalidades do amor, afim de que, por uma sempre maior dilatação dessa capacidade, se torne apto à fusão no Amor Supremo, que tudo - seres e coisas - abrange e nada exclui:

            Mas, se à luz do critério humano - imporia ponderar  - a família se restringe unicamente aos que da mesma consanguinidade se originam, o principio da pluralidade de existências, em virtude do qual os espíritos ora se encontram, em repetidas encarnações, num mesmo círculo doméstico, ora se dispersam, para com outros constituir novas famílias, sem de modo algum quebrantar as anteriores relações de parentesco, antes concorre para lhes imprimir o cunho de considerável amplitude.

            É assim que, entre os que hoje consideramos estranhos, porque de fato no-lo sejam no que se refere aos vínculos da carne, pode - quantas vezes - se encontrar um pai, um irmão, irmã ou mãe – seres em suma extremamente caros - que conosco participaram de vicissitudes e alegrias em precedente encarnação.

            Nem doutro modo se explica a irresistível simpatia que, ao primeiro encontro, se estabelece entre criaturas que jamais se tinham visto e que nenhum laço de sangue agora prende.

            Essa misteriosa e, por outra forma, inexplicável atração de alma a alma diferente -  não será ocioso advertir - da sólida estima que prolongada convivência termina por gerar entre pessoas em quem a afinidade de aspirações e sentimentos coincide, outra coisa realmente não significa senão que se acham em presença amigos de outro tempo, que uma nova máscara de carne mal impede de, positivamente, se reconhecerem.  

            Quando mesmo, porém, não seja esse o caso e os laços de afeição que, no passado, a outros espíritos nos prenderam tenham sido assaz fugazes para impedir essa espécie de vago e instantâneo reconhecimento, esta simples consideração de que no estranho de hoje pode estar um parente, um amigo, mesmo - quem sabe? - um benfeitor de outro' é de molde a influir salutarmente nas relações dos homens entre si, tornando-as menos hostis e exclusivistas, por lhes fazer compreender que os laços da família, sobrepondo-se ao transitório acidente da carne, para vincular, não corpos, mas espíritos, se desdobram ampliam através do tempo, abrangendo bem mais dilatado círculo que o admitido até aqui pela concepção unitária da existência humana.

            Certo, não basta o simples fato de terem uma vez convivido outrora, ou atualmente conviverem, para criar entre os espíritos a efusiva harmonia de sentimentos que se observa nos seres de uma mesma ordem evolutiva. É necessário, ou que tais encontros se tenham consecutivamente repetido, favorecendo cada vez mais íntima aproximação, ou que na índole e nas disposições morais dos indivíduos existam pontos de similitude e de contato, de sorte que, desenvolvidos pela repetição dos mesmos atos e fortalecidos pela reciprocidade de afetuosos testemunhos, venham a estabelecer essa indissolúvel solidariedade, que nem o tempo nem as vicissitudes têm o poder de destruir.

            Essa perfeita harmonia de sentimentos, entretanto – convém assinalar -- tendo como resultantes a paz e a cordialidade nas relações individuais, só existe realmente entre os seres que atingiram um apreciável grau de elevação moral. Entre os retardatários nesse rumo o que se observa é a comunidade de paixões, a mútua simpatia por suas próprias inferiores qualidades, donde resulta, quer na livre estância da espiritualidade, como no capítulo anterior o indicávamos, quer nas sucessivas migrações terrestres, que tais seres, obedecendo a um natural pendor, nascido de suas afinidades eletivas, que se traduzem na conhecida formula similia similibus, se procuram, a constituir núcleos mais ou menos homogêneos, mas ficam sempre distanciados daquele ideal de pacífica harmonia, que a turbulência de suas inclinações e atos impede forçosamente de realizar.

            É por isso, e porque na terra que habitamos - região das mais inferiores do universo - predominam os retardatários daquela natureza, constituindo uma reduzida minoria os seres sequer medianamente espiritualizados, nos quais a benignidade de sentimentos, aliada à pureza de costumes, escassamente contrasta com a depressão moral do maior numero, que o lar doméstico, longe de ser o tranquilo refúgio da felicidade, que só na paz se pode cimentar, oferece geralmente o espetáculo de rivalidades e perturbações, apenas dissimuladas, nas classes que de esclarecidas se presumem, pela compressão, de alguma sorte exterior, da educação ou das conveniências. Tão raro é que nesta esfera expiatória possa ter lugar a verdadeira união de espíritos simpáticos!

             Não é isso contudo um mal, senão um hem, reclamado pelas próprias necessidades da evolução humana, que só se pode vantajosa e mais rapidamente efetuar mediante o contato em que, diretamente sejam postos espíritos de categorias diferentes, a fim de que aos mais atrasados seja proporcionada ocasião de auferir os benefícios da direção e assistência que os mais experientes ou melhores têm por encargo Ihes prestar.

            Assim se explica a, de resto, aparente anomalia, que precedentemente assinalamos, de aparecer no seio de uma família honrada, homogênea, portanto, nesse ponto de vista pelo menos, em sua composição  moral, um indivíduo que, por suas pervertidas inclinações, constituindo um motivo de escândalo e desgostos, denuncia pertencer a uma outra ordem. Vem ali, entretanto, colher ensinamentos e exemplos que, por inacessível ou indiferente que a eles pareça conservar-se mesmo no curso da existência inteira, hão de, um dia, no futuro, frutificar em sua consciência, já seja na erraticidade, já no regresso a uma nova encarnação.  Para os que o recebem - é imperativo o corolário - consistirá o beneficio em aceita-lo como instrumento de acomodação e prova e conseguintemente, de progresso, tal seja a paciência com que o suportem, tal a caridade - e é essa uma das suas aplicações mais proveitosos – com que perseverem em lhe  combater, por todas as formas de persuasão, os pendores desregrados.

            A mesma explicação comportam todos os casos, a que ja nos referimos, de dissemelhanças, incompatibilidades domésticas e repulsas instintivas entre seres vinculados pelas mais estreitas relações de consanguinidade, com a ponderável circunstância de frequentemente se tratar não apenas de espíritos adventícios, aos quais as primeiras oportunidades se oferecem de fazer juntos a peregrinação terrena, senão de adversários, de rancorosos inimigos que a Providência, com sapientíssimo desígnio, a cuja execução é indispensável a pluralidade de existências, se compraz em reunir num mesmo lar.

            Qual seja esse desígnio não é difícil apreender pelos que sabem que o destino da humanidade, regulado por leis inflexíveis, se encaminha a um ideal de amor e de fraternidade, que não aflora apenas na mente de sonhadores e ideólogos, mas se afirma, ora bruxuleante e incerto, ora claramente definido, nas conquistas do Direito e nos documentos da civilização (1), só podendo, entretanto, consumar-se a preço da extinção de todas as rivalidades que entre os homens suscita o choque de interesses, oriundo desse espírito de separatividade que, transitoriamente necessário para a consciente afirmação do ser em seus primórdios evolutivos, como o veremos oportunamente, a partir de um certo estado necessita ser vigorosamente combatido, por constituir o máximo obstáculo à realização daquele plano providencial. Como remover esse obstáculo?

            (1) Seria pueril desconhecer, sobretudo em face das brutalidades que a nossa tormentosa época de transição vem patenteando, que ainda estamos consideravelmente longe do estado ideal de civilização, verdadeiramente cristã, em que, banidos da nossa espécie os derradeiros vestígios da barbaria, a justiça e o altruísmo serão as unidas normas reguladoras das ações humanas. Se, entretanto, num largo trecho de séculos, compararmos com os do  passado os costumes de nossos dias e, principalmente observarmos os sintomas de repulsa que as violências cada vez mais inspiram, despertando universais protestos, havemos de reconhecer que, embora lento, o progressos moral é um fato.
            Quem ousaria aprovar hoje as requintadas atrocidades de um Nero, e onde os inomináveis sacrifícios dos cristãos atirados às feras encontrariam espectadores bastante destituídos de senso moral para os aplaudir? O mal existe ainda, sim, em larga escala, mas a consciência universal o repele sempre com maior veemência, prova de que o nível da moralidade não cessa de elevar-se. Que quer isso dizer senão que nos vamos tornando gradualmente aptos para a assimilação e a prática dos divinos preceitos do Evangelho? Por pouco que tenhamos caminhado em tal sentido, não é desarrazoado prever que lá finalmente chegaremos.

            Se considerarmos, de um lado, a soma de ódios, de ressentimentos e aversões que, a fúteis pretextos ou por graves motivos, dividem por toda parte as criaturas e se perpetuam pela reincidência nas maldades com que não cessam elas de mutuamente se ferir, e se do outro ponderamos o testemunho, que a doutrina e os fatos espíritas fornecem, no sentido de que a morte do corpo não põe termo a tais antagonismos, permanecendo muitas vezes, no espaço, irredutíveis em seus rancores os espíritos que na terra se odiaram, não será difícil compreender que, para os curvar às injunções da lei do amor, em cuja plenitude tem que se consumar o seu destino, outro meio mais eficaz não haverá que coloca-los lado a lado em novas existências, a fim de que, amortecidas, senão temporariamente extintas, na densidade da carne, as reminiscências do passado, possam eles, mercê da forçosa aproximação que a mesma carne estabelece e mediante as permutas de afeto a que se presta; substituir as repulsas de outrora por uma, ao começo, gradual e por último definitiva reconciliação.  

            Para isso não bastará decerto uma única existência. Tantas vezes, porém, serão "plantados no pó de suas raízes", tantas sobre suas cabeças brilhará o sol da misericórdia inesgotável, que os que mais profundamente na terra se odiaram, à força de assinalar por testemunhos de dedicação as suas múltiplas jornadas, terminarão por se fundir nos elos da mais inquebrantável e afetuosa solidariedade.

            Esse é, entre outros, o objetivo providencial da vida em comum: proporcionar a espíritos culpados, por outra forma irreconciliáveis, os meios de reparar anteriores faltas, retribuindo em amor as suas vitimas de outrora os danos que, através um longo e tormentoso passado, lhes haviam em maior ou menor escala produzido.




Nenhum comentário:

Postar um comentário