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V
- Anterioridade do espírito,
pluralidade de existências. Origem das desigualdades. Origem das desigualdades intelectuais, morais e sociais das criaturas.
Ampliação dos laços da família. Uniões simpáticas e antipáticas entre os
espíritos. Objetivo providencial da vida em comum. Escolha das provas. Livre
arbítrio e determinismo.
Ao começar o primeiro capítulo deste
livro, reproduzíamos as seguintes interrogações que vem, há séculos, torturando
a mente de pensadores, filósofos e cientistas e - agora acrescentaremos - também
de quantos, elevando-se acima das trivialidades ambientes, sentem a necessidade
de perscrutar os augustos mistérios da vida e do destino: que somos? Donde
vimos e para onde vamos?
O que foi exposto até aqui teve por
fim, na medida de nossos limitados conhecimentos e de acordo com os ensinos da
Revelação espírita, responder à primeira dessas interrogações.
Somos um espírito, dotado de
faculdades próprias e independentes de qualquer dos veículos que servem para a
sua manifestação, desde o perispírito, que é o seu revestimento imediato e, de
alguma sorte, permanente, ao corpo físico, instrumento apropriado à ação que
exerce no mundo exterior da mesma natureza, mediante os órgãos e funções que
lhe são peculiares, entre estes dois extremos cabendo ponderar o corpo astral
e, finalmente, o fluido ou princípio vital, em que, como elementos intermediários
e complementares, se integra à personalidade, sob cuja forma transitória se
apresenta o espírito na terra.
Donde vem esse espírito que, assim,
antes de tudo e fundamentalmente somos? Será criado um, expressamente, para
cada corpo e a efêmera viagem que desse modo empreende, rumo da eternidade,
através as universais e inevitáveis hostilidades do meio terrestre, será para
todos um começo, ou se prenderá por ignorados elos aos sucessos de um passado,
na memória de quase todos, temporariamente extinto?
Eis o que se trata agora de indagar.
Se interrogarmos a velha religião,
que foi a de nossos pais e cujos ensinos encaminharam os nossos primeiros
impulsos vacilantes na senda do conhecimento, ela nos responderá com o dogma de
uma existência única, em que se obstina, sem atender, de um lado, a que por
essa forma se divorcia da doutrina, ora claramente expressa, ora tacitamente
sancionada pelo Cristo, como o demonstraremos oportunamente, e do outro fica,
reduzida à impossibilidade de resolver satisfatoriamente o problema do destino
humano, assim no ponto de vista das desigualdades morais, intelectuais e sociais
que nos homens se observam como da sorte que lhes está reservada na outra vida,
Se, com efeito, para cada corpo é criada
expressamente uma alma, donde procedem os variadíssimos graus de moralidade e
inteligência que as criaturas apresentam? Porque numas a virtude floresce até
os místicos arroubos e o edificante esplendor da santidade, enquanto noutras -
para nos cingirmos apenas aos extremos - a propensão para o mal gera os grandes
e incorrigíveis celerados? Terão saído assim das mãos do Criador ? E se nuns
indivíduos a pobreza intelectual orça pela estupidez e noutros a capacidade se
ilumina dos clarões do gênio, será porque assim caprichosamente aprouve à
Divindade? No que se refere à condição social, porque são uns bafejados pelas
auras da fortuna, ocupando as mais vantajosas posições, do berço ao túmulo
favorecidos pelo que se chama a boa estrela, em flagrante contraste com outros
que a enfermidade, o abandono, as adversidades, a miséria e toda sorte de
aparentes injustiças assediam, tornando-lhes um
intolerável fardo a existência?
E depois de terem vivido esse breve
instante, que é a vida neste mundo, mesmo que por dezenas de annos se
prolongue, ser-Ihes-á proferido o inapelável
julgamento, a cujos efeitos terão que sujeitar-se por toda a eternidade? Mas em
tal caso as penas e recompensas, oriundas dos atos naquele fugaz minuto praticados,
estarão em proporção com a infinidade desse prazo?
E quais serão as penas? - O ensino
dogmático é claro e intransigente:
inferno para os culpados, como as recompensas para os justos, consistirão em
desfrutar, no paraíso, as ociosas, mas por isso pouco sedutoras, delícias da
bem aventurança.
Ora, se contra a desigualdade na distribuição
dos dons como dos bens terrestres, clama o princípio de justiça, mais agrava a
iniquidade essa irremediável perspectiva de um futuro espiritual decorrente de
condições sobre que não foram previamente ouvidos os interessados. Assim, que
culpa tem o criminoso de haver sido criado com propensões irresistíveis para o
mal, ou que mérito pode alegar o santo de ter recebido em partilha uma natureza
instintivamente inclinada para o bem? Não é tudo uma questão de índole?
Dir-se-á que uns e outros tiveram
durante a vida, o tempo e os ensejos necessários a se exercitar nas virtudes e
combater os vícios. Mas para as crianças
que, mortas em tenra idade, não tiveram ocasião de praticar o bem nem de evitar
o mal e que, não obstante, vão ser incorporadas às radiosas falanges dos que,
para conquistar a santidade, pelejaram contra todas as tentações do mundo, qual
terá sido a utilidade dessa efêmera existência? E, por nada haverem feito,
ser-Ihes-á outorgado o mesmo galardão ?
Essas e inumeráveis outras
objecções, que seria fastidioso
recordar, subleva o dogma da existência única, porventura suficiente à credulidade
de outras eras, mas positivamente incompatível com as exigências da análise e da
razão esclarecida, que são o apanágio do nosso tempo. Não basta afirmar, para
ter o direito de ser acreditado ; é necessário esclarecer e demonstrar.
É o que faz precisamente o Espiritismo,
erigindo no lugar daquele dogma o princípio eminentemente raciocinalista,
comprovado pelos fatos, da anterioridade do espírito e da pluralidade de suas existências
neste mundo, com o que de resto não pretende foros de originalidade, pois que
ao contrário, se examinarmos as Revelações que o precederam, veremos essa
concepção incorporada ao ensino religioso de todos os tempos, remontando assim à
mais alta antiguidade e podendo, em tais condições invocar, para prestigia-la,
a sanção dos séculos, senão o consenso universal.
Desde a Índia, com efeito, em que,
com Lei do Carma ou da causalidade, constituía um dos inabaláveis suportes do
Induísmo, desdobrado nos dois poderosos ramos, bramânico e budista, ao Egito e a
Caldeia, tradicionalmente
cultivada e transmitida pelos Magos aos iniciados, passando sucessivamente às Gálias,
com os Druidas,
e à Grécia, em que, colhida nas tradições órficas, era ensinada por Pitágoras e
mais tarde por Platão,
para nos determos finalmente no livro esotérico do Judaísmo, sob o nome de Cabala (1), vamos encontrar essa doutrina dos renascimentos sucessivos da alma
invariavelmente perpetuada em todos os códigos religiosos do passado.
(1) Omitimos nesta incidente nomenclatura o
EVANGELHO de Jesus, por termosde, no capítulo seguinte, a propósito da
documentação que então faremos, nos reportar a algumas de suas passagens,
justificando assim essa menção à parte.
Adotando-a, mediante a palavra
reveladora dos Mensageiros do invisível, o Espiritismo não faz, portanto, mais
que restabelecer uma grande verdade, obscurecida e renegada, é certo, pela
igreja, logo que entrou a se afastar do espírito e dos moldes dos primeiros
tempos apostólicos, mas suficientemente vivaz para ressurgir do eclipse em que
momentaneamente mergulhara e reatar, através dos séculos, a sua continuidade necessária.
Sem a preexistência do espírito e a
pluralidade de suas existências, como bem o assinala André Pezzani, "nada se explica e a justiça de Deus se some
no monstruoso fantasma do acaso". Admitindo-as, ao contrário, não somente
se compreende o verdadeiro objetivo dessa peregrinação de vida em vida; cada
uma das quais, com os seus sofrimentos e trabalhos, com as suas decepções e
experiências, representa um degrau na escala ascensional do aprendizado, que
todos temos que fazer, para destinos sempre mais nobres e elevados -
aprendizado que uns começaram mais cedo ou em que têm sido mais aproveitados e
diligentes do que outros - como se patenteia a origem e a razão de ser das
desigualdades morais, intelectuais e sociais das criaturas.
Não se trata, por prematuro, de
indagar neste momento qual terá sido o ponto de partida dessa peregrinação, o que,
com inconveniente subversão do plano expositivo que temos adotado, nos levaria a
antecipar considerações, cuja oportunidade só em capitulo adiante se nos
apresentará. Tudo quanto por agora importa assinalar é que esta vida não é a única
para o espírito e que todos quantos palmilhamos esta terra de exílio deixamos
para trás uma seria mais ou menos longa de idênticas jornadas, o que vale dizer
uma esteira de boas ou más obras, cujos resultados inelutavelmente se refletem,
para bem ou para mal, nas condições pessoais de cada um, em virtude daquela sábia
e eterna lei, que os orientais chamam de Carma, segundo acabamos de aludir, e
nós outros de justiça, e que, através das sucessivas e solidárias existências,
reparte a cada um segundo suas obras.
A fim de dissipar todas as dúvidas, a
medida que possam ir sendo porventura formuladas, não prosseguiremos sem tomar
desde já em consideração a que, a primeira vista, sugere o enunciado acima.
"Como posso eu ter a
responsabilidade e sofrer as consequências do que um outro praticou nessas vidas anteriores, de que nem ao menos me recordo?"
É' a objeção que logo fazem os alheios à doutrina, ao terem notícia - e não
mais que a notícia -daquele principio, soberanamente igualitário.
Sem querermos entrar na apreciação
desse esquecimento do passado, que constitui um dos assuntos do capítulo
seguinte, observaremos que tal objeção procede de uma confusão, de resto,
consideravelmente generalizada, entre o ego individual, que é o espírito, e os
seus revestimentos transitórios.
Que importam as figuras ou personalidades
humanas que tenha o espirito adotado, verdadeiras sombras, de que, vida após
vida, se vai sucessivamente despojando, para revestir outra mais outra, à
medida de suas necessidades de progresso? Os atos, como os pensamentos e sentimentos,
pertencem sempre ao espírito e é este que lhes recolhe o mérito ou padece as
desagradáveis consequências, conforme sejam bons ou maus.
Confundir o ego com a personalidade
exterior, seria o mesmo que confundir o indivíduo com o traje que ele veste. 0ra,
como o indivíduo pode, repetidas vezes, mudar de traje, sem cessar de ser o
mesmo, assim ego, ou o espírito, na sucessão de suas existências, muda constantemente
de forma, permanecendo sempre o mesmo espirito.
O homem não sofre, pois, as consequências
do que "um outro" praticou, senão do que ele mesmo fez, no curso de
suas peregrinações anteriores.
Da aceitação desta verdade,
amplamente documentada nas obras da doutrina, um dos mais salutares efeitos que
decorrem, no ponto de vista individual, é o dever de submissão resignada aos
males desta vida, dos quais somos assim o próprio autor. Como e porque nos
insurgirmos, realmente, contra os efeitos do que é a nossa obra? Cumpre sofrer
e, se o queremos com proveito, fazer do sofrimento um estimulo de reabilitação
e um anteparo a recidivas.
No ponto de vista das relações
domésticas e sociais não é, porém, menor o beneficio.
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