01-02
A Reencarnação
OBJEÇÕES E REFUTAÇÃO
A série
de provas, demonstrativas que até agora produzimos e com que acreditamos ter
evidenciado a pluralidade de existências da alma, 1º. pelo testemunho dos
Evangelhos, 2º. pelos fatos de observação geral da vida humana, analisados: à
luz da justiça divina, 3º. pelos fenômenos da psicologia experimental, 4º. pela
recordação de outras vidas em alguns indivíduos, no estado normal, embora como
casos excepcionais, mas nem por isso menos probatórios e dignos de exame, tudo
isso nos dispensaria porventura do trabalho de alguma
sorte tornado supérfluo, de tomar em consideração as objeções de pessoas formuladas
contra essa lei admirável pelo nosso colega do ‘Puritano’, em seu editorial de 17 de agosto, depois do qual – digamos
de passagem - recolheu-se ele a um mutismo verdadeiramente comprometedor não se
animando a discutir um só de nossos temas de argumentação.
Entendemos, todavia, que, quando não
tivesse a utilidade de mostrar que as doutrinas do Espiritismo resistem triunfalmente
a todas as críticas, e a todas elas levam vantagem, legitimando a superioridade
que os seus crentes justamente lhes atribuem sobre todas as demais doutrinas, o
não desprezar as impugnações do nosso ilustrado colega se nos impõe, ao menos, como
um dever de cortesia a que nos julgamos com direito, que ao demais não
recusamos a nenhum adversário no terreno da discussão teórica.
A essa razões acresce o compromisso,
por nós publicamente assumido, de responder por fim a tais objeções. Vamos, por
conseguinte, desobrigar-nos dele.
Foram em número de quatro os
argumentos pelo colega formulados em oposição às vidas múltiplas, o último dos
quais - o esquecimento do passado – a
seu ver a mais revoltante injustiça e a maior
das tiranias, já se acha por
natureza destruído com a demonstração que anteriormente fizemos, no sentido de
que esse esquecimento não só se justifica pelas leis da biologia e da
fisio-psicologia sio-psicologia que regem a encarnação humana, mas sobretudo
que ele representa um das maiores misericórdias do Criador, desembaraçando seus
filhos daquilo que lhes poderia ser um estorvo nesse caminho reparatório e
regenerador, e deixando-lhes somente o que pode favorecer e acelerar o seu
progresso.
Restam, pois, três objeções a examinar,
e são as seguintes, tão sinteticamente quanto o exige a limitação de espaço,
mas também tão nítida e fielmente reproduzidas como no-lo impõe a lealdade no
debate:
I.
A doutrina das reencarnações é adotada do paganismo.
II.
Implica a salvação pelas obras, em oposição à opinião de S. Paulo.
III.
A salvação pelas obras torna vãos o sacrifício, paixão e morte de Jesus.
Examinemos, por ordem, cada um desses argumentos.
No que toca no primeiro, não vemos, antes
de tudo, em que a antiguidade de uma doutrina possa constituir motivo de impugnação,
uma vez que ela não infrinja os preceitos da razão e do bom senso. Pensamos, ao
contrário, com S. Paulo que, se “Deus nunca se deixou sem testemunho,” um
princípio que atravessa os séculos e
sobrevive aos próprios sistemas filosóficos ou religiosos de que fez parte, para
reaparecer em sucessivas revelações com uma singular e indestrutível
vitalidade, revela nesse mesmo fato a sua origem divina.
Se, pois, o dogma da reencarnação
remonta a sua anterioridade à filosofia pagã- e podemos acrescentar que vem de
muito mais longe, do Oriente, de cujas mais antigas religiões fazia parte; se
nela acreditavam os próprios hebreus, como vimos no Evangelho, a propósito de
João Batista e do cego de nascença; se Jesus abertamente o proclamou em seus ensinos, e, o Espiritismo, como terceira
revelação, complementar da messiânica, o incorpora, por esse mesmo fato, aos
seus princípios, com a vantagem de
demonstrar experimentalmente, como o não havia sido feito, é que esse dogma
é verdadeiro, é de origem divina e constitui
uma das leis da natureza, intimamente ligada às condições do progresso humano
sobre a terra.
Que os cristãos da Reforma,
esquecidos da sabedoria desta advertência de Paulo “ a letra mata e o espírito
vivifica” se tivessem exclusivamente apegado à letra das antigas escrituras e
particularmente de algumas passagens do iluminado apóstolo dos gentios, para se
encerrarem na imobilidade intolerante e dogmática, desprezando elementos de
vida e progresso, como esse da pluralidade das existências da alma, que hoje vai
sendo cientificamente demonstrada, isso em nada pode invalidar a sua veracidade:
quando muito
provará que os discípulos da Reforma não souberam penetrar-se da grandeza e elevação
do espírito da doutrina, e como cegos se conservaram durante séculos diante de
uma verdade tão claramente enunciada, e tão profundamente necessária para
explicar aos homens como a justiça de deus fulgura soberana em meio das
misérias e desigualdades da terra.
***
Repugna-lhes, entretanto, admitir
esse princípio – e passamos a examinar a segunda objeção – porque ele implica a
salvação pelas obras, em oposição, no entender do colega, a opinião de Paulo.
Não nos deteremos
em examinar aquilo o que há de monstruosa e absurdo na doutrina da
predestinação e da graça, que faz nascerem uns indivíduos irremissível e
fatalmente condenados à perdição e outros de antemão fadados às celestes
delícias, doutrina de que a igreja reformada faz uma das capitais do seu
ensino, porque isso nos levaria demasiado longe. Para o fim que temos em vista,
basta-nos opor a palavra de Paulo, invocada pelo colega, a palavra do
mesmíssimo Paulo, em uma de suas mais instrutivas e memoráveis epístolas – e
não careceríamos, como se vai ver, de mais que dessa citação.
Porque, se de fato, em algumas
passagens, exaltando as excelências da fé e os méritos do sacrifício de Jesus,
o formidável organizador do Cristianismo parece de algum modo justificar a
doutrina da salvação pela graça, em outras passagens o seu pensamento acerca da
necessidade das obras é tão claro que só a estreiteza do espírito dogmático, ou
porventura a falta de chave para compreensão do sentido profundo dos seus
sentimentos, poderá gerar esse exclusivismo.
O erro dos iniciadores, como dos
continuadores da Reforma, inspirado aquele – quem sabe? – nas necessidades do
seu tempo e no estado das inteligências de então, consistiu e tem consistido em uma série de mutilações
dos ensinos e das tradições sagradas. Em lugar de tomarem os Evangelhos em seu
conjunto, como um todo harmônico e integral, cujas partes se completam entre
si, e de adotarem o mesmo processo em relação às doutrinas contidas nas
epístolas dos apóstolos, colocando-se ao demais, em relação a estas últimas,
como de algumas parábolas e alegorias evangélicas, no ponto de vista da
relatividade dos costumes e dos conhecimentos da época em que tais ensinos
foram dados, o que os membros da nova igreja fizeram e tem feito é escolher um
certo número de preceitos, mais convenientes às suas vistas e, apegando-se
formalmente à letra, com eles construir o seu edifício dogmático, com evidente
quebra da integridade doutrinária.
Assim, por exemplo, pretendendo
apoiar-se em Paulo, os reformadores erigem em dogma essa doutrina, sem dúvida
muito cômoda, mas muito perigosa e funesta a causa do progresso humano, da
salvação exclusiva pela graça. Que fazem eles, porém, entre outros, do ensino
do grande convertido de Damasco acerca da caridade?
Eis aqui como se expressava ele,
dirigindo-se aos Coríntios (Epístola I, Cap. X111, v. v. 1 a 7):
“Se
eu falar as línguas dos homens e dos anjos, e não tiver caridade, sou como o
metal que soa ou como o sino que tine.
E se eu tiver o dom da profecia[1] e
conhecer todos os mistérios e quanto se pode saber, e se tiver toda a fé, até o
ponto de transportar montes, e não tiver caridade, não sou nada.
E se eu distribuir todos os meus
bens em o sustento dos pobres, e se entregar o meu corpo para ser queimado, se,
todavia, não tiver caridade, nada disto me aproveita.
A caridade é paciente, é benigna; a
caridade não é invejosa, não obra temerária nem precipitadamente, não se
ensoberbece. Não é ambiciosa, não busca os seus próprios interesses, não se
irrita, não suspeita mal. Não folga com a injustiça, mas folga com a verdade.
Tudo tolera, tudo crê, tudo espera, tudo sofre.”
E acrescenta adiante, positivamente
(v. 13):
“Agora,
pois, permanecem a fé, a esperança e a caridade, estas três virtudes; porém a
maior delas é a caridade.”
Não se pode ser mais claro e categórico,
nem sabemos que jamais tenha sido dada mais bela definição dessa dileta filha
do céu – a caridade.
Em que consiste ela? Não é nas
únicas obras de beneficência material,
pois ainda distribuindo os bens no sustento dos pobres, se se a não possui
verdadeiramente, isso nada aproveita, como sem ela de nada vale o próprio de
sacrifício, induzindo a entregar o corpo às chamas.
A caridade é, pois, uma virtude
antes de tudo moral, paciente, benigna, modesta e indulgente, simples,
desinteressada e confiante, isto é, constitui o transunto das perfeições
espirituais, o grau supremo da bondade. Por isso, a coloca Paulo acima da
própria fé, mesmo avantajada ao ponto de transportar montanhas:
Ora, que se exige para ser atingido
pela graça da salvação por graça? A fé em Jesus Cristo. “Crede em Jesus e serás
salvo!”
Se, porém, acima das excelências da
fé, coloca Paulo a soberania da caridade, não torna ele evidente a necessidade
das obras para salvar-se?
Porque, enquanto a fé é uma virtude
instintiva ou impulsiva, e a esperança uma virtude, por assim dizes,
expectante, como a humildade o é passiva, a caridade é uma virtude
essencialmente ativa. É ele que se reparte em desvelos e solicitude por todos
os necessitados do corpo e do espírito, levando-lhes o socorro material, mas
também e sobretudo o conforto moral, porque sem este de nada serviria aquele.
E, numa palavra, o amor em ação, a prática do bem em suas mais delicadas nuanças, tais como magistralmente as descreveu
o grande apóstolo, tornando obrigatório o seu exercício a todos os cristãos.
Entendem, porém, os reformistas – e
com eles o nosso colega do ‘Puritano’ – que a necessidade de tal
prática tira a razão de ser do sacrifício, paixão e morte de Jesus. Em que se
fundam eles para concluir assim? Em uma falsa compreensão da utilidade, dos
méritos e alcance da missão do Divino Mestre e em uma remota e bárbara tradição
que pretende para apaziguar a cólera de Deus, irritado contra as iniquidades
dos homens, o manso Cordeiro ofereceu-se em holocausto, para que o seu sangue
derramado lavasse as culpas do gênero humano...
E, ainda, na ordem dos costumes
grosseiros e materiais, a ideia dos sacrifícios sangrentos, oferecidos à
Divindade, de um lado para lisonjear-lhe a crueldade, do outro para acalmar os
seus furores.
Estamos, todavia, já tão
distanciados desse estado inferior da mentalidade humana, que se comprazia em
rebaixar a soberana Bondade ao nível dos tiranos sanguinários, que nos
dispensaríamos de examinar essa grotesca e repulsiva concepção, se não
devêssemos uma observação ao ilustrado antagonista que nos proporcionou o
afortunado ensejo desta réplica.
Em duas palavras: como entende ele
os benefícios do sacrifício de Jesus? Foi um ato gracioso, em proveito de todo
o gênero humano, sem distinção de seitas e de casta, ou nacionalidade? Por esse
ato ficou gratuitamente redimida toda a humanidade da morte e do pecado? Em tal
caso, mesmo aqueles povoa aos quais ainda não chegou o Evangelho, mesmo às
tribos mais ferozes e selvagens, estão dispensados de todo o esforço por sua
própria salvação. O sangue de Jesus redimiu a todos, e lhes garantiu ipso facto a bem-aventurança.
Se, porém, não bastou esse
sacrifício, e é necessário um esforço de conversão da parte do que se quer
salvar, tanto faz que se exija o ato de fé, como as obras de caridade; de
qualquer modo tornou-se inútil, só por só, o sacrifício para a grande maioria.
De duas uma: ou a
redenção é outorgada a todos por graça, e a todos aproveita indistintamente, ou
para a salvação é necessária alguma coisa da parte do indivíduo, e, neste caso,
se a fé é exigível, nada impede que o seja também a caridade...
in ‘Reformador’ (FEB)
Editorial em 15 de Novembro
de 1905
administrador
Pedro Richard
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