Collignon
e
“Os
Quatro Evangelhos”
No dia 25 de dezembro do ano de 1902,
desencarnava, em Quimper, sede do Departamento de Finistère, a extraordinária
médium francesa Emilie Collignon (Bréard, enquanto
solteira). Foi através de suas faculdades, como se sabe e se agradece, que os evangelistas
ditaram as explicações contidas na notável obra “Os Quatro Evangelhos” ou a
“Revelação da Revelação”, posteriormente coordenada pelo bastonário bordelês
Jean-Baptiste
Roustaing.
Infelizmente, há muito pouco que
dizer sobre a vida de Mme. Collignon, senão os escassos
dados conhecidos e que reuni em meu livro inédito “A Posição Zero”. As grandes
figuras, entretanto - particularmente quando lhes sobressai a humildade -, deixam sempre
raros registros, cabendo à posteridade a pesquisa lenta e progressiva, até que
se lhes levantem todos os contornos biográficos. É o mesmo caso das médiuns que
funcionaram com
Allan Kardec, cujas vidas continuam quase completamente desconhecidas.
De Mme. Collignon o que se sabe é
que foi mãe de um dos prefeitos de Paris, que era
médium mecânica e que, visitada por Roustaing, iniciou, a partir desse
encontro, a sua abnegada missão de intermediária dos altos Espíritos que lhe
ditaram a maior obra de todos os tempos, depois, logicamente, de “O Livro dos
Espíritos”. Outros detalhes desse encontro se acham em meu livro e não pretendo
antecipá-los. Este artigo é apenas uma homenagem espiritual à sua memória, menos
para biografá-Ia do que para defender o seu trabalho, frequentemente arrastado
à liça das acusações e invariavelmente criticado pelos que teimam em ver nele
uma contradição com “O Livro dos Espíritos”. (Mais realistas que o rei, veem o
que Kardec não viu ... ) Dentro dessa estratégia, intenta-se jogar Roustaing
contra Kardec, e vice-versa. Assim, lembrando-me do 72º aniversário da
desencarnação de Emilie Collignon, o que pretendo é destacar, uma vez mais, a
sem-razão da campanha que visa ao impossível: contrapor um missionário ao
outro.
Nessa ingente e primordial
preocupação, os negadores de Roustaing iniciam a tarefa pela
falsa e infundada afirmação de que Allan Kardec lhe opôs definitivas e
peremptórias restrições.
Muito já se tem provado em contrário; muito já se tem evidenciado que esse quadro
não encerra absolutamente a verdade dos fatos. Não vou, portanto, retomar aqui os
numerosos e lídimos argumentos que contrariam essas afirmações, a começar pela própria
palavra do Codificador, através da qual, no vol. 6 da “Revue Spirite”, de junho
de 1886, enaltece a obra de Roustaing, apresentando-a como “trabalho
considerável e que tem, para os Espíritas, o mérito de não estar, em nenhum
ponto, em contradição com a doutrina ensinada pelo Livro dos Espíritos e o dos
Médiuns”.
A razão dessa controvérsia em torno
do magno assunto decorre principalmente da posição tomada pelo missionário de
Lyon na obra “A Gênese”, em que subscreve alguns comentários
sobre a constituição do corpo de Jesus. É de se notar (pelo menos este argumento
deve ser repisado) que aquela apreciação encerra ponto de vista pessoal de Kardec,
à margem da Revelação Espírita (“O Livro dos Espíritos”). Kardec, que tinha por
vezo consultar o Espírito São Luiz diante dos aspectos mais graves da Doutrina,
àquele ensejo não o fez, furtando-se assim à oportunidade de ter ouvido do Alto
ensinamento que talvez o levasse a esguardar o problema por outro prisma. De
qualquer forma, apesar dos pesares, o que se depara em “A Gênese” não deveria
levedar a dialética dos antifluidistas. Isto porque a asserção de Kardec é,
antes que tudo, fruto duma série de condicionamentos, decorrente dos conhecimentos
da época. Para Kardec, “fluídico” era sinônimo de “sombra” (vide “O Céu e
o Inferno”, lª Parte, cap IV, n" 14); para Kardec, “fluídico” era o oposto
de tangível (vide “O Livro dos Médiuns”, cap XVI, número 189, “Médiuns de
Aparição”) ; para Kardec, “fluídico” não tinha a coesão da carne material (vide
“A Gênese”, cap XIV, nº 36, e cap XV, nº 65). Ora, o adjetivo “fluídico”, excogitado
por Roustaing, não tem nenhuma dessas acepções. “Fluídico” não é sombra, não
está em oposição a tangível e, ao contrário, possui toda a coesão da carne material.
Tais ilações, porém, só vieram à luz através das pesquisas de materialização
que se inauguraram a partir de 1870, com Crookes, portanto, um ano depois da
desencarnação do Codificador.
Seja como for, essas angulações, que
não deveriam de forma alguma sequer propiciar a controvérsia, tal a clareza merídia que desborda
dos próprios fatos em favor de Roustaing, é que têm servido de “leit-motiv” aos
que demandam pôr em relevo um pretenso choque entre Kardec e Roustaing. E como
é dessa pretensão que me proponho a tratar neste artigo, deixemos de lado os
pontos e contrapontos da tese em si.
Por mais que se objetive menoscabar
a obra de Roustaing, toda tentativa cairá no vazio, pois que não se atingem
objetivos desse jaez quando se tem diante da vida um autêntico missionário. Os
aguarentadores passarão; Roustaing continuará inesquecível e seu trabalho
prosseguirá a iluminar as almas de boa vontade, oferecendo-lhas à meditação e ao
respeito supremo a figura de Jesus, concebida em expressões de grandeza e
pulcritude infinitas. Em contrapartida, por mais que se pretenda marear Kardec,
dada a sua posição pessoal em face da natureza do Salvador toda tentativa se
esfanicará no pauperismo da própria argumentação, pois que não se há de empanar
a glória de quem reencarnou para restabelecer, com luta e dignidade, inteligência
e mágoa, sofrimento e amor, o verdadeiro e primitivo Cristianismo!
Acusam-nos, a nós, por tanto crermos
na “Revelação da Revelação”, de deixarmos que
a pervicaz invicção desloque da primeira plana a singularíssima figura de Allan
Kardec. Pigmeus que somos diante de tão augusto Espírito, jamais ousaríamos a
absurda pretensão... Se às vezes
revelamos entusiasmo, cremos ter ele a mesma medida daquele que o próprio
Kardec sentiu quando entendeu a Terceira Revelação e ... foi criticado pelos
que não queriam entendê-Ia. Ele, entretanto, bem há de a todos compreender e perdoar,
porque no ádito de seu espírito perceberá por certo que, pelo menos de nossa
parte, temos pretendido tão somente arrancá-lo dessa quadra de disputa contra
Roustaing, em que errônea e
insistentemente
os negadores da “Revelação da Revelação” têm-no buscado situar. E, a nós, há
de relevar também o ousio de apresentá-Io, embora sempre respeitosamente, no
papel de quem,
raciocinando em caráter pessoal, passara ao largo da realidade e discordou momentaneamente
de Roustaing. Raciocínio que não vela a intensa luz que, permanente, lhe flui
do Espírito altamente evolucionado; raciocínio que não há de bastar para que
seja arriado das alturas a que vitoriosamente foi alçado, depois que aceitou a
missão de codificar a Terceira Revelação e de dela ter-se saído galhardamente.
Pobres desses pigmeus que são capazes, às vezes, de deslembrar que Allan Kardec
é uma das mais extraordinárias encarnações de que a Terra tem notícia, e que
sua obra, seu trabalho, simboliza o fanal inexaurível com que há mais de cem
anos a humanidade tem podido aliviar as trevas da sua própria intimidade consciencial!
Napoleão Bonaparte estava se fazendo
coroar como imperador do mundo quando renasceu em Lyon o missionário da
Revelação Espírita. Sua vinda até nós evocou, então, a de
18 séculos antes, quando Roma pisava e estorcegava o mundo, e Jesus
manifestou-se fluidicamente
na manjedoura abandonada. Em ambas as ocasiões o processo histórico do nosso
planeta era tumultuado e ninguém mais acreditava que alguém lhe pudesse pôr cobro
aos abomináveis vitupérios. Em Roma, era o vício, a barbárie e a espoliação que
grassavam; em Paris, era o materialismo, a descrença e a impiedade. Jesus
restabelece a Verdade e abre às criaturas o caminho da esperança e da mais
lídima vitória na imortalidade; Kardec restabelece o Cristianismo e enseja aos
homens a solução para todos os seus problemas físicos, morais e espirituais!
Não importa que, vez por outra,
apareça quem jogue combustível à fogueira do “estudo” sobre o corpo fluídico de
Jesus; não importa, principalmente, que critiquemos o fortuito
parecer pessoal do Codificador; não importa que se pretenda suscitar como “controvertida”
(como se ao Espiritismo fosse infensa a controvérsia) uma questão para nós
clara e óbvia, que nada tem de controvertida; não importa, finalmente, que se queira,
através de Roustaing, minimizar a figura gigântea de Allan Kardec, ou, através de
Kardec, apoucar a de Roustaing. Nada disso importa, porque Roustaing não será
jamais esquecido e muito menos Allan Kardec descerá da posição de glória a que
se alcandorou pelas únicas veredas que afinal justificam essa ascensão: a do
trabalho, a da inteligência, a do sofrimento, a do dever cumprido e, acima de
tudo, a da tolerância e do amor a amigos e inimigos. E nem Jesus deixará de ter
tido um corpo fluídico, como estamos convictos.
A figura de Emilie Collignon me fez
recordar toda essa infeliz colocação do estudo em torno da magistral obra por
ela psicografada, na qual, bem assimilada, qualquer leitor encontrará,
com incrível facilidade, palavras e lições do mais profundo respeito aos fundamentos
filosóficos, científicos e religiosos que se contêm na Revelação Espírita,
codificada por Allan Kardec. Bem haja, pois, a missão de Emilie Collignon.
Luciano dos Anjos
‘Reformador’ (FEB) Nov-Dez 1974
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