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quarta-feira, 3 de março de 2021

Kardec e Roustaing

 

Kardec e Roustaing

por Indalício Mendes   Reformador (FEB) Maio 1943

             Em ”O Caminho” estimado órgão da "Tenda Espírita Mirim", deparamos, no seu número de abril último, subordinado ao título acima, com um bem lançado artigo da lavra do nosso distinto e esclarecido confrade Indalício Mendes, a quem pedimos, bem como a “O Caminho”, vênia para com ele enriquecermos as colunas de Reformador, transcrevendo-o nelas.

            É este o artigo:

             ... 14. Lembra-lhes estas coisas, conjurando-os diante de Deus que não tenham contendas de palavras que para nada aproveitam, senão para perverter os que as ouvem. 15. Esforça-te para te apresentar diante de Deus aprovado como obreiro que não tem de que se envergonhar, e que manejas bem a palavra da verdade.”  

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            “... 23. "Rejeita as questões absurdas e desassisadas (sem juízo), sabendo que elas provocam brigas, 24. Ora, o servo do Senhor não deve brigar, mas deve ser condescendente para com todos, capaz de ensinar, sofrido; 25, que corrija com mansidão aos que se opõem, na esperança de que Deus lhes conceda o arrependimento para conhecerem a verdade.” - (Segunda Epístola de Paulo a Timóteo, cap. 2, versículo cit.)

             A situação do Espiritismo no Brasil exige, de todos os que se interessam pelo seu futuro, meticuloso exame e profunda meditação à cerca dos problemas criados pela inobservância dos Evangelhos. Os verdadeiros espíritas - e estes são tão reduzidos ... - precisam redobrar seus esforços para o reencaminhamento ao aprisco das ovelhas desgarradas pelos sentimentos inferiores que o orgulho e a vaidade inspiram.

            Nunca se viu tanto apego à polêmica, nas fileiras do Espiritismo, porque também nunca se observara tamanho desconhecimento da doutrina, nem tão lata ignorância das lições de amor e humildade que refulgem nas páginas piedosas dos Evangelhos.

            Urge que os “soi-disant” (supostamente) espíritas se compenetrem de seus deveres em face da doutrina do Espiritismo, que é toda amor, toda humildade, toda paz, toda caridade, enfim. Colocam-se fora dela - e contra ela, concomitantemente - aqueles que, em vez de empregarem esforços para praticá-la e difundi-la conscientemente, realizam espúria tarefa, empenhando-se em contendas fúteis e provocando situações malsãs, muito do agrado dos irreconciliáveis inimigos da Terceira Revelação.

            Está em moda combater J. B. Roustaing e “Os Quatro Evangelhos...” Perde-se, semeando a discórdia no meio espírita, valioso tempo que poderia estar sendo proficuamente utilizado na evangelização daqueles que tanto necessitam de amparo doutrinário. Entretanto, Allan Kardec, homem superiormente equilibrado, cioso da enorme responsabilidade, que assumira em face da humanidade contemporânea, do seu trabalho gigantesco, não anatematizou (contestou) a obra de Roustaing ainda que se manifestasse a respeito dela com indisfarçável prudência. Ele próprio escrevera na “Revue Spirite”: “Estas observações, subordinadas à sanção do futuro, em nada diminuem a importância da obra, que, de par com algumas coisas duvidosas, segundo o nosso ponto de vista, outras contém incontestavelmente boas e verdadeiras e será consultada com proveito pelos espíritas conscienciosos".

            Kardec, no trecho transcrito, ressalvou até que os "espíritas conscienciosos” consultariam com proveito a dita obra. E, quanto às restrições que fizera, provinham de sua opinião pessoal, tanto que lá está – “de par com algumas coisas duvidosas, segundo o nosso ponto de vista”. Tanto ele prezou “Os Quatro Evangelhos” que se preocupou com a forma material da obra, ao ponderar inequivocamente: “No nosso parecer, se, limitando-se ao estritamente necessário, houvera reduzido a obra a dois ou mesmo a um só volume, ela ganhara em popularidade”. É obvio que Allan Kardec pouco se importaria com a popularidade de "Os Quatro Evangelhos", se não estivesse convencido de sua utilidade para os estudos dos "espíritas conscienciosos”. É claro também que, não obstante a grande autoridade moral e intelectual do codificador, não se podem considerar todas as suas opiniões pessoais como que forradas de infalibilidade.

            Consideremos ainda o fato dele ter lealmente confessado: “O autor desta nova obra julgou dever seguir outra orientação: em lugar de proceder gradativamente, quis de um salto atingir o fim. Assim é que tratou de certas questões que AINDA NÃO JULGARAMOS OPORTUNO ABORDAR e a respeito das quais, portanto, lhe deixamos a responsabilidade, assim como aos Espíritos que as comentaram".

            Devemos olhar para Kardec e Roustaing com “olhos cristãos”, isto é, reconhecendo o valor do trabalho realizado por um e outro, porque ambos contribuíram para a elucidação dos Evangelhos. Kardec foi o grande pioneiro, o desbravador destemeroso que enfrentou as furiosas arremetidas do preconceito religioso do século XIX. Coube-lhe abrir o caminho para o esclarecimento espiritual da humanidade, permitindo-lhe a compreensão mais perfeita da vontade de Deus, através dos livros que deixou. Sofreu, como sofrem todos os apóstolos da verdade. Foi escarnecido, vilipendiado, perseguido, mas, encouraçado pela fé, nunca desertou o posto de honra, cumprindo sua elevada missão, ter dito, porém, a última palavra.

            Do mesmo modo, Roustaing, como continuador de Kardec, é digno do respeito dos “espíritas conscienciosos”, porque foi também um homem de excepcional valor moral e intelectual, deixando, em “Os Quatro Evangelhos”, a prova do seu amor à doutrina de Jesus, ali t explicada, com amplitude, em espirito e verdade.

            Roustaing deve ser estudado sem prevenções, mas com boa vontade e disposição serena. Sem tolerância nem humildade, sem amor nem caridade, o Espiritismo terá, a sobressaltar lhe o programa de ação evangélica, grupelhos de sectários, imbuídos do mesmo dogmatismo negativista que levou a ruina outras religiões.

            Pode e deve a criatura ser tolerante em face das opiniões alheias por mais opostas que sejam às suas próprias; ela (a tolerância) prescreve o respeito às crenças, aos gostos e tendências dos outros; porém, a ninguém impõe o silêncio diante do que lhe desagrade, ou seja compreendido de outro modo. Ao contrário, respeitando o indivíduo, inspirado pela bondade e pela justiça que ela em si contém, a maneira por que os outros exteriorizam seus sentimentos, a tolerância o obriga a considerar os outros como a si mesmo e a fazer-lhes tudo aquilo que lhes possa convir. Ora, o que convém a todo ente humano é aprender, progredir, evoluir espiritualmente, o mais rápido possível. E a tarefa dos que mais sabem é, ou deve ser, ensinar aos que sabem menos e a dos que mais bondade possuem dar lições praticas dessa bondade, para que os seus inferiores tenham um guia que lhes indique de que maneira devem proceder para também subir”. (Aguarod, "Grandes e pequenos problemas", págs. 100/1).

            O que primacialmente nos interessa a todos não é discutir se Jesus teve “corpo fluídico” ou “corpo carnal como o nosso”, durante sua passagem por este planeta, embora seja assaz conhecida a expressão de Paulo aos Coríntios, de que “nem toda carne é a mesma carne”. Há tempo para chegarmos lá. Em relação ao que nos falta aprender, nada ainda sabemos. Precisamos, sim - e os fatos atuais o comprovam - é de nos evangelizarmos, estudando em vez de discutirmos, perdoando em vez de condenarmos, pesquisando, primeiramente em nós mesmos, as imperfeições e lacunas que julgamos existir em nossos semelhantes. Toda essa grita se faz porque está sendo negligenciado o estudo metódico e atento dos Evangelhos. As censuras, as polêmicas, as discussões podem satisfazer à vaidade de alguns homens, porém, ferem a doutrina codificada por Allan Kardec e colidem com os preceitos de paz, amor e caridade que constituem a palavra de ordem de Jesus. Persistir nessa atitude anti-espirita será favorecer a negregados desígnios dos inimigos gratuitos que o Espiritismo tem, na terra e no espaço.

            Em vez de dissenção, preguemos a união, porque a família espirita é uma só, como uma só é a verdade. Só uma luta deve entusiasmar-nos: a luta pelo bem, sem nos esquecermos, todavia, de que “a humildade é a fonte de todas as virtudes”.

            Está-se procurando formar um antagonismo que jamais existiu entre Kardec e Roustaing, no que diz respeito à doutrina espírita. Desses que criticam e combatem “Os Quatro Evangelhos” quantos já leram e compreenderam essa obra superiormente elaborada e magistralmente desenvolvida'? O “ponto nevrálgico” de toda essa questão é o “corpo fluídico”, que, no entanto, interessa principalmente à parte científica do Espiritismo. Entre os espíritas, porém, é avultado o número dos que nunca leram todas as obras de Kardec e dos que, em, tendo lido algumas, não assimilaram seus ensinamentos. Entretanto, discute-se, faz-se bulha, põe-se em triste evidencia a falta de orientação verdadeiramente espirita.

            Sempre que houver algo de difícil compreensão para nós ou aparentemente absurdo, meditemos, pedindo a Jesus que nos ilumine entendimento. Nada se deve negar “a-priori”, porque muitas vezes poderá suceder seja nosso o erro, por não havermos ainda alcançado a maturidade intelectual e espiritual adequada para interpretá-lo acertadamente. Devemos não esquecer que “acima de tudo está a vontade superior, que pode ou não, em sua sabedoria, permitir uma revelação". (Kardec, “Obras póstumas”).

            A melhor maneira de seguir as instruções de Allan Kardec está em exemplificar a doutrina que ele codificou, tendo por norma invariável este seu lema “Trabalho, Solidariedade, Tolerância”- que muitos de seus pretensos defensores parecem desconhecer. A obra de Roustaing, pode, sem favor, ser incluída entre aquelas de Kardec, Léon Denis, Camille Flammarion, Gabriel Delanne, Ernesto Bozzano, etc., opimos (excelentes) frutos de uma falange de trabalhadores assistidos pelos mensageiros do Cristo. Torna-se necessário que os espíritas sejam, pelo menos, espíritas, "espíritas conscienciosos", no dizer de Kardec, abandonando ideias sectárias, sufocando e destruindo em si tendências dogmáticas, jugulando inferiores impulsos que a doutrina desaconselha, se não quiserem ser apenas, como disse Jesus, “sepulcros caiados de branco por fora”.

            Somos todos Irmãos, devendo-nos auxílio reciproco. Se Jesus disse que a ninguém viera julgar, porque só Deus julga, porque pretendermos nós, os humanos, que nada valemos, ser maiores que o Divino Mestre? "Não julgueis a fim de não serdes julgados; porquanto sereis julgados conforme houverdes julgado os outros; com a medida com que medirdes sereis medidos. Como é que vês um argueiro no olho do teu irmão e não percebes a trave no teu?" (Mateus, Vil, v. 1-3)  

            Os que procuram perturbar a paz do ambiente espirita atacando Roustaing a pretexto de defender Kardec, como se este houvera sido vítima de algum agravo, estão fora da doutrina, são contra ela, porque não a cumprem. Os piores inimigos do Espiritismo são aqueles que estão dentro dele, dizendo-se espíritas sem cumprir-lhe os princípios essenciais. Já é tempo de se suspender tão inglória conduta. Preguemos todos o Evangelho e não a cizânia, porque quem estiver em erro por ele responderá. Deixemos em paz o corpo de Jesus; atentemos, porém, para a sua doutrina de amor e caridade, porque dela é que virá a nossa salvação moral. Está em “O Evangelho segundo o Espiritismo”: “Não anatematizeis os que não pensem como vós". Porque não se procede assim? Nessa mesma obra confortadora e sublime, escrita por Allan Kardec, lê-se este conselho amigo de “O Espírito de Verdade”: “Espíritas! Amai-vos, este o primeiro ensinamento; Instrui-vos, este o segundo.”

            Em “Obras póstumas” também de Kardec, encontram-se estas outras palavras, tão oportunas para os que falseiam o espírito da doutrina: “O Espiritismo proclama a liberdade de consciência como direito natural; reclama-a para si e para todo o mundo, respeita a convicção sincera e pede reciprocidade.”

            Se um cego se faz guia de outro cego, cairão ambos no fosso." (Mateus, XV. v. 14).

            Para esses “cegos” devemos implorar a misericórdia do Pai. São almas que se afastam do caminho iluminado dos Evangelhos, ovelhas que se transviam.

            Guias cegos, que coais um mosquito e engolis um camelo”, meditai.  


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