Pesquisar este blog

sábado, 20 de março de 2021

Bilhetes

 

Bilhetes

por G. Mirim (Antônio Wantuil)

Reformador (FEB) Junho 1946

             Era uma quarta-feira de cinzas. A cidade estava deserta. Noite alta. Cansado de me ver preso em casa durante os três longos dias de barulho e confusão, que me atordoaram os ouvidos, sai a esmo, sem rumo certo, disposto a deliciar-me num banco de jardim, onde me refizesse o intelecto perturbado pela bulha carnavalesca dessa catolicíssima cidade de S. Sebastião do Rio de Janeiro.

            Saltando do bonde que tomara, sem mesmo lhe ter visto a placa, eis que me encontrei num grande jardim, situado à frente do internato do Colégio Pedro II. Sentei-me. Silêncio profundo em torno, somente interrompido de hora em hora pelo rolar dos bondes que passavam.

            Contemplava com saudades o antigo edifício outrora frequentado pelo magnânimo imperador, sentindo que espectros entravam no casarão e dele saíam, lembrando-me os bons tempos em que ali se abrigaram as esperanças de inesquecíveis amigos que se foram, quando, ao meu lado, percebi que alguém silenciosamente se colocara.

            Depois, como me voltasse para o estranho, surpreso de sua companhia, ele, compreendendo-me a atitude e como que lendo o meu pensamento, convidou-me amavelmente para darmos uma volta, à procura de sossego para o espírito conturbado. 

            À proporção que caminhávamos, o velho me expunha os seus conhecimentos filosóficos a respeito da vida. As árvores lhe falavam, e com ele palestravam, mais ou menos nestes termos:

            - "Sou o encanto do jardim, Todos me admiram a elegância. As crianças me olham respeitosas, vendo-me o porte ereto e a altura que se dirige à amplidão dos céus. Sou a princesa do jardim. Ninguém vem ou passa por aqui, sem contemplar-me a beleza. Ainda ontem, ao meu pé, os homens se reuniram em festa, ao som dos seus pandeiros, em louca e bacântica (orgíaca) alegria."

            Caminhamos um pouco mais e chegamos a uma copada mangueira de seus dez anos. Tristes como nos achávamos, dirigiu-lhe meu companheiro a sua saudação mental, ao que ela correspondeu com essas palavras:

            “- Agradeço-te, meu amigo, a visita que te não esqueces de fazer-me e súplice, agora, é o meu agradecimento porque me apresentas um novo companheiro de existência sofredora, um trabalhador, como eu, que também padece a ingratidão dos homens.”

            E dirigindo-se a mim, continuou:

            “- Aqui viveria abandonada, meu novo amigo, se a proteção divina não me apresentasse os quadros do futuro que me animam a prosseguir no meu trabalho silencioso de penetrar fundo pela terra, durante meses e meses, sozinha e esquecida, à cata dos elementos que me auxiliam a oferecer às criaturas humanas os frutos adocicados pelo meu amor à Humanidade. Nessa época, porém, só à noite tenho sossego e paro de chorar, substituindo as dores que me feriram, pelas reflexões que me vêm do Alto. Durante o dia, quando me veem, as crianças me atiram pedras, magoando os galhos e as folhas que me fornecem o ar, até que, acertando nos frutos que lhes reservei, abandonam-nos no chão, de onde são levados à carroça do lixeiro que passa. Porque não os deixam para os passarinhos? Porque me ferem assim?"

            A voz da velha mangueira se entrecortava de soluços. Os sons já se lhe articulavam com dificuldade, o quadro era comovente. Meu companheiro, porém, falou à angustiada mangueira:

            - Irmã, o Cristo também deu frutos e recebeu pedradas. Sua vida foi como a tua. Séculos e séculos trabalhou para que pudesse vivificar os mortos que se encontravam nas sinagogas, e, mais sofredor do que tu, minha irmã, os homens lhe destruíram o próprio ser visível e tangível. É por isso, talvez, que até hoje ouvimos a advertência: Ninguém atira pedras em árvores que não dão frutos.

            Assim falou o velho. E enquanto lhe ouvia a voz, a árvore se calava, resignada, e eu, de fronte curvada, ao peso dos meus remorsos, em prece me dirigia aos Céus.

            Parou a voz do companheiro. Olhei ao derredor. Ninguém estava ao meu lado. O velho desaparecera e a madrugada raiava. Voltava o barulho e a confusão. A cidade despertava para a morte de todos os dias, para a ambição, para o egoísmo, para a maldade de sempre.


Nenhum comentário:

Postar um comentário