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domingo, 14 de fevereiro de 2021

Será crime a caridade?

 


Será crime a caridade?

A redação  Reformador (FEB) Jan-Março 1943

             Jesus, reunindo os doze discípulos, deu-lhes poder sobre os espíritos imundos, para os expelirem e para curarem todas as doenças e enfermidades, relata Mateus, no cap. 10 do seu Evangelho. Disse-lhes o Senhor: “E pondo-vos a caminho pregai, dizendo que está próximo o reino dos céus.

            Curai os enfermos, ressuscitai os mortos, limpai os leprosos, expeli os demônios: dai de graça o que de graça recebestes”.

            Mais tarde, nas últimas instruções que dava aos seus discípulos, Jesus de novo afirmou: “Em verdade, em verdade vos digo que aquele que crê em mim, fará as mesmas obras que eu faço e fará outras ainda maiores". (São João, caáp. 14. v. 12).

            O fato é que os discípulos, pondo-se a caminho, pregavam os ensinos do Cristo e confirmavam a sua pregação com as curas que produziam, curando toda classe de enfermidades, impondo as mãos sobre os doentes.

            E não se diga que Jesus tenha escolhido os seus discípulos entre a elite da sociedade israelita; eram eles homens iletrados, pescadores que ganhavam a sua vida pescando e vendendo o produto do seu labor.

            Além dos doze, Jesus escolheu outros 70 entre a turba que o seguia atônita e mandou-os dois a dois e ordenou que fizessem o mesmo que os 12 e quando eles voltaram, muito alegres, disseram: “Senhor, até os mesmos demônios se nos submetem em virtude do Teu nome”.

            Jesus lhes respondeu: “Eis aí vos dei eu poder de pisardes as serpentes, e os escorpiões, e toda a força do inimigo; e nada vos fará dano. E contudo, o sujeitarem-se vos os espíritos não é de que vós vos deveis alegrar, mas sim deveis alegrar-vos de que os vossos nomes estão escritos nos céus”. E exultando disse: “Graças Te dou, Pai, Senhor do Céu e da terra, porque escondeste estas coisas aos sábios e entendidos, e as revelaste aos pequeninos”. (São Lucas, cap. 10).

            Ainda disse Jesus, momentos antes de sua ascensão: “E estes sinais seguirão aos que crerem em mim: Expulsarão os demônios em meu nome; porão as mãos sobre os enfermos e os sararão". (São Marcos, cap. 16, v. 17 e 18).

            Há quase 80 anos, desde a introdução do Espiritismo no Brasil, tem-se pregado o Evangelho em espirito e verdade e confirmado a pregação com as curas de milhões de enfermos, dando-se de graça tanto as receitas, como os remédios, e a mão que traça estas linhas, por graça de Jesus, tem dado vista a cegos e curado milhares e milhares de doentes com a imposição das mãos, seguindo o preceito de Jesus. Milhares de outros têm feito o mesmo em todo o Brasil.

            Não sei com que intuito se tem procurado, e procura-se cercear a prática dessa caridade cristã que a tantas criaturas tem felicitado em todo o território brasileiro.

           O Sr. presidente da República que tão sábias providencias tem sabido tomar para favorecer os desprotegidos da sorte, os necessitados de socorro, a classe que trabalha, que luta para criar a sua prole, certamente não teve ainda ocasião de se inteirar do que se passa com referência à religião espirita e ás dificuldades que se antepõem â sua livre prática.

            Apelamos, pois, para S. Excia., para que nos seja dada a mesma liberdade de que gozam todas as outras religiões no nosso país. Que nos seja concedida a liberdade de “dar de graça o que de graça, e por acréscimo, Nosso Senhor Jesus Cristo nos outorga”.

            Inserto no “Correio da Manhã” de 6 do corrente, como objeto da "Crônica Espírita" que esse diário costuma publicar aos domingos, o artigo que vimos de transcrever é da lavra do velho trabalhador da Seara de N. S. Jesus Cristo, Fred Fígner, que, há muitas dezenas de anos, como médium curador, tem posto os dons mediúnicos que o Senhor lhe outorgou ao serviço do bem, curando um sem número de irmãos seus, presidiários, como ele, da carne, aliviando os sofrimentos de inúmeros outros e iluminando a muitos que, já evadidos dessa prisão, ainda escravizados se conservam ao mal, que é filho da ignorância e do erro, sempre fiel, o caridoso obreiro, ao preceito evangélico que manda se dê de graça o que de graça é recebido da munificência do Pai celestial.

            Assim, a frase interrogativa que ele tomou para epígrafe do seu articulado não significa, nem poderia significar, é bem de ver-se, que no seu espírito paire qualquer dúvida sobre a legitimidade da prática da caridade cristã, sob todos os seus aspectos. Fora absurdo supô-lo, por um instante sequer, pois ninguém, melhor do que ele, sabe quão profunda e absolutamente verdadeira é a sentença que serve de lema à Doutrina Espirita, estabelecendo que ela é a mesma doutrina do Crucificado, ou do puro Cristianismo. O que a sua interrogação exprime, legitimando-se plenamente, é antes um brado de angústia da sua alma de crente sincero, angústia de que também a nossa participa, diante de circunstâncias e conjunturas que somente se justificariam, ou, pelo menos, explicariam, se de alguma forma se pudesse capitular de delituoso o exercício da caridade.

            Entretanto, por muito que repugne à razão e à consciência desanuviadas admiti-lo, de tal natureza se tornou a mentalidade geral dos homens, no seio das sociedades ditas civilizadas e qualificadas de cristãs, que unicamente pela afirmativa pareceria possível responder-se à pergunta com que o nosso estimado companheiro de labor cristão encimou o seu artigo. Dir-se-ia, com efeito, que, por se haver tornado substancialmente cética e materialista entramada exclusivamente de egoísmo, de orgulho, de vaidade, de superlativa presunção, aquela mentalidade acabou, como aliás o estão revelando os fatos que há três anos se desenrolam em quase toda a superfície do planeta, por escravizar inteiramente as almas aos interesses mais subalternos e às ambições mais grosseiras, a uma cupidez tal, que as desvaira e cega para a visão do que quer que não esteja no âmbito da mais sórdida materialidade.

            Ora, a caridade é filha primogênita do amor, sentimento de ordem puramente espiritual, composto de devotamento, de desinteresse, de abnegação, de renúncia, numa palavra: de altruísmo Integral e, assim sendo, desde que sentimentos opostos ao amor são os que dominam o coração do homem a verdadeira caridade deixa de ser compreendida o termo continua de uso corrente, mas com uma significação totalmente abastardada, pois que a caridade passou a consistir em dar esmolas e em fazer donativos mais ou menos vultosos, com maior ou menor ostentação, sempre de modo a granjear para a vaidade o prêmio que esta vive a buscar ansiosamente: os elogios, os louvores mundanos, as honras da benemerência terrena. Ninguém mais portanto, entende, nem pode entender que a caridade seja qual a definiu o Apóstolo Paulo, dizendo, no capítulo 13 da sua Primeira Epístola aos Coríntios:

                 “Se eu distribuir todos os meus bens para sustento dos pobres e se entregar o meu corpo para ser queimado, se todavia não tiver caridade, nada disse se me aproveita. A caridade é paciente, é benigna, não é invejosa, não obra temerária nem precipitadamente, não se ensoberbece, não é ambiciosa, não busca os seus próprios interesses, não se irrita, não suspeita mal não folga com a injustiça mas folga com a verdade; tudo tolera, tudo crê, tudo espera, tudo sofre. A caridade nunca jamais há de acabar ou deixem de ter lugar as profecias, ou cessem as línguas, ou seja abolida a ciência".

             Daí, necessariamente e logicamente, o entender-se que faze-la de maneira diversa daquela, isto é, dando esmolas com ostentosa retumbância; faze-la, procurando, sem alarde, aliviar os sofrimentos aos enfermos do corpo, levantando o ânimo aos que se  deixaram abater, levando o conforto moral aos desalentados e desesperançados, libertando de seus perseguidores invisíveis os possessos do “demônio”, orientando, por meio da prece, para a fonte da misericórdia inesgotável, o pensamento e o coração do que se revolta e blasfema, é prática indébita da arte de curar, quando não simples curandeirismo muito embora não haja nesse proceder o mais pequenino laivo de dolo, que era, ao tempo das velharias obsoletas, o que constituía a figura jurídica (cremos ser assim que se dizia) característica da contravenção ou do delito.          

            Dado Isso, chega-se, de dedução em dedução, à conclusão lógica de que exercer a caridade, como a exercia Jesus, cuja vida foi toda ela um ato de caridade, e mandava que os seus seguidores de então e de todos os tempos a praticassem, é tão somente exercitar o curandeirismo, donde o corolário tremendo, mas irrecusável, de que o Cristo de Deus, o Messias prometido e mandado ao mundo, foi apenas o mais eminente curandeiro que a Terra já conheceu, não sendo também outra coisa os seus apóstolos, os seus discípulos e todos os cristãos primitivos, cuja fé e humildade lhes permitiam fazer o que os apóstolos e discípulos faziam.

            É possível e provável, quase certo mesmo, que nos lembrem, ou apresentem, como objeção ao que vimos de dizer, a divindade de Jesus, divindade que não só lhe facultava operar a série imensa dos “milagres” que produziu, como outorgar aos seus escolhidos a capacidade de igualmente os operar. Não colhe, todavia, a objeção.

            Em primeiro lugar, a sua divinização foi obra de cunho meramente humano, legitimada, até certo ponto, impossibilidade em que se encontravam os homens, devido ao enormíssimo atraso das inteligências de apreenderem e compreenderem as causas determinantes dos efeitos que observavam. Tais efeitos então tiveram que ser considerados “milagres”; como só uma divindade poderia realizar coisas que, pelo seu aspecto de prodígios extraordinários pareciam inteiramente fora para sempre da alçada das criaturas, a deificação daquele que as realizava em tão larga escala e só pelo poder da sua vontade foi a consequência natural. Progredindo porém a inteligência do homem, por virtude da lei universal da evolução, semelhante deificação perdeu a sua razão de ser e se acha hoje abolida completamente para os que têm olhos de ver e ouvidas de ouvir pela compreensão em espírito e verdade, graças ao advento do Consolador prometido, dos Evangelhos, onde não há uma palavra do Cristo de Deus, autorizando a divindade que lhe atribuíram; onde, ao contrário, superabundam, conforme se acha demonstrado, à saciedade, em Allan Kardec e em Roustaing, as com que Ele antecipadamente infirmou, privando-a de qualquer fundamento durável, a que a sua presciência lhe mostrava de antemão que viriam a atribuir-lhe, como efetivamente aconteceu.

            Em segundo lugar, tanto não era na qualidade de Deus que Ele praticava a caridade, como costumava praticá-la, com as características que mais tarde Paulo, por Ele inspirado, lhe assinaria, que declarou aos que lhe ouviam as prédicas: fareis as obras que eu faço e outras ainda maiores, dirigindo-se, não somente aos discípulos ou aos que no momento o rodeavam, mas aos que então e de futuro guardassem a sua palavra, isto é, lhe seguissem os ensinamentos, que Ele próprio resumira num mandamento único, o do amai a Deus sobre todas na coisas, amando ao próximo como a vós mesmos.

            O que acabamos de expender basta, parece-nos, para corroborar o que disse o irmão e amigo autor do artigo que nos moveu a traçar estas linhas e para lhe testificar a nossa solidariedade no doloroso espanto que o induziu a formular a interrogação com que intitulou o seu escrito. Entretanto, convém atendamos ainda a uma, pelo menos, das contestações que o espírito de seita não se furtará a contrapor-nos. Fá-loemos, contudo, de outra vez, para não alongarmos demasiado estas observações que, apesar de sumárias, já alcançaram excessiva longura.


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