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domingo, 6 de janeiro de 2013

70. 'Doutrina e Prática do Espiritismo




70

            Chegado ao ápice da escala evolutiva nas séries naturais, isto é, transposto o último elo da animalidade e restituído ao universo espiritual em que tivera origem, o ser inteligente, ao mesmo tempo que, pela assimilação de apropriados fluidos, se reveste de um perispírito adequado a sua nova condição, é mergulhado numa espécie de letargia - fenômeno peculiar a todo ato de nascimento, como de renascimento - durante a qual sofre uma transformação em suas percepções e faculdades e se torna propriamente espírito.

            Tendo deixado nos últimos invólucros animais os apetites e paixões que devia às necessidades próprias da animalidade, surge, daquela fase estagnatária, para a vida consciente e livre no estado de simplicidade e ignorância, conservando apenas do seu longo contado com a matéria, como substrato das experiências milenarmente adquiridas, a sensibilidade, a capacidade intelectual autônoma, o sentimento de sua individualidade, de sua consciência embrionária, a aptidão, em suma, ativa e deliberadamente volitiva, que irá utilizar em os novos ciclos de sua evolução.

            Colocado sob a direção e vigilância das entidades espirituais que, em anteriores criações, o precederam na infinita escala do progresso espiritual (1), começa o espírito o seu aprendizado, nesse imenso livro do universo fluídico, pelo estudo das criações dessa natureza e o das forças cósmicas, em cuja aplicação é, numa certa medida, chamado a tomar parte.

            (1) Não será ocioso, senão oportuno, recordar que, sendo eterna a criação em ciclos sucessivos, ao primeiro dos quais (?) seria inútil tentarmos remontar, haverá sempre espíritos em todos os graus de evolução, prontos a se auxiliarem, os mais elevados guiando os imperfeitos, os experientes aos mais novos, e assim solidária e indefinidamente.

            No que se refere à educação moral, recebe dos seus benévolos preceptores as instruções tendentes a lhe incutir o sentimento de gratidão devida ao Criador, que ele não vê, mas no conhecimento de cujas obras vai sendo gradualmente iniciado (1).

            (1) O desenvolvimento desse tema, de que apenas damos um resumidíssimo esboço, encontra-se em .J. B. Roustaing, OS QUATRO EVANGELHOS, vol , 1, págs . 273 e seguintes.

             À medida que, percorrendo as esferas fluídicas e observando o mecanismo dos fenômenos da natureza, se esclarece, aprende e age, o espírito adquire com uma noção cada vez mais acentuada de suas capacidades e aptidões e de seu papel no concerto da criação, o sentimento de sua própria grandeza e dignidade.

            "Tudo é tão belo nas regiões superiores, - diz a palavra da Revelação (2) - o  espírito pode admirar tão grandes coisas, que fica deslumbrado, maravilhado!"

            (2) Ob. cit., págs. 297.

            Se de contemplação em contemplação, de pasmo em pasmo, segue sempre, dócil às inspirações e conselhos de seus guias, a rota que lhe é indicada para progredir, aprendendo e ir trabalhando de um lado, ensinando do outro, quando tal capacidade chega a adquirir - pode o espírito realizar indefinida e exclusivamente a sua evolução no plano espiritual, até atingir as culminâncias de uma perfectibilidade, senão de uma perfeição moral que, de infalido, o converterá em infalível. Assim chegará sem interrupção, e através do que na linguagem da Revelação, e embora num sentido relativo, próprio contudo a nos dar uma ideia das extensões de tempo decorrido, é designado como "eternidades," à categoria dos Cristos, ou Logos planetários, tendo daí em diante que progredir apenas, mas eternamente, em ciência sideral."

            Raros são, porém, os que logram essa uniformidade retilínea de progresso. O que geralmente sucede é que, num grau mais ou menos avantajado de evolução, num estágio mais ou menos próximo do seu ponto de partida, exaltando-se no sentimento do poder que já desfrutam sobre a natureza e a criação, isto é, cedendo aos estímulos do orgulho, que a si próprio atribui o que pertence àquele Autor supremo, de cuja existência entram a duvidar, porque não o veem - tais como, na Terra, os cientistas que, em presença das maravilhas que sondam e lhes testemunham a evidência de uma Causa originária, longe de a reconhecerem, tudo pretendem explicar por forças cegas, que a sua fatuidade se sente lisonjeada em submeter ao seu império - muitos, muitíssimos espíritos sucumbem, precipitando-se das regiões de luz, em que ascendiam, aos tenebrosos círculos da encarnação material. É a falência.

            Tal seja a menor ou, maior gravidade da falta, caracterizada sempre pela desobediência às sábias exortações de seu preceptor, assim serão menos ou mais penosas para o espírito as condições da encarnação inicial, nesse caso, e unicamente nesse caso, imposta, não como uma necessidade geral e uniforme de progresso para todos, mas como um meio repressor e educativo do falido. Desse modo se explicaria o caso dos espíritos novos a que fizemos alusão, verdadeiros hóspedes inexpertos e recentes da nossa esfera expiatória, em que, tanto poderão multiplicar as suas peregrinações por novas recidivas na mesma ordem de sentimentos, ou por deslize em paixões inferiores como abreviar, num diligente aproveitamento, o ciclo de sua proscrição, reatando, ao fim de poucas, meritórias existências, a sua ascensão espiritual no ponto interrompido.

            Assim também se explicariam, como resultado de progressos efetuados no estado de espírito, consciente e livre, as consideráveis transformações em nosso mundo Introduzidas pelo homem, no que se refere ao desenvolvimento das artes e das indústrias, como sinais de uma civilização incipiente, mas rapidamente acentuada, desde o aparecimento da nossa espécie no cenário do planeta. É que os espíritos, condenados a encarnar aqui, consigo mesmos traziam os frutos de um desenvolvimento e aptidões adquiridas no plano espiritual, fora das deprimentes e obscurecedoras condições da encarnação material.          

            Não é essa, contudo - assinalemos de passagem - a única explicação que se pode formular dos melhoramentos, desde as primitivas raças, verificados no habitat terrestre. Bem podia realmente ser que a numerosa colônia de espíritos que primeiro povoou o nosso globo não, tivesse vindo pela primeira vez padecer a encarnação, mas que  tivesse antes sido exilada de um outro mundo, em cuja ascensão na hierarquia planetária houvesse, por sua obstinação em malfazejos sentimentos, perdido o direito de o acompanhar. Desse banimento de um mundo adiantado em civilização - no verdadeiro e completo sentido da palavra - se teria originado a ideia de um "paraíso perdido," que figura nas mais remotas tradições religiosas da humanidade e que, de fato, pode ser interpretada como a reminiscência da exclusão, para aqueles proscritos, de um meio social de que haviam terminado por se tornar indignos. Tal se dará, em um novo avantajado ciclo de aperfeiçoamento que para a nossa Terra se prepara, com os espíritos que por sua rebeldia se lhe conservarem refratários: serão desterrados para um planeta em formação, em cuja atmosfera carregada de vapores o seu cativeiro inicial nessas verdadeiras "trevas exteriores" se caracterizará pelo "choro e o ranger de dentes" de que fala a Escritura, mas a cujo progresso e organização social levarão os frutos de inteligência adquiridos entre nós e que constituem o seu inalienável patrimônio.

            Detenhamo-nos todavia aqui, pois que esta explanação já entende com a pluralidade e solidariedade dos mundos habitados, que faz, entre outros assuntos, objeto do capítulo a seguir, e, encerrando a digressão, reatemos as considerações, relativas à falência dos espíritos.

            Os impugnadores da teoria que sustenta ser a encarnação do espírito a consequência de uma, "queda" e não uma necessidade para o seu progresso, acreditam formular uma objeção irrefragável, quando alegam, revidando o argumento, que na hipótese de só serem os espíritos submetidos à encarnação depois da queda e como um meio expiatório e educativo, se jamais ocorresse tal falência, isto é, se não falissem tais espíritos, o nosso mundo, por exemplo, teria ficado perpetuamente privado da presença da humanidade, ficando assim burlado o principal objetivo de sua criação e excluídas as vantagens que ao seu aformoseamento e progresso trouxe a nossa espécie.

            Ao que se pode, nesta ordem de metafísicas proposições, replicar que de sobra conhecera a divina Presciência a insubmissão de tais espíritos, para não deixar incompleta a própria obra. Sabia assim que, num dado e oportuno tempo, não faltariam povoadores para o habitat terrestre, como os não hão de faltar, na eterna sucessão das criações, para as terras que hão de surgir do seio dos espaços. Por uma fatalidade inevitável, de que não seriam responsáveis, em tal caso, as criaturas? – Não: por livre escolha, simplesmente, definida entre opostas sugestões.

            Pretender, ao demais, a encarnação como uma indeclinável necessidade para o espírito, desde o inicio de sua evolução nessa categoria, não será, de um lado, desconhecer as infinitas possibilidades de progresso que deve necessariamente oferecer aos seus habitantes o plano espiritual, que é o meio normal, preexistente e superior ao terrestre, e do outro atribuir à carne um valor que de si mesma não possui, como auxiliar no desenvolvimento das faculdades do espirito, quando sabemos que, ao contrário, constitui um embaraço às suas mais nobres e elevadas expansões?

            Que o princípio espiritual, para passar do estado difuso ou de não ser ao de existência pessoal, independente e consciente, começasse por ser incorporado à substância, em seu primitivo estado de condensação e daí ao das criações materiais, segundo já ficou exposto, afim de a esse contato e sob a ação das forças cósmicas e das leis biológicas serem despertadas, com a sensibilidade, as suas faculdades latentes, até atingirem o grau indispensável à sua transformação em espírito, livre, consciente, responsável, compreende-se. Mas que, uma vez integrado nessa investidura, não lhe fosse permitido exercitar as suas faculdades no meio peculiar a sua própria natureza e logo tivesse que padecer a morte na escuridão da carne, como se esta lhe pudesse proporcionar melhores condições de evolução que os planos invisíveis, ricos das mais poderosas energias, é o que não pode ser admitido senão como uma arbitrária degradação, incompatível com a justiça que em todas as coisas sentimos imanente e que, assim, não poderia infligir uma verdadeira punição a seres que a não teriam, por ausência de toda culpa, merecido. E a expiação não pode preceder à culpa.

            Insistamos, pois, enquanto uns espíritos se conservam dóceis e obedientes aos conselhos de seus guias, outros, ansiosos de prematuramente emancipar-se da benévola tutela, se desviam, cedem a inconsiderados assomos de insurgência ao supremo Poder e se tornam em tal caso, passíveis de experimentar e reconhecer a própria fragilidade, condenando-se a padecer as contrições da carne, que é fraqueza.

            Há ainda uma outra teoria, a que, todavia, só incidentemente aludiremos, explicativa da encarnação como consequência da queda do espírito. É a que pretende, interpretando o simbolismo da tentação e da ingestão do fruto da árvore da ciência do bem e do mal, que “abriria os olhos e tornaria como deuses aqueles que o provassem”, - tal como se encontra na Gênese mosaica – que os espíritos em seu primitivo estado de inocência e ignorância, dos quais Adão é a alegoria personificada, só decaíram daquele estado por terem sido tentados a participar da criação, como aos seus olhos e sob sua vigilância espiritual se reproduziria toda a natureza. Sucumbindo a essa funesta solicitação, teriam sido atraídos para a carne e aí tomado um corpo, que os fizera perder o dom da primitiva imortalidade. É assim, segundo essa teoria, que se pode entender esta passagem da Escritura (Gênese VI,4): “Ora, naquele tempo havia gigantes sobre a Terra. Porque, depois que os filhos de Deus tiveram comércio com as filhas dos homens, geraram estes filhos, que foram uns homens possantes e afamados no século.”

            Como quer que seja – e não apresentamos essa teoria senão a título de curiosidade – a figura da queda do espírito, tendo como resultado a sua “humanização”, não aparece pela primeira vez, embora o seja sob uma nova forma didática, nos ensinos da Revelação moderna (1), senão que se encontra na base das mais antigas religiões que a precederam.

           (1) Referimo-nos à já citada obra de Roustaing e não à de Allan Kardec, em que é diferentemente exposto esse controverso ponto (Livro dos Espíritos, parte 2ª, cap. II, ns. 132 e 133)

            Não é tudo ainda. Em apoio dessa dualidade na linha evolutiva percorrida pelos espíritos, uns permanecendo desde o começo fieis às injunções divinas e, assim, jamais se afastando da “casa paterna” que é o infinito espaço, outros dela se ausentando, para decair nas mais abjetas condições da encarnação terrestre, há no Evangelho uma parábola, cuja meridiana significação se impõe a todo aquele que busca penetrar o sentido profundo de todos os seus ensinamentos.



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