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sexta-feira, 8 de julho de 2011

03 / 03 'Os Evangelhos segundo Ernest Renan'


Os Evangelhos
                   segundo Ernest Renan
Parte 3 (e final)

por   Gilberto Campista Guarino
em Reformador (FEB) Setembro 1976
           
Até aqui permaneceu fora de foco o Quarto Evangelho, o de João, o Evangelho do Verbo feito carne, que habitou entre os homens, o Evangelho da filiação divina de Jesus.
Renan entende a questão como bem mais difícil do que no caso dos sinópticos. Considerando que Papias (o mesmo bispo de Hierápolis, a quem já nos referimos anteriormente) nada diz a respeito de uma Vida de Jesus escrita por João – ele, Papias, que teria sido, segundo Irineu, um discípulo direto de João, ou, ao menos, um atento seguidor de seus discípulos imediatos -, pondera que ...”poder-se-ia ficar tentado a compreender o Quarto Evangelho como narrações de Ariston de Quios”, que sabemos ser filósofo estóico pregador das virtudes. Ou como produto da tradição legada daquele a quem Papias chamava “o presbítero João”.
Com efeito, tal possibilidade deveria ser, in limine, abandonada. primeiramente porque, como diz o próprio Renan, Papias apresenta essas narrações e tradições como não escritas, o que contraria frontalmente a realidade histórica de ambas as fontes trazidas à tona. Em segundo lugar, Papias não foi, como pretendeu Irineu, nem discípulo direto de João Evangelista, nem discípulo imediato dos discípulos daquele. Mas, sim, um discípulo dos discípulos dos Apóstolos, sem definição de qual Apóstolo fosse.
Como gerador de dúvida quanto à procedência do Quarto Evangelho, Renan ainda levanta o precedente de que Policarpo, o Bispo de Ermirna, e discípulo de João, jamais mencionou um Evangelho deste último.
Com efeito, o problema se agrava neste ponto: João só veio a morrer (e a tradição aponta martírios em óleo fervente, que, historicamente, não se provam) em Éfeso, no ano 100, com avançada idade. A considerar a maturidade e profundidade do Evangelho (para os que não conhecem a mediunidade, ou para os que, propositadamente, a desconhecem, terá ele sido escrito por volta do ano 90, quando o discípulo amado porque muito amou já tinha amadurecido na carne. Se Policarpo houvesse morrido muito cedo, estando, por volta do ano 90 e 100 com muito pouca idade, a controvérsia estaria sanada, definitivamente: Policarpo simplesmente não haveria presenciado aos escritos de João, não podendo deles dar testemunho. O que acontece, porém, é que ele viveu de 69 a 155 a.D., sobrevivendo, portanto, a João, o que faz com que a cena mude completamente. Ora, o estilo do Evangelho Quarto é nitidamente o dos profetas do Antigo Testamento, principalmente do profeta Daniel.  Médium de vastas possibilidades, profundamente bom, cristão, é bem possível que João se referisse ao Evangelho, quando falasse ao próprio Policarpo, em termos de algo que viera de fora dele, e que não era produção sua. Daí, talvez, jamais houvesse o discípulo falado em Evangelho de João. Por outro lado, em termos de mediunidade, conforme explica a doutrina espírita, todo médium contribui com algo de si mesmo na transmissão das comunicações. Em termos de fenômeno, nada mais estranhável. Esses componentes, entretanto, faltam ao pesquisador que, sem ser materialista, ignora, como Renan ignorava, certos mecanismos.
Doutrinariamente falando, ainda, a posição de João é a mais propícia possível para a recepção de uma obra de tal envergadura, escrita com o firme propósito de mostrar Jesus em toda a sua grandiosidade, num planejamento transcendente, inesquecível e insofismável. Só o próprio Cristo poderia despedir-se dos discípulos como o faz nos últimos capítulos do Quarto Evangelho, dizendo a Maria de Nazaré, e a João – que a acompanhava -, do alto da cruz:
- “Mulher, eis aí o teu filho; filho, eis aí a tua mãe.”
Por que teria Jesus escolhido exatamente a figura de João para, em frente de Maria, dizer tais palavras? ... Gratuitamente? Não nos parece. Nada do que o Mestre fez, ele o fez gratuitamente... porque não há gratuidades no planejamento divino que trouxe Jesus à nossa pobre Terra.[1]
Prosseguindo, Renan fala em tendências dogmáticas (?) do Quarto Evangelho. Não é possível entender isso. O Evangelho mediúnico, espiritual, é inteiramente esotérico, muito menos que o Apocalipse, é claro, mas com forte dose de hermetismo, no sentido de que as realidades espirituais são herméticas para os homens. Nada existe ali de dogma, a não ser o que os homens, por não o compreenderem, trataram de dogmatizar. A verdade é que o Quarto Evangelho corresponde a uma outra realidade, não é a da Terra, e nada tem, realmente, de comum com os três sinópticos. Raciocinar, em termos de Evangelho de João, com razões chãs, terra a terra, é permanecer impossibilitado de assimilar um mínimo que seja de tudo o que ele apresenta. Não se pode dizer, como o disse Renan, de momentos, no Quarto Evangelho, em que se sente a realidade da testemunha ocular, paralelamente a uma diferença total, em outras passagens, do Evangelho de Mateus! João apresenta o Cristo falando da Doutrina do Cristo, e do próprio Cristo, após a ascensão, ou seja: é Jesus falando em toda a sua grandiosidade! Não é o Cristo pintado por Mateus, ou por Marcos; nem mesmo o Cristo de Lucas... é o Jesus que os homens até hoje não entenderam, e que custarão muito a entender! É possível raciocinar em termos de que, no Evangelho de João,... “se encontram ideias estranhas a Jesus”. Como julgar o homem das ideias de Jesus, se o próprio Jesus afirmou que muitas coisas tinha ainda para nos dizer, mas que não estávamos preparados para elas?!  Com este tipo de pensamento, terminaremos por concluir da mesma forma que Renan:
“Há, no Evangelho Quarto, afirmações (ele diz indícios) que se chocam com a boa fé do leitor, porque põem em xeque a boa fé do narrador”.
E. como se vê, em breve estaremos duvidando, não da autenticidade da obra, mas das boas intenções de João. E onde iremos parar?...
A seguir, Renan pergunta se terá mesmo sido João, filho de Zebedeu, quem escreveu, em grego, verdadeiras lições de metafísica abstrata, em nada semelhante ao que contém os sinópticos. É mesmo extremamente difícil compreender a revelação divina. Se Jesus, que é Jesus, terminou, aos olhos dos homens, pregado numa cruz, quem seria João para não ser repreendido, quase, por dar lições de metafísica abstrata?... Naturalmente, o homem há de preferir a metafísica de Bossuet, ou de Descartes, porque elas são do mundo, e o homem é do mundo, ainda. Jesus, como sempre, ficará para depois.
Quanto á época em que terá sido escrito, Renan afirma categoricamente que, por volta do ano 170, todos sabem que o Evangelho em questão já existia; e que uma controvérsia irrompida em Laodicéia, a respeito da Páscoa, serviu para trazer a questão da sua procedência à tona. Mas, enquanto conclui com a corrente que atribui a João o Quarto Evangelho, e que é a única que data o seu surgimento depois do ano 90 e antes do ano 100, Renan, preconceituosamente (e incoerentemente com o seu próprio método parte da “certeza” de que João não escreveu o Evangelho, filiando-se, desse modo, pela pesquisa histórica, à corrente que diz ter sido ele, isto sim, composto por volta do século II.[2] Parece, por volta de 170, triunfar a ideia da autenticidade do escrito.Teófilo de Antioquia, Apolinário, Atenágoras, Polícrato, Irineu e o Cânon de Muratori defendem a tesa positiva. Mas, Renan – contraditoriamente – continua aferrado à ideia do dogma, dizendo que “este Evangelho desempenhou papel preponderante no gnosticismo, e no sistema de Valentino, e serviu de pedra angular a todas as controvérsias e a todos os dogmas”. É o roto falando do esfarrapado: o dogma falando do dogma. Além disso, as grandes obras sempre dão origem a grandes controvérsias, que se arrastam pelos séculos, devido ao preconceito e à mesquinhez dos homens, ditos doutos e prudentes.
Terminando suas considerações, Renan conclui que há dúvidas até mesmo entre os discípulos de João, porque Irineu reconhece João no Quarto Evangelho, assim como na Primeira Epístola, mas Policarpo, como já ressaltamos, jamais falou em Evangelho de João. Ele, Renan, não pode esconder que o autor (agora com caixa-baixa) do Evangelho é o mesmo da Primeira Epístola. Mas, simplesmente, começa a dizer que esse autor sempre fala como testemunha ocular (contrariando o que dissera anteriormente...), e que, impossível negar, ele quer fazer-se passar pelo Apóstolo João, sendo que os escritos foram coordenados visando única e exclusivamente aos interesses desse Apóstolo. O impostor (a palavra é nossa) deixava, a cada página, aparecer sua intenção de fortificar a autoridade do filho de Zebedeu, mostrando que ele foi o preferido de Jesus(!)
Como vemos, além de João ter má fé em grau doentio, Jesus tinha preferências!... Além disso, o autor (ainda em caixa baixa) quereria mostrar que, em todos os acontecimentos de clímax da passagem do Cristo sobre a Terra, João ocupava o primeiro plano, junto ao Mestre (!); ou seja, João era um exibicionista, um orgulhoso, um vaidoso, um fútil, que estava brincando com a figura de Jesus. E Jesus muito pior, porque, sendo muitíssimo mais responsável que o discípulo, dava-lhe mão forte, e ainda vinha, por meio de um comparsa de João, cooperar para que este fosse endeusado.
Não para aí a série de sandices. João era rival de Pedro! (Renan acha isso porque está consignado no Quarto Evangelho, Capítulo XVIII, vv. 15-16, a negação de Pedro).
E, o que é muito pior, em vista do que está escrito no Capítulo VI, versículo 65[3], conclui o filólogo e historiador que João tinha raiva de Judas, ...”raiva esta que, aparecendo aqui e ali, parece ser anterior à traição”. 
Ainda, “se Jesus falava como o quer Mateus, jamais poderia falar como o quer João”.
E, dizendo que alguns discípulos de João haviam bebido das fontes de Cerinto, que diferençava Jesus do Cristo, este último tendo descido sobre Jesus, no momento do batismo, para só o deixar na cruz; dizendo isso, que bem pode ter acontecido, sem que o discípulo amado algo tivesse de responsabilidade, conclui que, também por esse fato, o Evangelho – já então, pelo que se vê, considerado como de João, porque Renan, agora, ataca João – não poderia ser aconselhável.
                                                                       ***
Conclusão (de Renan): O Evangelho Quarto foi escrito por outras mãos que não as de João, mas pode ser que João tenha contribuído de alguma forma para a obra, por isso que poderemos chama-la de “Evangelho segundo João”.
O Evangelho de Mateus merece toda a confiança possível quanto ao discurso; existe uma espécie de força divina nas palavras que formam a narrativa. Por outro lado, há muitas lendas que a piedade da segunda geração cristã engendrou.
O Evangelho de Marcos é o mais preciso, o menos interpolado, minucioso, deixando entrever a testemunha ocular; mas é mal escrito, mal planejado.
O Evangelho de Lucas (o Autor...) passa a, contraditoriamente, ser encarado como o mais fraco, porque as palavras de Jesus estão excessivamente bem dispostas (?), e os lugares são indicados com menos rigor do que os dois anteriores (os sinópticos).
                                                                       *
Felizmente, após tanta controvérsia, Renan diz que considera os quatro Evangelhos como documentos sérios[4], e isso após dizer que João era rival de Pedro e tinha raiva de Judas... o mesmo João que ele já admitia como tendo até mesmo informado o Quarto Evangelho.
Eis aí a que leva o desconhecimento das coisas espirituais; eis aí a exatidão das palavras de Erasto, que transcrevemos logo no início deste pequeno estudo: o cego inteligente... “que não compreendendo o mecanismo da visão a distância imagina que só tocando-a se pode conhecer uma coisa”. Renan não é materialista, ... “mas pertence a essa escola que, se nega o princípio espiritual, também não lhe atribui nenhum papel efetivo e direto no encaminhamento das coisas do mundo”.
Teria sido bem mais feliz o nosso amigo, se houvesse compreendido os quatro Evangelhos como um todo inseparável, divino, produto da vida daquele a quem tentou reduzir às condições do mais mesquinho dos homens, e sob cujo peso grandioso terminou esmagado, como esmagada é a formiga sob os nossos pés. A única diferença é que Jesus não pisou em Renan, mas foi a própria consciência deste que se sentiu esmagada à simples passagem do Mestre dos mestres.




[1] Meditemos sobre a sutileza dessas “coincidências”.
[2] Concluirá, mais tarde, que o documento foi escrito antes do ano 100, filiando-se definitivamente à primeira tendência, embora – quanto à procedência – adote o ponto de vista do segundo. Ou seja, para Renan, o Quarto Evangelho foi escrito em vida de João, mas não por este.
[3] “Mas, alguns há, dentre vós, que não creem. Porque, desde o princípio, Jesus sabia quais os que criam e qual o que o trairia”.
[4] Ao invés de “documentos sérios”, parecer-nos-ia bem melhor “obra séria”.



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