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quarta-feira, 15 de julho de 2020

A paz que recebemos...


A paz que recebemos ...
por Boanerges da Rocha 
(Indalício Mendes)
Reformador (FEB) Dezembro 1976

            Lucas, o médico de Antioquia, que a tradição aponta como tendo sido pintor, escreveu, por volta do ano setenta, o Evangelho que algumas fontes designam como sendo destinado aos Gentios, no que deu o braço ao Apóstolo Paulo, auxiliando-o a manter e difundir a Boa Nova do Reino.

            No capítulo 10, versículo 6, está dito:

            “E, se ali houver algum filho da paz, repousará sobre ele a vossa paz; e, se não, ela voltará para vós.”

            A Bíblia de Jerusalém fala em “filho de paz”, e elucida, em nota de rodapé, que se trata de um hebraísmo: “alguém que seja digno da paz, ou seja, do conjunto de bens temporal e espirituais por que esta saudação anela.”

            Interessante notar a conotação amplíssima emprestada ao vocábulo pela Bíblia de Jerusalém estudado como sendo o conjunto de bens temporais e espirituais em que nos movemos. À primeira vista, poderia parecer-nos imprópria a catalogação de elementos transitórios ao conceito de paz... se nós já pudéssemos alcançar a transcendência das coisas divinas. A rigor, tudo o que concerne aos Evangelhos, tudo o que tange as bordas da Revelação Crística, é, em princípio, suposto de ser entendido numa outra realidade, que foge a nossas perspectivas mesquinhas. As ideias trazidas por Jesus são o mais, fulcros do absoluto; e nós somos o menos o relativo por excelência.

            É, todavia, especialmente quando começamos a imaginar que não alcançaremos o cerne da mensagem que observamos o milagre do amor desdobrar-se às nossas vistas, se lhe não fazemos vista grossa. O mais pode o menos, e, como tal, concede ao menos, sem que deixe de ser o mais: essa a filosofia das Leis Universais, que são expressão viva da Divindade em que nos movemos.

            Assim a paz, de igual modo, ainda precisa ser entendida na relatividade de nossos parâmetros, que são o máximo que, como menos, podemos dar de nós, no mais em que respiramos. Nós ainda não podemos entender a paz absoluta senão como clarões a surgir nos horizontes de nossa lenda... prenunciando dias novos em novas idades. A paz, para nossa estreiteza de vistas, não pode excluir elementos de temporalidade, que se não confundem, parece nos claro, com o apego ao poder temporal, e com todos os desmandos e abusos que ele autoriza. Falamos em temporalidade - exatamente como o hebraísmo destacado pela Bíblia de Jerusalém se refere: a paz que se não desvincula, por exemplo, de uma situação financeiramente estável, de um bem-estar do corpo, da satisfação possível dos desejos sadios que nutramos, dos divertimentos convenientes, dentro da longa lista daqueles que nos são lícitos, de um anseio de realização material, que não deverá exceder dos limites que só a consciência cristã poderá ditar. Tudo isso aliado aos dotes espirituais, que não são adquiridos com a moeda de César, por serem dobrões dos tesouros do Céu, que nenhuma chave da Terra logra abrir. E é aqui, neste ponto, que o grande problema surge. Qual a paz que, finalmente, desejamos?.. A que forjamos com a relativa satisfação dos valores do mundo, que nos sejam lícitos, ou a que recebemos diretamente dos anjos do Céu, ainda que nas vestes do sofrimento libertador? O paradoxo que possamos enxergar não é paradoxo: é o eleito dos clarões que a verdadeira paz faz rebrilhar em nossas madrugadas. É o que somos hoje, o ego, produto do que fomos (do que estamos deixando de ser...) - o homem velho, o infra-ego da linguagem psicanalítica, e do que seremos: o Cristo-em-nós revivido, o homem do futuro, o homem integral - o super-ego a que Freud se referiu.

            No Evangelho segundo João, capítulo 14, versículo 27, é ainda a paz o motivo do verbo messiânico:

            “Deixo-vos a paz, a minha paz vos dou, não vo-la dou como o mundo a dá."

            A Bíblia de Jerusalém, mais uma vez, explícita: “saudação e despedida comum entre os judeus; significa a integridade do corpo e prontamente a felicidade perfeita e a libertação trazidas pelo Messias. Tudo isso dá-nos Jesus."

            Nesta explicação e na ressalva que Jesus estabelece - a de que a paz não nos é dada como no-la dá o mundo - a questão começa a definir-se. Primeiro, ainda, a noção do relativismo: o desejar de paz, esclarecem-nos os estudiosos, é uma saudação comum entre os judeus. Ainda estamos nos domínios das fórmulas vãs do tipo “Deus te dê em dobro tudo aquilo que me desejares”; são as frases que não correspondem a nossos pensamentos, aquelas que dizemos tão-somente por dizer, fórmulas sociais, assim como quando, antes de nos recolhermos para a reparação da noite, recitamos, às pressas, orações decoradas, fiéis ao temor de que, ou rezamos, desfiando o velho rosário de queixas e lamúrias, enumerando exigências descabidas e, as mais das vezes, desrespeitosas, ou Deus nos abandona. De certo modo, a disciplina tem algo de válido, mas a grande realidade é bem outra.

            Quando Jesus fala em paz exterior às fórmulas do mundo, todo o panorama se modifica. É certo que buscamos a paz do corpo, porque possuímos um corpo de carne perecível, que nos faz certas exigências: uma dor de cabeça violenta costuma perturbar-nos o dia; uma forte dor de dentes faz-nos permanecer no “mundo da lua”; uma cólica hepática leva-nos aos desmaios ao anestésico então abençoado. A paz do corpo é a ausência das mazelas da carne, Mas, a chaga do corpo não é, muitas vezes, a paz do Espírito? Onde a felicidade de Paulo? ...No belo porte, que só obedecia aos impulsos do fanatismo, nos apedrejamentos e nas vanglórias do mundo... nas exegeses farisaicas dos doutores da lei?... Ou no porte alquebrado, na vaidade humilhada, no rosto riscado de gilvazes (cicatrizes), nos trinta e nove açoites que desembocam no primeiro grande êxtase, no martírio de Jerusalém, nas prisões  maceradoras?... Quem tem sido mais feliz... Saulo ou Paulo? Qual a paz verdadeira... a de Estevão apedrejado ou a de Saulo condenador? Que preferimos nós.. a “pax romana”, onde o Inimigo, exausto, submete-se a todo o tipo de absurdo, ou a paz cristã, que raramente pertence aos vencedores do mundo?.. A "pax romana" termina por transfundir-se na paz do oprimido, aquela que Jesus nos concedeu, utilizando-se dos bens da iniquidade, já que, embora “Deus prefira misericórdia, nós escolhemos o sacrifício".

            O Mestre não nos dana a paz como o mundo costuma fazer: “Se o mundo vos odeia., sabei que me odiou a mim primeiro do que a vós. Se fosseis do mundo, o mundo amaria ao que seria seu; mas, porque não sois do mundo e eu vos escolhi do seio do mundo, por isso é que o mundo vos odeia. Lembrai-vos do que eu vos disse: “ O servo não é maior do que o seu senhor.” Se me perseguiram a mim, também a vós perseguirão; se guardaram a minha palavra, também a vossa guardarão. Mas, todos esses maus tratos eles vos darão por causa do meu nome, porque não conhecem aquele que me enviou.”

            É chegado o momento de escolhermos, por nossa vez, o que de fato desejamos: queremos ser amados pelo mundo ou preferimos, simplesmente, desempenhar no mundo o nosso papel, e sermos amados pelo Emissário da Luz de todas as luzes?.. Quem somos?.. Saulo ou Paulo?..

            Não aguardemos elogios do mundo senão para nos mantermos em guarda ante nosso próprio orgulho: se somos discípulos de Jesus, aguardemos as perseguições, porque todos estão espiritualmente conscientizados de que se Ele não tivesse vindo e não nos houvesse falado, nós não teríamos o pecado que temos: mas agora não temos desculpa do nosso pecado. O mundo buscará somente o conjunto de bens temporais, subordinando o Espírito ao que não é do Espírito. Nós deveremos, sim, desejar o equilíbrio no mundo, muito embora, sob pena de incoerência e de consequente infelicidade, não possamos agir senão subordinando tudo o que não seja do Espírito ao domínio do que é Espírito, definitivamente convencidos de que a infelicidade do hoje é a sensibilização da alma para a paz como no-la dá Jesus, de vez que a paz dos homens não é do Espírito, e nós, conquanto ainda não sejamos o espírito, já sabemos que não configuramos o mundo e a matéria do mundo, A nossa paz é a anti-paz em que o mundo nos vê, mas... “se me perseguiram a mim, também a vós perseguirão; se guardarem a minha palavra, também a vossa guardarão.

            A nossa tribulação, meu Senhor, é a prova de que ouvem, por nós, a tua palavra! Dá-nos da tua paz...

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