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quarta-feira, 21 de agosto de 2013

Judas Iscariotis



Judas Iscariotis
por Hermínio Miranda
Reformador (FEB) Março 1959

            A figura histórica e humana de Judas Iscariotes sempre exerceu grande fascinação sobre meu espírito. Se bem que, aqui e acolá, se encontre na literatura espírita referências o infeliz apóstolo, muito pouco se conhece de seu posterior desenvolvimento espiritual.

            Sabemos, certamente, através de revelações esparsas, que Judas, condicionado como qualquer um de nós à sábia e inflexível lei cármica, aqui voltou muitas vezes, para purgar suas falhas no sofrimento redentor. Estamos certos, também, de que o Cristo não o abandonou à sua própria sorte, nem pretendeu deixar que a pobre criatura, vítima de sua fraqueza, ficasse mergulhada na amargura sem remissão do sofrimento eterno.

            Neste, como em tantos outros pontos, a doutrina que os Espíritos nos ensinaram é muito mais humana e racional que as que aí estão, miudamente trabalhadas pelos encarnados. É muito mais reconfortante, e infinitamente mais de acordo com a moral cristã, sabermos que o Espírito do Iscariotes, depurado de suas imperfeições, evoluído moral e espiritualmente, está hoje entre os mais chegados colaboradores do Senhor, do que imaginá-lo como trágica ruína humana, batida pela miséria eterna.

            Não seria Jesus, o gênio supremo da bondade e do amor, que deixaria seu antigo discípulo perder-se nas estradas agrestes da eterna agonia. Se nenhuma das ovelhas que o Pai lhe confiou se perderá, como poderia perder-se justamente uma daquelas que o acompanhou pelas rotas poeirentas da Terra Santa, que o ajudou, por algum tempo, a espalhar aos quatro ventos sua mensagem de amor e humildade, que, bem ou mal, sonhou com o Mestre os mesmos sonhos de universal fraternidade? Como poderia Jesus condenar o antigo companheiro que, num momento de fraqueza e invigilância, se deixou levar por enganadoras ilusões?

            E, afinal de contas, se Jesus lhe perdoou e o ajudou a recuperar-se para a glória espiritual, quem somos nós, imperfeitíssimas criaturas, para arrastar na lama a figura do pobre irmão que fraquejou? Tal como diria o Mestre: aquele que não tiver culpa, atire a primeira pedra.

            Por outro lado, é preciso atentar bem nas circunstâncias daquele impensado gesto. Judas não foi o único, nem mesmo o maior responsável pela dolorosa tragédia da cruz. Foi mero instrumento de forças enceguecidas pelo ódio irracional. Vencido pela miragem do poder, com que lhe acenaram os inimigos do Cristo, ele se prestou ao lamentável e infeliz papel de indicar, à sanha destruidora dos algozes, Aquele que o havia acolhido no círculo mais íntimo de seus seguidores.

            Seu espírito era fraco e imaturo. Sonhava com uma fatia de poder, e se deixou fascinar. Era tão fraco que, consumado o gesto supremo da traição, não encontrou em si mesmo forças morais para enfrentar as consequências dramáticas do arrependimento. O tremendo remorso que experimentou foi grande demais para as forças do seu espírito, e, ainda uma vez, sucumbiu, escapando pela porta falsa do suicídio, numa tentativa última de fugir de si mesmo.

            Mais uma vez se enganou o pobre e desorientado irmão. Libertara-se do envoltório físico, mas não se libertara de suas angústias. Muito pelo contrário: era justamente agora, com a percepção mais aguçada, que de fato sofria as insuportáveis aflições do remorso. E isso era o princípio da redenção. Milhares, milhões de vezes, teria que reviver a cena amarga do beijo portador da morte. Jamais haveria de esquecer o doce olhar do Profeta Divino, ao recebê-lo como discípulo amigo e não como mensageiro da dor. Como tudo aquilo continuava vivo nos seus olhos! Sim, porque ainda via, sentia dores e sufocava e gemia e gritava desesperado. Estranho! Então não morrera? Como é que a corda ainda lhe apertava a garganta ressequida e os trinta dinheiros ainda lhe pesavam sobre o coração? Sentia-se oprimido, miserável, perdido, sozinho, num mundo escuro, desconhecido e sem limites. Acima daquela solidão opressiva, pairavam os olhos meigos, puros, sublimes, de Jesus. Só então pudera compreender toda a extensão insondável da sua falta.

            Porque tocara a ele o infame papel de entregar o Mestre às mãos dos carrascos? Se Jesus tinha mesmo que ser destruído, como diziam as profecias, que fosse outro o delator, não ele, Judas... Mas, desgraçadamente, estava tudo feito e nem uma vírgula se alteraria.

*

            Não nos foi dado ainda acompanhar, nos séculos que se seguiram, a trajetória espiritual do pobre irmão Judas Iscariotes. Não obstante, imaginamos quanto sofreu e lutou para novamente poder fitar, com tranquila humildade e reconhecimento, os olhos d'Aquele que, certa vez, ajudara a crucificar.

            Hoje, o antigo apóstolo retomou seu lugar entre os seguidores mais próximos do Cristo.

            Nas profundezas de seu coração deve sentir-se amplamente recompensado de todas as dores que sofreu.

            Algum dia, talvez permitam as entidades superiores que se revele ao mundo essa história magnífica, para que, através de todo o seu poder de sugestão, saibam as criaturas que mesmo a falta mais negra não precipita o Espírito na desgraça eterna, mas apenas retarda sua evolução para a Pátria da Luz. Deus não seria Deus se, pela falta cometida neste átimo a que chamamos vida, fosse preciso viver uma eternidade de angústias e sofrimentos. Já pensou o leitor no que pode ser a eternidade? O escritor Hendrik Van Loon, para dar a ideia das idades que se contam pelos milhões de anos, imaginou uma grande, imensa rocha plantada no mundo. Cada dez mil anos, um pássaro vem e roça o bico contra a rocha. Quando o bico do pássaro tiver consumido a pedra, ter-se-á passado um instante da eternidade. Comparado com isso, que é a vida humana? Ainda ontem éramos crianças; nossos pais eram jovens. Hoje temos filhos, amanhã teremos netos. Como foi mesmo que passou o tempo? Assim, Deus não criaria almas, frágeis na sua ignorância, para depois esmagá-las impiedosamente, com o castigo eterno, pela falta ocasional. Se nos deu o livre arbítrio, acrescentou, também, a possibilidade de reparação, sem o que não poderíamos jamais alcançar a glória de poder colaborar em Sua obra portentosa.

            Já é tempo de trabalhar pela reabilitação da figura do antigo Iscariotes. É necessário remover, de sua imagem histórica, a superada mancha da traição que pesa sobre sua memória. Ele não foi o primeiro ser humano a errar nem será o último. Também não foi o primeiro a resgatar seu erro, pagando até o último ceitil, como diz a Lei, para retomar a caminhada para o Alto.

            Em teu próximo instante de tranquilidade espiritual, leitor amigo, levanta teu coração e oferece a Jesus as vibrações de tua alegria por ter estendido Suas mãos generosas ao antigo apóstolo transviado. E pede ao irmão mais velho, Judas Iscariotes, que nos ajude, por seu turno, a encontrar o caminho da redenção espiritual, que nos libertará da servidão ao erro. Ele muito sofreu para conquistar a sua paz e certamente saberá como ajudar-nos a encontrar a nossa. Também temos pesados débitos a resgatar. Não entregamos Jesus aos seus algozes; vezes sem conta, porém, temos crucificado sua memória, vendido seus princípios, falhado no cumprimento da moral que Ele pregou. Não estamos, pois, em condições de atirar coisa alguma à nobre face de Judas, o redimido.



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